Com o tempo, vou-me tornando mais tolerante. Bem, tolerante em relação a algumas coisas. Para outras, completamente intolerante. Se alguém me aborrece de forma gratuita, bye bye, tenho mais que fazer do que aturar gente que não se importa de magoar os outros. Também sou intolerante em relação a desrespeitos ou mediocridades. Por exemplo, ver a toda a hora o Passos Coelho na televisão é-me insuportável. Desligo a televisão, mudo de canal, saio da sala. Ir a lugares onde me iria aborrecer mas onde pareceria mal não ir, isso também já não é comigo, é o vais. Para coisas assim, intolerante, cada vez mais. Mas para com erros involuntários, imperfeições, gestos impensados, esse género de deslizes, sou cada vez mais tolerante. Aliás, parece estar no seio da imperfeição aquilo que mais me atrai.
Se leio um livro e as frases por vezes parecem sobressaltar-se ou se, como imprevistos lampejos, aparecem afirmações que introduzem descontinuidades no texto, então é isso que mais me prende a atenção.
Ou na pintura: entre uma paisagem perfeita ou figuras angélicas perfeitamente desenhadas e pintadas e umas manchas de cor e luz sem qualquer significado é para as últimas que o meu coração me leva.
Ou na fotografia: procuro o instante em que o insólito acontece ou em que algo parece querer quebrar o equilíbrio. A tentação para captar a harmonia, a beleza simétrica ou a tranquilidade do que é fotogénico é grande e não lhe fujo.
No entanto, é o contrário disso que desejo que me apareça para que a tremura boa do hecho estético se faça sentir no meu corpo.
Ou na fotografia: procuro o instante em que o insólito acontece ou em que algo parece querer quebrar o equilíbrio. A tentação para captar a harmonia, a beleza simétrica ou a tranquilidade do que é fotogénico é grande e não lhe fujo.
No entanto, é o contrário disso que desejo que me apareça para que a tremura boa do hecho estético se faça sentir no meu corpo.
Antes, quando eu não sabia que bom, bom mesmo, é sermos tolerantes e conseguirmos apreciar o que nos desconcerta e foge ao nosso sentido de rigor, eu desconfiava de Agustina. Por vezes, os personagens mudavam de nome a meio do livro ou algumas datas não batiam certas. Eu era, então, desconhecedora de que a literatura, tal como a vida, é feita de camadas e que se pode viver feliz numa das camadas, tolerando as imperfeições das outras ou, até, ignorando-as. Andava pelos livros, seguindo a história, querendo garantir a coerência das peças e, com isso, quase me distraía do fulgor que era a escrita em si e, com essa distracção, não deixava que o assombro me visitasse.
Parece que foi preciso desapessoar-me de muitas partes de mim para passar a apreciar melhor tudo e para deixar que mais coisas me impressionem, e me impressionem de forma mais intensa. Quando se diz que, com a idade, se aprende a amar melhor, é verdade. Comigo vem acontecendo isso. Não deixo que nada se interponha entre o que me agrada e o meu corpo que se quer agradado. Digo o meu corpo porque, em mim, o meu corpo prevalece, a minha mente é qualquer coisa que habita o meu corpo, mesmo que possa, por vezes, voar à sua volta.
E é um prazer tão grande. A cada frase, a escrita cintila. Há uma forma subversiva de pensar, há uma elegância moderna na forma como as palavras se meneiam. Leio com um prazer enorme. Tenho permanentemente vontade de parar e vir aqui transcrever uns bocados. Mas depois não o faço, não quero parar de ler. É muito bom.
Só um pequeno exemplo, para além do título deste post (escrito a propósito de um passeio de Agustina no carro de Vieira da Silva e Arpad onde, a cada momento, havia oportunidade para um acidente, o que deixava Arpad atarantado com o que se atravessava na estrada, gente, animais). Aqui abaixo ela fala da pouca exuberância de Maria Helena que tornava complicadas as entrevistas que lhe faziam:
Caso ainda não tenham visto o que algumas pessoas fazem com as suas mãos, uns vídeos muito bonitos, e caso queiram também ler algumas coisas cá minhas, desçam, então, por favor, até ao post que se segue: Mas acredite em mim, o silêncio é a mais estimável qualidade do divino
Tenho, pois, vindo a (re)descobrir a escrita de Agustina. O que tenho lido ultimamente não são histórias: são ensaios, apontamentos ou, como agora, uma narrativa biográfica. Já me referi a ela no outro dia. Longos dias têm cem anos, onde Agustina fala de Vieira da Silva e Arpad.
E é um prazer tão grande. A cada frase, a escrita cintila. Há uma forma subversiva de pensar, há uma elegância moderna na forma como as palavras se meneiam. Leio com um prazer enorme. Tenho permanentemente vontade de parar e vir aqui transcrever uns bocados. Mas depois não o faço, não quero parar de ler. É muito bom.
Só um pequeno exemplo, para além do título deste post (escrito a propósito de um passeio de Agustina no carro de Vieira da Silva e Arpad onde, a cada momento, havia oportunidade para um acidente, o que deixava Arpad atarantado com o que se atravessava na estrada, gente, animais). Aqui abaixo ela fala da pouca exuberância de Maria Helena que tornava complicadas as entrevistas que lhe faziam:
A secura do coração pode ser outra coisa que não é insensibilidade, mas purificação e amadurecimento. Isto explica muito a Vieira da Silva -- esta imponderabilidade da conversa, aquele saltitar da frase e do sorriso, a perda de peso, em suma, o que nos precipita no cerne da identidade.
O que em geral se confunde com os artistas é o seu lado artesão: o traço, a matéria visual, o processo escrito. Mas eles são convexos, voltados para dentro, combinados com inúmeras casas que entre elas têm acesso, mas com exterior nenhum. Casas onde se fabrica o génio, escalas em que ressoa uma infinidade de articulações do espírito. O menor da arte é o seu testemunho, o que se pinta ou escreve. É preciso que o homem tenha uma maneira de arder que dê a luz indirecta da arte; mas para isso passeia por dentro de todos os sistemas, planetários e outros, e ninguém dá por ele.
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Caso ainda não tenham visto o que algumas pessoas fazem com as suas mãos, uns vídeos muito bonitos, e caso queiram também ler algumas coisas cá minhas, desçam, então, por favor, até ao post que se segue: Mas acredite em mim, o silêncio é a mais estimável qualidade do divino
Ouvir Mozart é sempre gratificante! Das várias histórias que se conhecem da vida dele, recordo uma, que de algum modo nos mostra um Mozart algo arrogante (todos têm defeitos, mesmo os génios como o Grande Mozart). Um outro excelente compositor daquela época (e daquele período, “Clássico”), Clementi, quando visitou França, em 1781, participou numa competição pública com outros pianistas. Clementi era um famoso pianista e escreveria mais de 100 sonatas para aquele instrumento musical. Esse encontro incluiu um “duelo de piano” com Mozart, no qual cada um improvisaria as suas composições. No final, nenhum foi considerado vencedor. Mais tarde, algo agastado, Mozart diria que Clementi “era um charlatão – tal como todos os italianos”. Clementi foi mais gracioso na resposta, elogiando as qualidades de Mozart. Já aqui falou outro dia de outro rival, como António Salieri, o tal cujos rumores em Viena, sem qualquer fundamento, lhe atribuíam a causa da morte de Mozart, por envenenamento (o que veio depois a ser desmentido). Curiosamente, Liszt (outro grande compositor), quando foi com a família viver para Viena, veio a estudar piano precisamente com Salieri. Uma das óperas de que gosto de ouvir, de Mozart e que tenho cá por casa, é “La Clemenza di Tito” (Tito teve um protagonismo muito interessante na história da Antiga Roma, quer na guerra na Judeia, no seu romance com a bela princesa judia Berenice, mais velha do que ele, que ele teve de rejeitar por pressão da elite senatorial Romana da altura e mais tarde a sua ascensão a Imperador, vindo a falecer pouco mais de 2 anos depois, tendo ainda de conviver de permeio com a catástrofe do Vesúvio).
ResponderEliminarEncanta-me a variedade dos seus Post, desde seu Blogue. E da sua qualidade escrita. Resto de bom Domingo! Nós hoje, depois de um pequeno passeio pelo Guincho, vamos jantar umas "moules" a Cascais com uns amigos, para descontrair.
P.Rufino