domingo, abril 03, 2016

Virgens (e Auto-Retrato)


Em dia frio, céu cinzento, chuva miúda, dores no corpo e frio na pele, por puro prazer de andar e olhar, forço-me a sair de casa e passear como se as pernas não estivessem presas e doridas, a cabeça latejante e a humidade fria não me atrasasse os movimentos.

A primeira paragem foi o Cais Sodré. Queria conhecer a Pensão Amor. 

Pelo caminho, fui vendo as novas lojas que vão abrindo na zona. Coloridas, diferentes, invulgares.

E a minha selfie: apenas a minha mão captando a imagem -- mas é o que interessa para este fim.
Com as mãos fotografo, com as mãos escrevo.

O aproveitamento do Mercado da Ribeira para espaço de restauração, com as características que tem, impulsionou muito a nova vivência que se respira por estas bandas.
Pensava que a prostituição já não habitava estas ruas mas ainda lá vi uma ou outra, das que, em seu tempo, teriam sido jovens vistosas e hoje são mulheres já de alguma idade, cabelos muito louros, rostos muito pintados, vestuário exclamativo e uma boa disposição exuberante, trocando conversas divertidas e altissonantes com os conhecidos da rua. Nada de mais. 
Na decoração das lojas há um ar retro, um look vintage, e há gentes de fora, há um ambiente que se adivinha boémio quando anoitecer. Mesmo de dia e com mau tempo, já há gente na rua, de copo na mão, conversando, circulando, gente em esplanadas.

Mas uma coisa me surpreendeu. Tantas vezes que venho para estas bandas e tantas vezes que já fui à Ribeira e dali até ao Chiado via Rua do Alecrim. E, no entanto, nunca tinha reparado: Nossas Senhoras em pequenos nichos.


Numa das ruas, na parede, quase ao nível do chão, este aqui abaixo. E a mistura entre motivos religiosos, bonecos populares, fotografias e objectos de plástico, flores bem coloridas, fica curioso. Nem sei se é suposto inspirar alguma religiosidade ou se é apenas um motivo decorativo kitsch mas gosto, acho inesperado e, até, simpático.


Numa outra loja, um arranjo que muito me agradou. Na fotografia talvez não se perceba, mas são garrafas de vidro transparente, empilhadas, com o gargalo virado para a frente. A meio há a abertura que serve de altar onde brilha, azul e piedosa, a Virgem.

Fotografei neste ângulo pois gostei de ver o reflexo de um dos prédios do largo e das árvores nuas no vidro da montra.


Depois, já dentro da Pensão Amor, ao fundo de um daqueles corredores com ar decadente, entre salas incompreensíveis ou quartos vazios, mais um nicho, mais uma Nossa Senhora


Com umas cortininhas de veludo à frente, quer a Nossa Senhora grande quer as que estão nas campânulas de vidro, devem ter vindo de lojas chinesas. Digo eu. Mas tem graça. Há qualquer coisa de ilógico nisto. Ou, então, de lógico. Talvez se pretenda a protecção ou o perdão da Nossa Senhora num lugar que se associa ao 'pecado'.

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Momentos houve em que os anjos
entreabriram as portas do céu:
mas acredite em mim, o silêncio
é a mais estimável qualidade do divino
e é afinal tudo o que a terra tem para nos dar.

Terminou o concerto. Voltemos para casa.
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O poema é  'À saída do concerto' de Luís Filipe Castro Mendes in 'Outro Ulisses regressa a casa'

Amy Camie e Jessica Goodenough Heuser interpretam"O Viridissima Virga" de Hildegard von Bingen.
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Desejo-vos, meus Caros Leitores, um belo dia de domingo

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