A empregada pousou a bandeja em cima de uma mesinha redonda. Trouxe um bule fumegante, um açucareiro, leite, duas chávenas, um copo gelado, uma cerveja e uma pequena bandeja que parecia ser de prata com um pano bordado com scones quentes, cheirosos. Trazia ainda dois pequenos pratos e uma concha com manteiga, outra com compota.
Sorriu e disse: ‘Preparei um lanchinho’.
Ele agradeceu, sorridente, mas como se repreendesse: ‘E os tremoços? Então?! Scones a acompanhar a imperial…? Ai…! Ou tremoços ou um pires de caracóis, isso é que era. Agora scones, Senhora Dona Lurdes… ? Dá cabo de mim.’ Ela riu como se já estivesse habituada e retirou-se.
Sentaram-se os dois em frente um do outro. Ele serviu-lhe o chá. Perfumado, perfumado.
Quando lhe passou a açucareiro, ela disse ‘Sem açúcar. Nem no chá nem no café’.
Ele fez de conta que se admirava, ‘Tough girl’.
Ela, então, olhou-o de frente, com atenção e disse: ‘Deixe-me agora olhar bem para si.’ E deixou-se ficar a olhar. Ele mexeu-se na cadeira mas aguentou o olhar. Depois tirou os óculos, passou as mãos pelos olhos. Voltou a pô-los. Ela imperturbável, ar tranquilo.
Ele olhou também com atenção para ela.
Estavam, então, os dois a olhar um para o outro em silêncio.
Ele olhou também com atenção para ela.
Estavam, então, os dois a olhar um para o outro em silêncio.
Depois ele disse ‘Posso interromper o exame? Só por um instante. É que acabou a música. Posso ir pôr outra? A Traviata? Pode ser?’.
‘Não. Outra coisa. Carla Bley. Tem?’
Ele não percebeu, ‘Desculpe… Disse Clara… quê?’
Ela repetiu ‘Carla Bley’.
Percebia-se que estava a procurar um bocado ao acaso mas, depois, encontrou, ‘Nem fazia ideia que tinha. Não conheço’. Pôs a tocar e, aos primeiros acordes, mostrou alguma estranheza.
Voltou a sentar-se.
Ela voltou a apreciá-lo. Depois disse: ‘Então é assim que é. Não é bem como o tinha imaginado’.
Ele levantou as sobrancelhas como se quase estivesse a desculpar-se ‘Lamento’.
Ela riu-se, ‘Não é caso para isso. Diferente não quer dizer pior. E quanto a mim? Tanta vontade que tinha de saber como eu era… Corresponde ou nem por isso?’
Ele, sério, olhando-a, ‘Sim, corresponde, imaginava-a assim, talvez nem tanto fisicamente mas na voz, no sorriso’.
Ela sorriu ao de leve, ‘Menos mal’.
Ele olhou-a como que a medo: ‘Então e agora já me pode dizer o seu nome?’
Ela franziu os olhos, depois a boca, aquele seu jeito de quase desafiar : ‘Não sei. O que é que fez para o merecer…?’
Ele ‘Bem, postas assim as coisas, não sei o que lhe diga. O meu nome já sabe. Acharia normal que me dissesse o seu’.
Ela mostrou indiferença, ‘Sei lá se o que me disse é mesmo o seu nome… Por acaso, se quer que lhe diga, até nem tem bem ar de Pedro mas, se me permite, mais de Pedro Maria’.
Uma gargalhada, ‘Por acaso, acertou; mas, oh minha senhora, dito dessa forma até parece um insulto…’.
Ela disse, ar provocador, ‘Sim, não é lá muito boa coisa, não. De resto, também não me tinha informado que era um principezinho…’.
‘Hom’essa…? Um principezinho…?’.
’Un petit prince no seu belo palácio’.
Ele riu ‘Não, não é a minha casa. É da família. Melhor, é de uma sociedade detida pela família. Usamo-la como guest house, em eventos familiares ou profissionais. Gosta?’.
Ela olhou em volta, apreciadora, ‘Claro. Como não?’. Depois, com naturalidade: ‘Bem, mas tinha qualquer coisa para me mostrar não era?’.
Ela olhou para o relógio e disse: ‘Acho melhor, já não é cedo’.
Levantou-se e ele também. Fez-lhe o gesto a indicar a direcção e seguiu atrás dela. Então ela deu uma súbita torção, olhou para ele, ‘Mas tenho ainda tempo para uma visita guiada. Quer mostrar-me a casa ou é coisa reservada ?’
Ele mostrou ficar contente: ‘Oh, minha senhora, honra-me com esse desejo que, já sabe, para mim é uma ordem. Então começamos antes por ali’.
Ela disse: 'Muito bem. Olhe, pronto: chamo-me Clara e não se fala mais nisso'
Ela disse: 'Muito bem. Olhe, pronto: chamo-me Clara e não se fala mais nisso'
Sorriu, olhou-a, e disse, 'Clair. Clair de lune'.
'Justamente'.
E assim foram, ele mostrando-lhe a casa, descrevendo peripécias familiares ocorridas aqui e ali, agora ou em pequeno (‘Vá lá, ao menos não diz piqueno’- disse ela. E ele ‘Ao menos…? Oh, minha senhora, que tanto gosta de me desvalorizar… que fiz eu para merecer tamanhos destratos?’), ela mostrando interesse nalgumas peças, ele chamando-lhe a atenção para alguns pormenores, e a empatia entre ambos era notória.
'Justamente'.
E assim foram, ele mostrando-lhe a casa, descrevendo peripécias familiares ocorridas aqui e ali, agora ou em pequeno (‘Vá lá, ao menos não diz piqueno’- disse ela. E ele ‘Ao menos…? Oh, minha senhora, que tanto gosta de me desvalorizar… que fiz eu para merecer tamanhos destratos?’), ela mostrando interesse nalgumas peças, ele chamando-lhe a atenção para alguns pormenores, e a empatia entre ambos era notória.
Até que finalmente chegaram à biblioteca. Ela parou, boquiaberta. Olhou em volta. Ele sorriu ‘Não lhe disse?’.
Ela contestou ‘Não. Não disse. Não estava preparada para isto, nada, nada mesmo’. A toda a volta livros.
Ela contestou ‘Não. Não disse. Não estava preparada para isto, nada, nada mesmo’. A toda a volta livros.
Estava perplexa: ‘Desculpe, isto não é normal… Mas o que vem a ser uma coisa destas?’
Ele, orgulhoso, mãos nos bolsos, ‘Do meu avô, muitos, de um tio-avô ainda mais, dos meus pais, muitos, e meus e dos meus irmãos. Um património da família.’
Ela estava siderada, ‘Nunca, nunca imaginei. Não percebi, da sua conversa, que fosse uma coisa assim…’.
Ele sorria, contente. ‘E queria ver as encadernações, não era?’
Ela quase não conseguia falar, ‘Era. Mas espere. Deixe-me respirar. Vou sentar-me aqui a olhar para isto.’ Sentou-se e ele, pedindo licença, sentou-se ao seu lado.
Ao fim de um bocado, ela perguntou: ‘Qual é a organização?’.
Apontando, ele ia dizendo: ‘portugueses, prosa, ali, sempre por ordem alfabética. Portugueses, poesia, ali. Franceses, ali.’ E assim continuaram, ele falando, ela olhando, ouvindo: ‘História portuguesa, história internacional, por épocas; ali filosofia, ali…’.
Ele, feliz, apontando alguns autores. Ela encantada, ‘podia viver-se aqui dentro, uma vida inteira’ e ele, ‘Se quiser mudar-se, faz favor. E, se me permitir, eu mudo-me também’.
Ela olhou para ele, fingindo espanto.
‘Para a servir, claro, para ser um seu criado’.
Ela riu-se, ele também. Depois, olhando o relógio, ar preocupado, ‘Já é tão tarde… Ou vamos agora ver as encadernações…’, e ele ‘ Ou…?’ e ela, ‘Volto cá…?’.
Ele disse, ‘Fazemos assim: agora espreita. E depois volta. Muitas vezes. As que quiser.’
Ela riu ‘Veja lá se eu o levo a sério…’ e ele ‘Oh minha senhora, tomara eu… tomara eu…’.
Ela riu ‘Veja lá se eu o levo a sério…’ e ele ‘Oh minha senhora, tomara eu… tomara eu…’.
Ele indicou-lhe então a direcção de uma porta em que ela ainda nem tinha reparado. Entraram, então, no que lhe pareceu ser um lugar extraordinário. ‘É a minha oficina de encadernação.’
Ela olhou em volta. Uma prensa, peles de várias cores, ferramentas, uma guilhotina, o que lhe pareceu ser uma máquina de costura, prateleiras com livros. Ela olhou espantada para ele.
Ele sorriu, orgulhoso, orgulhoso. ‘Tínhamos cá um encadernador, era nosso empregado. Trabalhou até já não conseguir mais. Era velhinho, velhinho, todo curvado, mas ninguém o tirava de cá. Entretanto, já morreu. Sempre gostei de estar aqui a vê-lo, fui aprendendo, tomei-lhe o gosto. Agora faço cá para casa, para os amigos. É um prazer, isto.’
Enquanto falava, ele ia passando a mão por uma pele verde escura, macia. Ela tocou-lhe também, sentiu a macieza da pele. A sua mão ia tocando na mão dele. Olharam-se e pareceram ficar como que embaraçados. Talvez apenas aparentemente.
Então, de repente, ele soltou como que um grito abafado. Ela olhou-o: estava branco. Olhava para uma porta metálica na parede, a boca entreaberta. Ela preocupada, sem perceber:‘Então? O que foi?’.
Ele nada disse. Ela assustada, ‘Então...? Calma. Está a sentir-se mal? O que foi?’. Depois olhou na direcção do olhar dele. Percebeu. Pôs-lhe a mão no ombro. Sentiu que todo ele tremia.
Este capítulo vem no seguimento do de ontem (A mulher que gosta que lhe falem de árvores) e não faço ideia do que se vai seguir, se é que alguma coisa se seguirá.
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Este capítulo vem no seguimento do de ontem (A mulher que gosta que lhe falem de árvores) e não faço ideia do que se vai seguir, se é que alguma coisa se seguirá.
Lá em cima era Carla Bley, the first lady of jazz, que fez esta quarta-feira 80 anos e Steve Swallow a interpretarem Reactionary Tango.
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Caso estejam para aí virados, convido-vos a verem um belo vídeo sobre os perfumes que uso e, a seguir, um vídeo altamente desaconselhável: coisa imprópria para consumo da autoria da Porta dos Fundos.
Birth of a Book - https://player.vimeo.com/video/38681202
ResponderEliminarduas curtas metragens em animação
The Fantastic Flying Books of Mr. Morris Lessmore - https://www.youtube.com/watch?v=Ad3CMri3hOs
argine -https://www.youtube.com/watch?v=6TovzOXeh24
Bob Marley (fez ontem 35 anos)
Muito bom....venha um livro!!!
ResponderEliminarNão me importava de viver rodeado de livros, a par de uns móveis antigos e uns bons quadros. Será pedir muito? Meus pais têm uma boa e selectiva biblioteca (lá na Beira-Alta), mas quer-me parecer que sou o único dos irmãos verdadeiramente interessado neles. Excelente! Outro dia folheei por lá um livro (de outros que têm) de Erich Maria Remarque, bem encadernado e antigo. Até esse pormenor me agradou! Assim como de Somerset Maugham e Hemingway. E dos clássicos portugueses. E até Poesia!
ResponderEliminarA juntar aos livros, móveis e quadros, adicionava-lhes uma boa garrafeira, uma cozinha velha, mas bem apetrechada e era feliz, pois companhia já tenho e boa! Isto tudo dentro de paredes de uma casa antiga, grande (não gosto de cochichos), para receber amigos e ali nos estarmos a divertir, entre livros e boa gastronomia - e bom vinho! Ora bem!
Boas leituras!
P.Rufino