Já falei algumas vezes daquela minha amiga psiquiatra que, sempre que me gabo que ela acha que eu sou a pessoa mais equilibrada que conhece, faz o meu marido encolher os ombros e dizer 'Olha quem'. É que ele acha que ela é maluca.
Há algum tempo que não estou com ela mas tenho algumas saudades. É tão maluca, diz e faz coisas tão malucas, que eu lhe acho mesmo graça. Sendo uma mulher muito bonita, toda ela bonita, rosto, corpo, e com um timbre de voz mesmo bonito, tem coisas mesmo parvas. Uma vez, no verão, foi buscar-me ao emprego. Fomos de carro, um carro desportivo, baixo, e eu ao lado dela. Ela com uma saia justa, curta, uma blusa bonita, saltos altos. Nessa altura, tinha o cabelo quase curto, cabelo claro, os lábios pintados de encarnado: aquele género de mulher que dá nas vistas. Ela ao volante, eu ao lado dela. Então olho para as pernas dela e nem quero acreditar. Tinha depilado as pernas até mais ou menos à altura da saia. Ora a saia, sendo justa, e o banco rebaixado, ao sentar-se, a saia subia e ficava um bocado de perna à vista e, horrível, com pelos. Fiquei escandalizada: 'Bolas! Mas então o que é isso?' E ela, admirada, 'O que foi...?' Respondi, zangada: 'Mas tu não atinas? Que disparate. Porque não te depilas como deve ser, ó caraças?' E ela, muito admirada: 'Mas vê-se?'. E eu 'Estás maluca? Mas não tens olhos? Caraças, que coisa mais sem jeito. Ou depilas as pernas todas ou não usas saia curta!' E ela 'Achas? É que não gosto nada de me depilar, depilo só o necessário. Mas pronto, logo depilo'. E eu, espantada 'Olha lá, e vais trabalhar assim? Já toda a gente deve ter visto essa parvoíce'. Parvoíces assim; e esta deve ser das menores. Lembro-me que, nessa altura, o meu marido desvalorizou. Limitou-se a comentar: 'Mesmo que vejam. Tudo malucos como ela'.
Posso, por vezes, ficar chocada mas, de facto, as pessoas que agem e pensam de forma diferente da minha intrigam-me, de certa forma fascinam-me.
Mas há casos que não têm graça nenhuma.
No outro dia, um amigo meu, pessoa das mais íntegras que conheço, estava, uma vez mais, a falar comigo do grande problema que tem com o filho. É um problema sério e eu, porque tenho sempre algum receio que alguém se reconheça a partir do que aqui escrevo, não vou falar nisso em concreto, é tema sensível e doloroso. Mas o meu amigo dizia-me que, desde que se tinham apercebido desse problema do filho, a vida dele mudou, a dele e a da mulher. Diz-me que se sentem muito tristes e preocupados, perguntando-se onde é que falharam e, especialmente, como puderam ser tão cegos que não deram conta daquele problema. O filho conseguiu camuflar um problema grave durante anos e uma coisa tão séria e tão óbvia passou-lhes completamente ao lado. Poderá dizer-se que os pais agora ligam mais ao trabalho do que a quem está perto deles, que a vida dos filhos é relegada para plano secundário. Mas não é o caso. Tenho encontrado, ao longo da minha vida, pessoas excepcionais, de uma integridade e de uma franqueza inabaláveis. Este meu amigo é assim. Ele é daqueles em quem confio incondicionalmente. E ele retribui essa confiança. Ao falar comigo, abre o seu coração sobre qualquer assunto, sem qualquer reserva. Por vezes, teve problemas pessoais e profissionais por ser tão inteiro, e eu, contra ventos e marés, sempre estive ao seu lado.
E, quando ele precisava de arranjar um trabalho para o filho porque o rapaz andava em maré de 'pouca sorte' e a precisar de um qualquer arrimo, ainda não se desconfiando de nada, movi mundos e fundos para lhe arranjar um estágio que, acima de tudo, era um estímulo, um amparo, uma preparação. O estágio falhou e foi porque eu me interessava pelo rapaz e os meus colegas que o acompanhavam perceberam esse meu cuidado, que me alertaram para que havia qualquer coisa de errado e eu, preocupada, avisei o pai. Foi um choque, o mundo a desaparecer-lhe sob os pés. Diz-me este meu amigo que a vida dele e a forma como passou a olhar o mundo mudou radicalmente desde que esta situação se tornou indisfarçável. No outro dia estive mais de meia hora ao telefone com ele e senti tanta, mas tanta, tanta, pena. Um homem que chefiava centenas de pessoas, tantas vezes em situações difíceis, em períodos complexos, e ele sempre firme como um rochedo - e agora, ao telefone, frágil, inseguro, triste.
Às vezes na brincadeira, quando alguém nos conta um dissabor, podemos dizer 'antes isso que partir uma perna'. E a verdade é que é mesmo assim: tanto drama que, por vezes, se faz em torno de uma ninharia à toa, quando, de repente, do nada, pode aparecer um facto nas nossas vidas que nos abale os alicerces, nos retire a alegria de viver.
Ando com vontade de lhe ligar para saber que é feito do rapaz, se terá ido a alguma consulta lá com a minha amiga psiquiatra, que eu recomendei. Mas, cobarde, cobarde, tenho receio que não esteja a resultar, que as coisas estejam piores e custa-me tanto pensar na reviravolta terrível que a vida do meu amigo levou. Tomara que esteja melhor e que a maluca da minha amiga psiquiatra, se ele lá foi, esteja a dar conta do recado.
Agora que estou a falar nisto, estou a lembrar-me de uma amiga que me contou que a mãe, a quem foi diagnosticado Alzeihmer, tem coisas cada vez mais do além. Uma vez que ela foi ver a mãe, levava uma caderneta de cromos para os filhos e calhou abrir o envelope ao pé da mãe. A mãe delirou com aquilo e quis ficar com o saquinho com os cromos. E agora, sempre que a filha lá vai, toda contente, quase corre para ela a perguntar: 'Trouxeste a minha surpresa?'. E, portanto, de cada vez que lá vai, tem antes que ir à tabacaria a ver se têm cromos. Em tempos, a mãe não tinha aprovado a escolha do namorado, foi uma guerra, quase cortou relações com ela, por pouco nem iam ao casamento da filha. E agora ali está, diminuída, à espera que a filha chegue com a surpresa. A minha amiga conta isto com tristeza. Custa-lhe tratar a mãe como se fosse uma criança mas não vê maneira de agir de outra maneira.
Não difere muito do que se passa com o meu pai. Homem orgulhoso, enérgico, saudável, habituado a ter uma vida boa, absolutamente independente, ao ter o AVC que o deixou completamente dependente, tem vindo progressivamente a perder a lucidez. Bem, não é bem assim. Tem dias em que está sempre completamente lúcido. Ainda no fim de semana passado, com netos e bisnetos, completamente bem, a falar, a conhecer todos, os nomes dos miúdos, sem qualquer problema. Mas ou porque a medicação, volta e meia, o deixa atarantado ou porque a quase completa falta de visão ajuda à festa, ou porque o processador, às vezes, tem um bug (que, depois de dormir, desaparece), a verdade é que, a par da incapacidade motriz, tem, de vez em quando, momentos de grande perturbação. Hoje, à hora de almoço, quando liguei, a minha mãe disse-me que ele estava desaustinado e que queria falar comigo. Então, lá lhe passou o telefone. É sempre um desatino, porque diz que não me ouve bem, fala enquanto eu falo, uma confusão. Mas hoje não, hoje ouvia quando eu falava e falava quando eu dizia 'Diga lá, pai'. Então, com a voz um bocado entaremelada, disse-me que a minha mãe é uma teimosa, que não o deixa ir para o jardim e que ele queria ir para o cadeirão da sala mas que o tinham deixado ficar ali e que ele já só queria ir para a sua 'caminha' que nem se importava de ficar na 'caminha' até ao fim da vida, mas que eu tinha que lá ir, para ver o que se passava -- e continuou neste registo, sem eu perceber algumas passagens. Pedi para passar o telefone à minha mãe. Perguntei: 'Mas, afinal, o que se passa?'. Diz a minha mãe, 'Mas não percebeste o que ele disse? Acha que está caído no chão. E quer que eu o levante ou que chame alguém para o levarmos para a cama e, por mais que eu lhe diga que na cama está ele, não acredita, fica todo zangado, diz que eu sou teimosa e que tu é que tens que vir cá para resolver isto'. E eu, ouvindo aquela barafunda toda, fiquei cheia de pena. Já nem me parece o meu pai, já pouco tem do que era o meu pai antes disto.
Há bocado, quando liguei de novo, já estava normal. Tinha dormido a sesta e acordado normal, nem se devia lembrar das confusões de antes. A minha mãe já se habituou: 'É assim, nada a fazer'. Pois é. Mas custa.
Há bocado, quando liguei de novo, já estava normal. Tinha dormido a sesta e acordado normal, nem se devia lembrar das confusões de antes. A minha mãe já se habituou: 'É assim, nada a fazer'. Pois é. Mas custa.
A qualquer momento, a qualquer de nós, pode acontecer uma coisa destas, ou a nós ou aos nossos. E temos que saber aceitar e, enquanto isso não acontece, devemos viver, gostar de viver, aproveitar a vida, viver bem, sentindo-nos agradecidos por estarmos bem.
Dito assim parece conversa oca. Mas sinto tanto isto, tanto. Cada vez mais.
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Bem. Não quero que isto soe tristonho até porque não estou triste. De qualquer forma, pelo sim, pelo não, que entrem os meus amigos do circo voador.
A tradução é miserável o que ajuda a que a coisa fique ainda mais absurda.
Dr Larch, o Psiquiatra - pela mão dos fabulosos Monty Phyton
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As fotografias da gata Kotleta são da autoria de Kristina Makeeva
Nelson Freire interpreta Arabesque Opus 18 (C) de R Schumann
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Mas, já agora, deixem que manifeste a minha perplexidade. Ontem contei-vos que uma coisa que escrevi em Outubro de 2014 sobre a Cristina Ferreira, amiga de Marco António Costa e de outros ilustres barões do PSD, tinha tido, nas 24 horas anteriores, para cima de mil e tal visitas, não foi? Pois, imagine-se que juntando com as visitas de hoje, já vai em mais de 3.000. Curioso.
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Desejo-vos, meus Caros Leitores, um sábado muito bom.
A seriedade e a compostura são estados frágeis. As únicas constantes da vida são o amor e o riso. Rita
ResponderEliminarTem razão, Rita. Belo comentário este seu. Obrigada.
ResponderEliminarUm belo sábado!