Ainda há dias aqui o contei. Eu ia ser operada aos joelhos no dia seguinte logo de manhã e, no entanto, na véspera aqui estive escrevendo, na boa, como se nenhuma preocupação pairasse sobre mim. No dia seguinte não escrevi pois estava ainda meio zombie, internada. Mas logo de seguida retomei o meu ritmo normal. Escrevia na cama ou no sofá, com as pernas para cima, gelo nos joelhos, os joelhos inchados, mal podendo andar. Não era nada de grave, mas o incómodo era significativo. Outra vez, uma massa num seio que causou estranheza ao médico e me obrigou a uma biopsia. Um susto dos diabos (para além da dor que aquilo provoca). E eu aqui a escrever como se o meu mundo fosse um mundo de fadas. Felizmente, não era nada de mal. Já depois disso, relativamente recente, um outro susto. Numa outra mamografia, uma nova bola suspeita dentro de um seio, tudo sempre lá para dentro, não se sentindo do exterior. Repetição de exame duas semanas depois, aquela nuvem negra a pairar. E eu aqui na maior, chalaças, tareias no láparo e o costume. Felizmente, de novo nada de mais. Provavelmente uma valente cotovelada involuntária de um dos pimentinhas que terá provocado um hematoma. Desapareceu.
Pelo meio, preocupações familiares e não foram pequenas. Por exemplo, tentei até ao limite tratar da ida de um tio meu para Cuba porque quis acreditar que lá o curariam e afinal morreu quando ainda alimentávamos alguma esperança. Depois foi a minha tia. Ia visitá-la ao hospital, acompanhava-a por telefone, tínhamos grandes conversas. Por fim já se cansava muito, já antevia o fim e eu a tentar que ela nem pensasse nisso. Também se foi. E as preocupações com os meus pais. E tudo. E sempre eu aqui no blog.
Não que isto me cure ou alivie ou distraia -- ou se calhar, faz tudo isso e em dose dupla ou tripla -- mas é o momento em que, por hábito ou prazer, me dou ao desfrute de fazer o que quero, o que gosto, o que me apetece. Sem motivo ou agenda. Enquanto aqui estou a escrever, existo eu, que escrevo porque gosto, e existem vocês, que não conheço, mas a quem me agrada chegar. E a verdade é que, enquanto aqui estou, não há doenças minhas ou alheias, não há preocupações, tudo se varre, há apenas o prazer de aqui estar.
Para mim ter o blog só faz sentido se for para falar do que gosto ou para denunciar aquilo que considero embuste ou malvadez e, nesses casos, tento ser o mais directa possível, para que se perceba bem contra quem me revolto. O que faço tem que ter sempre uma perspectiva positiva: ou para lutar por aquilo em que acredito ou para louvar aquilo que me agrada. Não me dá para vir para aqui destilar amarguras, ser destrutiva, lançar suspeições, alimentar angústias, carpir.
Ficaria feliz se soubesse que contagio quem me lê com a minha vontade de lutar, com a minha procura pela beleza ou pela generosidade, ou com a leveza com que encaro as adversidades. Isso seria um motivo suplementar para justificar a minha escrita aqui no Um Jeito Manso.
E se estou a escrever tudo isto, repetindo conversas recentes e, até, recorrentes, é porque li um comentário que me tocou e que acho que deve ser lido e relido. Refiro-me ao comentário do Fernando Ribeiro que é interessante e, mais que isso, inspirador.
Não sei que efeito concreto tem o espírito positivo na luta contra as doenças, em especial na luta contra o cancro. Acredito que terá um efeito altamente benéfico. Acredito que, tendo um propósito para continuar a a viver, a viver normalmente, o corpo enfrentará com maior resistência a luta que se trava dentro de si.
Autor de um dos blogs que acompanho com prazer, A Matéria do Tempo, daqueles blogs onde sempre se aprende e onde é notória a honestidade intelectual, a curiosidade militante e o gosto apurado de quem o escreve, Fernando Ribeiro fala de como manter o seu blog o ajudou a superou os momentos difíceis pelos quais passou e sobre os quais, felizmente, levou a melhor.
Porque sei que já outros Leitores meus passaram pela mesma rude prova -- e a todos presto a minha homenagem por serem tão corajosos -- e porque penso que exemplos assim podem ser inspiradores para quem esteja doente e precise de uma palavra de estímulo, tomo a liberdade de aqui transcrever, na íntegra, o seu comentário.
Em fevereiro do ano passado, foi-me diagnosticado uma neoplasia na bexiga, depois de eu ter começado a urinar sangue. Fui operado de urgência para estancar a hemorragia e extrair o tumor. Em abril voltei a ser operado, porque a própria bexiga tinha sido invadida pelo cancro. Tiraram-me a bexiga e fizeram-me uma bexiga artificial, com um pedaço de intestino delgado.
Sabe como foi que eu superei psicologicamente a difícil situação? Continuando a publicar o meu blog, como se não estivesse a acontecer-me nada, como se eu continuasse são como um pero. Cheguei ao ponto de publicar o blog deitado na cama do hospital, com três tubos a sairem-me da barriga, além de uma algália num certo sítio e um tubo de soro metido no braço. Abençoada internet e abençoado blog! As minhas navegações na internet e a minha preocupação com a publicação do blog distraíram-me o espírito e mantiveram-me com vontade de continuar a viver, pois acompanhava a vida que continuava lá fora e dialogava com ela.
Estou bem, tanto quanto é possível dizer que estou bem. Faço uma vida ativa e normal, pois o cancro não voltou a dar sinais de "vida". Disse-me o cirurgião: «Pode considerar-se curado. Ainda tem muitos anos de vida pela frente». E cá estou. Espero que não tenha notado nada de fora do normal no meu blog durante este ano que passou.
[Fernando Ribeiro, 27.maio.2016]
[Fernando Ribeiro, 27.maio.2016]
Caro Fernando Ribeiro, confirmo: não notei nada.
E fico admirada com a descrição que aqui nos faz e que revela a sua coragem. E fico feliz por saber que superou tão difícil prova.
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As fotografias foram feitas in heaven.
Gustavo Dudamel conduz a Orquestra Juvenil de Simón Bolívar num alegre mambo.
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Desejo-vos, meus Caros Leitores, um belo sábado.
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Desejo-vos, meus Caros Leitores, um belo sábado.
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Uma lição de vida, que Fernando Ribeiro nos dá, perante o que passou sem desanimar, enfrentando a situação com coragem e ânimo. Saúde! Gostei de ler as suas palavras.
ResponderEliminarP.Rufino