segunda-feira, fevereiro 29, 2016

Um cavalo no meio dos livros





O programa era bom, um intervalo num dia sem história apesar de complicado: primeiro um pequeno passeio, depois almoço num lugar agradável. Mas os imprevistos acontecem. O almoço teria que acabar mais cedo porque uma súbita reunião tinha aparecido ao outro conviva e, ainda por cima, com tanta chuva, eu cheguei atrasada. Por isso, à última hora, ajustámos a combinação: suprimiu-se o passeio e o almoço foi num restaurante mais perto e mais rápido.

Contudo, no fim, já eu sozinha, apeteceu-me não abdicar do passeio, não o original mas qualquer outro. Então fui andando devagar, vendo os prédios da rua, as árvores, as montras. De repente, uma livraria despertou o meu interesse. Tantas vezes já ali tinha passado, mas sempre de carro, nunca tinha reparado. Estava fechada, segui. Mas depois fiquei a pensar: que livraria era aquela? Aliás, fiquei na dúvida se seria mesmo uma livraria. Voltei atrás. Sim, livraria mas talvez alfarrabista. A montra escassa. Escuro lá dentro, não percebi bem. Espreitei. Fui até à porta para ver se via a hora de abertura. Espanto. Uma pequena tabuleta dizia 'aberto'. Empurrei ao de leve. 

Uns degraus. Pouca luz. Livros por todo o lado, em estantes, em mesas, pequenos montes, livros muito antigos, alguns pareciam ter pó impregnado, as folhas já secas. Capas de pele em que apetece passar a mão, mas não, algum receio de estragar. Cores quase douradas, o papel tingido pelo tempo, a pele tisnada do sol.


Ao ir para o outro lado da loja, reparo, então, num grande cavalo. Fico espantada: um cavalo no meio de um alfarrabista? Enorme, em tamanho natural, negro. Não sei de que material, talvez resina sintética, não sei. Como não reparei eu, logo, num cavalo daqueles ali no meio dos livros? E o que está aquele cavalo ali a fazer? Decoração? Objecto para venda? Que estranho.


Então, estando eu ainda perplexa, reparando no cavalo, eis que, lá ao fundo, um vulto se levanta. Cumprimenta, pergunta se pode ser útil. Vejo, então, que, ao fundo, numa secretária cheia de livros, iluminada por um pequeno candeeiro, estava o livreiro. 

Digo que não, que estou apenas a ver, que não conhecia. O senhor que 'esteja à vontade', volta a sentar-se. E eu, ali ando, de estante em estante. Livros variados, antigos, muito antigos, outros nem tanto, colecções, séries, livros avulso, naqueles em que vejo o preço vejo que são bons preços, noutros tenho medo de mexer. Depois passo junto ao livreiro, está entretido lá na sua vida. Sinto-me quase uma intrusa, como se estivesse ali em turismo num tal lugar que parece ser de culto. Tenho vontade de lhe perguntar sobre a sua actividade mas não gosto de ser indiscreta nem quero perturbar o sossego bom de quem ali parece viver entre preciosidades.


Depois, agradeço, despeço-me, subo os degraus, saio para a rua. Chove, está frio.

Ao lado, um antiquário, um espaço amplo, peças de qualidade, vejo que também leiloeiro. Também nunca tinha visto. Passa-se à pressa, de carro, se se estaciona é para ir à pressa para algum lugar. A vida nisto. Nunca se pára, tudo nos é estranho. Entro. Uma senhora numa secretária da entrada ao telefone, conversa de negócios. Lá dentro um casal, homem e mulher com um catálogo na mão, atentamente inspeccionando cada peça, daquelas pessoas de quem se diz terem ar de ser 'de posses'. Bons móveis, belos quadros, bibelots com muito bom ar. Há sempre silêncio nestes lugares. O casal opinava em surdina sobre o que via, consultava o catálogo. E eu via as peças, via-os a eles. Desceram ao piso de baixo. Tive vontade de ir mas não quis perturbá-los.

Saí.

Depois apeteceu-me ir para um jardim. Fui passear. O tempo já era escasso mas, ainda assim, o cheiro da terra molhada, as árvores, a chuva, os pássaros eram apelo grande. Por ali andava, já a ver as horas, tinha que ir, quando, de entre as árvores, surgiu um vulto. Tinha chapéu e protegia-se da chuva. Pareceu-me o livreiro.


Depois esqueci-me, Até que, há pouco, ao ler o belo texto Oslo Nye Antikvariat, principescamente ilustrado com as fotografias do lugar de que ali se fala, me deu vontade de falar nisto. Mas não é nada de especial, isto de aqui falo. É sobretudo a graça de haver um grande cavalo preto no meio de livros belos como jóias, num lugar silencioso e bom. E de, ao lado daquela gruta maravilhosa, haver um antiquário com peças tão valiosas. E de, ao pé, haver um jardim tão bonito. 

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Desejo-vos, meus Caros Leitores, uma boa semana a começar já por esta segunda-feira.

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4 comentários:

  1. Sempre proveitosos os seus passeios e não importa se chove ou se faz sol, o que é mesmo importante é que se sinta feliz nas suas deambulações.
    Agora uma coisa que ando há tempo para lhe perguntar e que me lembrei hoje: lembra-se da Maria (Maga) do blogue Alcatruzes da Roda? Tenho-me lembrado dela ao longo destes últimos meses. Sei que esteve doente, pelo que escreveu na última postagem, mas já lá vão três anos e nunca mais soube nada.
    Desculpe estar aqui com esta conversa mas é uma forma de tentar saber o que se tem passado.
    Abraços apertados.

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  2. Olá bom dia,

    e obrigado pelo link que fala da loja de alfarrabista que (infelizmente), já não existe.

    Bonito sítio este, do post com a estátua do cavalo preto. Onde é isto, em Lisboa?

    Com um abraço de cá,

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  3. Olá, bom dia,

    É a Livraria Artes e Letras perto da Gulbenkian.

    http://www.arteseletras.com.pt/

    Aquele cavalo ali é do além... :)

    Um abraço!

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  4. Olá Teté,

    Nunca mais soube dela. Uma vez perguntei por ela a uma pessoa que falava com ela via Facebook e disseram que estava bem. Mas nunca mais tive contacto. Tomara que esteja bem.

    Um beijinho, Teté.

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