Depois de ter visto aquele vídeo do hospital na Porta dos Fundos, lembrei-me daquela cena minha a ir à maternidade a meio da noite queixar-me de uma coisa que não tinha nada a ver. E, porque nisto, umas puxam as outras, agora lembrei-me de mais uma. Mas nem sei se conte. Não é coisa minha, é coisa de intimidade alheia.
Vou escrever com jeitinho, para não revelar mais do que devo e, no fim, logo vejo se vai para o ar ou se fica no limbo.
Vamos lá.
Noche azul que en mi alma reflejó
La pasión que soñaba acariciar
Vuelve de nuevo a dar paz a mi corazón
No ves que me muero de dolor
Quando andava a estudar, para além da minha colega alentejana que, sendo tão diferente de mim, era tão minha amiga, eu tinha uma outra muito boa amiga. Era minha colega de curso e namorava um rapaz de medicina que era uns dois ou três anos mais velho. Acabou o curso, ele, ainda nós estávamos a estudar.
A vida que ela teve depois não se deseja a ninguém, tudo o que poderia haver de mau ela testemunhou e viveu. Tantas, tantas vezes a apanhei desesperada, lavada em lágrimas, metida em situações horríveis, do pior que há. E quando se pensava que nada de pior lhe poderia acontecer, acontecia. Muitas vezes não era directamente a ela mas a pessoas muito próximas, que viviam com ela, horrores inimagináveis. Era uma corajosa pois sobreviveu, inteira, a tudo. Uma vez, depois de ter estado algum tempo sem a ver, encontrei-a na Avenida da Liberdade. Por essa altura já ambas tínhamos, cada uma, dois filhos, ambas tínhamos sido mães muito cedo, até certa altura as vidas paralelas. Estivemos para aí uma hora de pé, no passeio -- nem nos ocorreu procurarmos um banco -- e ela arrasada, a contar os sofrimentos, as coisas horríveis que estava a viver. Eu, que sou frágil (ou assim me imagino), interrogava-a quase a medo: 'E tu assististe a tudo? Até ao fim? E conseguiste?' E ela tinha assistido, a tudo, até ao fim, tinha conseguido. Já estava calejada, pronta para qualquer coisa, sem fatalismos, já então sempre preparada para o pior.
Pouco tempo depois, estava eu a almoçar nas Amoreiras, encontrei uma amiga comum. Perguntou-me se eu tinha sabido do que tinha acontecido à nossa amiga. Pensei que se estava a referir àquilo que ela me tinha contado, naquele encontro na Av. da Liberdade. Mas não. Era algo ainda pior. Desta vez tinha sido o marido o atingido pelo infortúnio. Uma coisa horrível. Nem conseguia imaginar como podia ter acontecido aquilo a uma pessoa com tanta energia, sempre tão alegre. Nem conseguia imaginar como estaria ela a reagir a uma desgraça daquelas com o seu tão grande amor. Pensei que ninguém merecia tamanha pouca sorte, tamanha dose permanente de acontecimentos infelizes, irreversíveis, dolorosos.
Mas, na altura a que se refere aquilo que vou contar, ainda ela era despreocupada e feliz, não imaginando o que iria ser a sua vida.
Eu tinha o tal namorado novo, estava apaixonadíssima, andava sempre abraçada e aos beijos, eram permanentes manifestações de grande amor. Ela tinha conhecido o meu namorado anterior, tinha testemunhado a minha atribulada situação de acumulação, e presenciava com divertimento, agora, o estado de arrebatamento em que eu andava. Ela e o namorado eram mais moderados, especialmente ela, já que ele era um speedado, magro, corpo elástico, um bacano, sempre com anedotas e graças, todo piruetas no andar, na conversa, na alegria contagiante. Ela andava encantada com ele, embora um bocado ciumenta. Homens assim, divertidos, inteligentes, bem humorados e brincalhões são uma tentação para as mulheres. Ninguém tem grande paciência para um telhudo, ensimesmado, macambúzio, metido a erudito. Ele era o oposto disso e ela temia o efeito daquela efervescência dele junto de jovens médicas e enfermeiras, em especial nas noites em branco, de 'banco'. Mais tarde viria a ter mesmo razões para sofrer com isso -- grávida, a estudar, a dar aulas e a tratar da casa e ele de cabeça virada, pronto para mandar o casamento para o alto, com um caso tresloucado com uma colega médica. Depois mudou de ideias e manteve-se casado, mas essa sua atitude durante a gravidez da mulher, deixou algumas marcas no casamento. Mas, na altura a que se reportam os factos de que vou falar, era apenas uma ciumeirinha boba a que ela sentia por ele.
Encontravamo-nos os quatro com frequência. Como ele começou a fazer aqueles estágios hospitalares, era sobretudo ao fim da tarde ou à noite que nos juntávamos. Eram noites de risota, noites sem sono, uma alegria, uma pândega pegada, especialmente por causa dele.
Um dia, contava eu aquela maluqueira de termos ido à maternidade para me queixar de dores de pescoço e diz ela: Ah, nem me fales em espasmos. Sabem lá vocês o que nos aconteceu...
Ela vivia então num daqueles quartos que algumas senhoras nas redondezas nas universidades (senhoras penso que geralmente solteiras ou viúvas), alugavam a estudantes. Por essa altura não me lembro se eu vivia também num quarto ou se vivia, por engano (já aqui o contei), na moradia feminina da Opus Dei. O meu namorado vivia com os pais (embora pouco lá parasse) e o namorado dela vivia numa residência masculina, talvez nas Forças Armadas, não me lembro bem.
E então, dizia eu, havia uma senhora que alugava quartos e ela estava num. Quando a senhora saía ao fim da tarde e ele já estava livre das aulas ou do hospital e não estava ninguém em casa, ele enfiava-se lá à socapa (era proibido, as senhoras não deixavam entrar rapazes para os quartos, quanto muito podiam ficar na sala). Para ele a transgressão era uma festa: subir pela escada a pular degraus, entrar à pressa, esgueirar-se pelo corredor e enfiar-se no quarto -- e, sem tempo a perder, truca-truca.
Só que um dia, estavam eles naquilo, pensando que tinham tempo para a função e para saírem de fininho antes que alguém chegasse a casa, quando ouvem a chave na porta e a voz da senhora que entrava com outra pessoa.
E aí, a minha amiga, apavorada, coitada, teve um ataque de espasmos vaginais. Não me lembro se ela falou em vaginite, ou talvez tenha sido ele, acho que sim, mas não garanto que tenha sido isso que lhe aconteceu. Só me lembro de ela contar que tão violentos eram os espasmos que ele ficou lá preso, entalado, ela cheia de medo de ser apanhada, cheia de medo de que ele não se conseguisse tirar de dentro dela, que a senhora os apanhasse naquela linda figura, e cheia de dores e contracções, com a preocupação de não falarem, e ele aflito, enfiado, sem conseguirem controlar a situação.
Lembro-me do meu espanto, nunca me ocorreria que isso pudesse acontecer, e ele a rir-se, gozão, gozão, e ela a contar: 'Vocês nem queiram saber... O pânico, o pânico...'
Lembro-me do meu espanto, nunca me ocorreria que isso pudesse acontecer, e ele a rir-se, gozão, gozão, e ela a contar: 'Vocês nem queiram saber... O pânico, o pânico...'
Depois, lá devem ter respirado fundo, ele lá a deve ter conseguido acalmar, lá conseguiram apartar-se. E, com o coração a mil, ali ficaram assarapantados, sem saberem como sair dali sem serem descobertos. Por fim, a senhora lá saíu com a outra e eles lá conseguiram raspar-se.
Quando contavam a aventura, ele brejeiro, malandro, apimentava a coisa, transformava aquilo numa cena macaca, daquelas de que se iriam rir até ao fim da vida. Mas ela dizia, 'Não sejas parvo, não sejas ordinário. Vocês nem queiram saber o pânico que senti, já nos imaginava a ser levados para o hospital, agarrados um ao outro, na mesma maca, ele em cima de mim, um vexame, sabem lá a sensação horrível, eu a querer que ele saísse e apertada, apertada, ele completamente preso. E não sejas parvo, não gozes que também estavas em pânico'.
Entretanto, as nossas vidas profissionais levaram-nos por caminhos diferentes e as desgraças que lhe sucederam depois acabaram por quase afastá-la do mundo em que eu me movimentava. Acabei por lhe perder o rasto.
Há algum tempo, num centro comercial, pareceu-me vê-la ao longe. Ela ia numa direcção e eu na oposta. Ainda pensei voltar atrás, correr, confirmar se era mesmo ela. Mas senti algum medo. Temi que lhe tivessem sucedido mais horrores, temi ouvir da boca dela aquilo que eu tinha sabido por outros. Mas pareceu-me bem, pareceu-me diferente, como se fosse outra, como se tivesse entrado num novo mundo. Tomara que sim.
Estive a reler o que escrevi. Vou publicar. Pode ser que entre os meus leitores esteja ela. Se ela lesse, reconhecer-se-ia. E saberia que me lembro muito dela e dos tempos que vivemos tão intensamente, tão alegres, ela ainda tão ingénua em relação ao que a vida tinha guardado para a castigar sem que ela tivesse feito nada para o merecer. E lembro-me muito bem das suas duas filhas, tão queridas, tão amadas e a quem ela tanto tentou proteger. Tomara que também estejam bem.
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Há algum tempo, num centro comercial, pareceu-me vê-la ao longe. Ela ia numa direcção e eu na oposta. Ainda pensei voltar atrás, correr, confirmar se era mesmo ela. Mas senti algum medo. Temi que lhe tivessem sucedido mais horrores, temi ouvir da boca dela aquilo que eu tinha sabido por outros. Mas pareceu-me bem, pareceu-me diferente, como se fosse outra, como se tivesse entrado num novo mundo. Tomara que sim.
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Estive a reler o que escrevi. Vou publicar. Pode ser que entre os meus leitores esteja ela. Se ela lesse, reconhecer-se-ia. E saberia que me lembro muito dela e dos tempos que vivemos tão intensamente, tão alegres, ela ainda tão ingénua em relação ao que a vida tinha guardado para a castigar sem que ela tivesse feito nada para o merecer. E lembro-me muito bem das suas duas filhas, tão queridas, tão amadas e a quem ela tanto tentou proteger. Tomara que também estejam bem.
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Apeteceu-me intercalar aqui fotografias de bailarinos cubanos dançando nas ruas de Cuba. Talvez seja porque, apesar das dificuldades que enfrentam, conseguem conservar a elegância e a força para seguir em frente, para voar. O seu autor é Omar Robles.
Admiro as pessoas que, mesmo quando teriam razões para se deprimirem ou afundarem em desesperança, conseguem manter a vontade de rir, de conversar, que são generosas em qualquer circunstância, que não perdem tempo com diferendos fúteis, com quezílias menores, admiro as pessoas que conseguem manter a alegria e a vontade de abraçar a vida e os outros.
Talvez por isso seja nos cubanos que pensei não apenas para as fotografias mas também para a música: Ernesto Lecuona. Lá em cima, Placido Domingo cantou Noche Azul. E agora o Grupo Corpo dança No es por ti, cantado por Zoraida Marrero numa coreografia de Rodrigo Pederneiras.
Não sou dada a orações (ou talvez seja mas não me apetece assumir), sou mais dada a exorcizar tristezas, medos, perplexidades ou anseios através de devaneios, danças, alegrias, através do corpo a corpo. E, especialmente se falo de memórias que, de alguma forma, me trazem alguma melancolia, se há coisa que me apeteça ver são bailarinos como estes aqui abaixo a dançarem música como esta.
Por isso, porque acho que ficam bem aqui, a festejarem a vida apesar das complexidades, labirintos e alçapões que, por vezes, a compõem, aqui vos deixo na companhia deste casal e desta música.
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E, por falar em cubanos, antes de me ir apetece-me ainda ouvir um poema de José Ángel Buesa:
Poema del amor imposible
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E, se ainda não me visitaram na maternidade nem aos camaradas da Porta dos Fundos no hospital, então queiram, por favor, descer até ao post seguinte.
Fui ver o Omar Robles. Que belas fotografias! E gostei do texto que ele escreve. Não conhecia. Obrigado pela dica!
ResponderEliminarP.Rufino
documentário sobre panama papers, não tem a haver como o post, mas paciência, também dá espasmos-))
ResponderEliminarhttp://fusion.net/story/292198/dirty-little-secrets-panama-papers-documentary/
Bob Marley