As árvores estão grandes. Orgulho-me delas. Contra todas as recomendações, insisti que as plantássemos. Sobre o chão de pedra, no meio de um mato rasteiro, sem água, num lugar de ventanias e temperaturas extremas, fiz vingar a minha vontade. Ao princípio morriam muito e eu sempre querendo plantar novas, amparando-as, fazendo-lhes resguardos. E aos pequenos arbustos naturais fui podando, desbastando, dando-lhes forma. Cresceram, algumas estão já imponentes. Azinheiras, aroeiras. E os que plantámos e vingaram, pinheiros, cedros, ciprestes, eucaliptos, desataram a crescer, estão imensos, e sob eles formam-se tapetes de folhagem, a terra tornou-se fértil, o alecrim é frondoso, o rosmaninho perfuma o ar, tudo se desenvolveu de uma forma que a mim me parece milagrosa.
Sabe bem passear à sombra e a terra cheira sempre bem. E sobretudo, aquela fertilidade atrai os pássaros. Há pássaros por todo o lado, cantam, voam, uma alegria.
E lagartixas, muitas, ao sol. E coelhos.
Já contei muitas vezes mas é uma sensação tão boa que não me canso de contar. Ando por lá, devagar, ponho-me a olhar cada flor, as do chão, umas cores tão luminosas, tão perfeitas e delicadas, uma flor que nasceu onde antes nunca antes por lá tinha andado, reparo um ramo que se quebrou, Vou em silêncio.
Enquanto ando, vou num estado de quase transcendência, feliz como um bicho. Não sei explicar nem quero tentar para não ficarem a pensar que sou dada à metafísica. Não sou. Mas sinto uma tal comunhão com a natureza, e em especial com aquela que vi metamorfosear-se com a minha ajuda, que o que sinto quando ali caminho devagar, em silêncio, não se parece com alguma coisa que sinta noutras circunstâncias.
Enquanto ando, vou num estado de quase transcendência, feliz como um bicho. Não sei explicar nem quero tentar para não ficarem a pensar que sou dada à metafísica. Não sou. Mas sinto uma tal comunhão com a natureza, e em especial com aquela que vi metamorfosear-se com a minha ajuda, que o que sinto quando ali caminho devagar, em silêncio, não se parece com alguma coisa que sinta noutras circunstâncias.
Mas, então, vou andando em silêncio e, à minha passagem, volta e meia levantam-se revoadas de pássaros dos arbustos ou árvores, batem as asas com força, batem com as asas nas ramagens, forma-se um som alvoroçado que, por vezes, quase me assusta.
Outras vezes é ainda pior. Ouço uma corrida por entre os arbustos, uma inquietação furando a vegetação. Olho, não vejo nada. Às vezes temo que esteja alguém lá escondido. Penso que ficaria apavorada se um desconhecido se levantasse daquelas moitas enormes, acho que não conseguiria correr ou gritar. Muitas vezes vejo que é um coelho. Solta-se do mato e desata a correr aos saltos até se sentir protegido. Enquando caminho, reparo como há tocas, ou nas rochas ou como que uns túneis debaixo dos arbustos. Imagino que circulam por aí. Já pensei sentar-me um dia, durante umas duas ou três horas, sem me mexer, só para ver o que acontece quando a serenidade é total.
Mas há ainda mais. Também já aqui falei disso e, até, já inventei umas histórias que envolviam esse personagem.
É que, por vezes, ouço um leve ruído, indecifrável, uma remexida, um silêncio, uma presença. Se não vejo nada, convenço-me que é apenas um pressentimento. Páro, olho à volta. Nada.
Outras vezes sinto-me observada, sinto mesmo. Embora nada vejo, há algures um olhar preso a mim.
Hoje estava a varrer com a minha vassoura de aço, raspando o chão, apanhando o folhedo, ali sozinha, e, de repente, ouvi um arrastar secreto, sorrateiro. Não vi nada.
Depois ouvi como que um salto suave, quase como que em bicos de pés. E silêncio. Assustada fiquei imóvel, à espera. Senti-me, uma vez mais, observada.
E então, de longe, um som ao de leve. Olhei. Uns olhos fixado sem mim.
E então, de longe, um som ao de leve. Olhei. Uns olhos fixado sem mim.
Senti-me arrepiada, uma sensação estranha, como se um outro ser me estivesse a controlar de longe.
Devagar, baixei-me, apanhei a máquina fotográfica. Fotografei-o. Imóvel, os olhos postos em mim. Subi para uma pedra. Ele não se mexeu. Um olhar rasgado, preso ao meu. Fixava-me, quase desacaradamente.
Aproximei-me ao de leve, em silêncio, e ele imóvel, uns olhos misteriosos, estranhamente humanos. Ou não. Não humanos -- sobre-humanos.
As fotografias não ficaram boas, eu estava longe, um pouco sobressaltada. Mas podem ver aquele que, em silêncio, me segue ao longe.
Não sei quem ele é. Não sei se é novo se não, não sei se vive sempre por ali, se apenas se abeira quando me sente por perto. Não sei o que pensa de mim, se acha que sou uma intrusa ou se me reconhece como a dona daquele lugar. Pensará talvez que sou uma pobre coitada que veio da cidade, que não sei da terra a dureza, que não pertenço àquele pedaço de chão. Ou talvez apenas se admire, talvez não saiba que bicho curioso sou eu.
Mas sinto que pensa, que pensa enquanto me olha.
Depois fiz uma coisa insensata: falei, chamei, disse que viesse ter comigo. Olhou-me com um ar reprovador e desapareceu. Já aprendi. A melhor maneira de nos entendermos talvez seja o silêncio.
E digo que é um gato mas não sei. Pode ser uma gata. Pode ser outra eu. Talvez que os átomos que se vão evadindo de mim enquanto por lá ando se tenham instalado no corpo deste ser misterioso, Talvez este ser que assim me olha sinta a mesma estranheza que eu sinto. Não sei.
Mas sinto que pensa, que pensa enquanto me olha.
Depois fiz uma coisa insensata: falei, chamei, disse que viesse ter comigo. Olhou-me com um ar reprovador e desapareceu. Já aprendi. A melhor maneira de nos entendermos talvez seja o silêncio.
E digo que é um gato mas não sei. Pode ser uma gata. Pode ser outra eu. Talvez que os átomos que se vão evadindo de mim enquanto por lá ando se tenham instalado no corpo deste ser misterioso, Talvez este ser que assim me olha sinta a mesma estranheza que eu sinto. Não sei.
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De novo uma das canções que não me canso de ouvir:
Jorge Palma: Quem és tu de novo?
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E, caso ainda o não tenham feito, aceitem o convite e desçam até
...
Gosto do que fala.
ResponderEliminarApanhar amoras nas silvas...ter flores... cheirar esses aromas...só tenho um mas...a minha mãe, mulher do campo, conseguiu incutir-me algum medo (na sua tentativa de me proteger)..penso sempre numa cobra, num lacrau, num lagarto...cenas!
Para a Branca de Neve, o Gato das Neves! Rita
ResponderEliminarOlá Rosa Pinto,
ResponderEliminarPor acaso nunca penso nisso. E já vimos cobras. E peles de cobras. Uma pele enorme pendurada numa árvore. E assisti aterrorizada a uma cobra a comer um rato. Mas não penso nisso. O meu marido irrita-se de me ver andar de chinelitos de nada no meio do mato. Mas acho que não corro risco, acho que os bichos gostam de mim... :)
Mas se visse como tenho hoje os braços e as mãos...! E as pernas também, só que fui de calças, não passei pelo vexame de andar toda arranhada como se tivesse andado às amoras no meio das silvas...! Andei mas não foi pelas amoras que ainda estão em flor. Mas deixe-as estarem escuras e doces...! Adoro.
Bjs, Rosa!
Olá Rita!
ResponderEliminarGostei: o gato das neves para vigiar a sua branca de neve. Parece-me bem.
Um grande sorriso para si, Rita!