domingo, janeiro 03, 2016

Uma historinha de um erotismo muito inocente


Vinha no carro, ouvíamos música, cantávamos. Então, quando me estava a dar o sono, lembrei-me de dar uma curva pela blogosfera. Li alguns textos recentes e, como sempre, surpreendi-me com a qualidade. Há pessoas que escrevem tão bem. Espreitei as estatísticas do meu blog. E então deparei-me com uma entrada no google que trouxe quem pesquisava até ao Um Jeito Manso e que me surpreendeu: alguém escreveu 'erotismo inocente' e o algoritmo de pesquisa da google, por algum curioso motivo, achou que essa pessoa aqui encontraria a resposta. Agora que liguei o computador tentei fazer o mesmo e a mim o google já não me coloca cá dentro. Se calhar tem um exit que comenta: 'Querias ver se me enganavas? Vai ver se enganas outro. Cá dentro já tu cá estás, ó espertinha'. Ou, melhor: às tantas, acha que, se me apetece ler alguma coisa que se pareça com erotismo inocente, pois que a escreva eu.

Não sei. Há mistérios nos algoritmos que fazem mexer os motores de busca. Gostaria de trabalhar numa coisa assim: deve ser fascinante construir mecanismos de indexação inteligente, de correspondência estruturada, qualquer coisa muito próxima da inteligência artificial. 

Mas adiante. Tenho estado aqui a pensar: será que a pessoa que estava numa de erotismo inocente se deu por satisfeita com o que aqui encontrou? É certo que já escrevi muito contozinho pretensamente caliente, muita rêverie tresloucada, mas não sei.

Por isso, com este meu lado de santa, não querendo defraudar as expectativas dos Leitores, pensei que, por via das dúvidas, mais valia era escrever qualquer coisa fresca (leia-se: nova) que possa encaixar no género. Portanto, vamos lá a isso.
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Pequena Love Story nesta quadra festiva


'Selvagem é o vento'


Por esta altura, costumam organizar um grande jantar de Natal. No fim, por altura das despedidas e dos votos, a todos ele desejou boas festas, disse umas graças relacionadas com presentes, com a fartura que o Costa tem para distribuir, e, quando chegou ao pé dela, ainda vinha a rir com a gracinha. Fazia tudo para a provocar. Acrescentou 'Grande Costa!'. Ela encolheu os ombros. Fazer o quê? Quando ele lhe desejou bom natal e bom ano novo, ao beijarem-se, ela segredou 'Reaccionário' e ele afastou-se ligeiramente como que ficando ofendido e, apesar de geralmente só dar um beijo, reaproximou-se para um segundo, enquanto sussurrou, como se a acusasse: Wild. Ela respondeu muito baixo, para que só ele a ouvisse: Wild is the wind.



E prosseguiu, ele, distribuindo cumprimentos enquanto ela voltou ao telefonema que tinha interrompido.

Passado um bocado, quando estava a preparar-se para sair, uma mensagem: 'Wild is the wind? A sério?'

Ela sorriu. E limitou-se a responder: 'Daqui por meia hora em minha casa. Mas vá preparado que o presente de natal lhe vai custar caro.'

Mal teve tempo de chegar a casa. Quando se estava a preparar para mudar de roupa, tocou a campainha. Disse-lhe pelo intercomunicador: 'Sabe o código. Abra a porta'. Quando ele assomou à entrada, viu-a a descer a escada. Estacou. 'Eia... Mal chego e já estou a receber o presente. E que presente...!' e mal pestanejava, nem querendo crer no que os seus olhos viam. Como que indiferente ao espanto dele, com ar de reprovação, ela disse: 'Excessivamente pontual, doutor'. Ele olhava-a em silêncio. Ela acrescentou 'Já viu? Agora tenho que vir recebê-lo assim, em roupa interior. Não me fica bem'.


Ele sorriu: 'Fica. Fica até muito bem'.

Quando chegou ao pé dele, percebendo que ele a queria agarrar, fez um ar de censura, e estendendo-lhe a mão, instou: 'Beije-me a mão, seja bem educado'.

Ele obedeceu. Segurou-lhe a mão, encostou-a de leve ao rosto. Depois puxou-a para si. Ela afastou-o, o braço esticado, a mão encostada ao peito dele, marcando bem a distância. 'Então, doutor, que confianças são essas? Alguém lhe deu permissão? Ai...!'

Depois, puxando-o pela gravata, levou-o escada acima. Enquanto subiam, perguntou-lhe: 'Vem preparado? Não lhe vai sair barato, já o avisei.'. Ele respondeu: 'Não a desiludirei, esteja descansada'. Ainda assim, ela acrescentou, céptica: 'Já vou ver isso'.

Escolheu uma música. Pediu que ele tirasse a gravata, desabotoasse os botões de cima da camisa. Ele assim fez. Quando se ia sentar, ela disse 'Não. De pé. Contra a janela, a olhar para mim.'

E, então, devagar, tirou o soutien. Como uma folha que se desprende da árvore, disse. Depois aproximou-se dele e, quando ele a ia agarrar, virou-se de costas e disse-lhe: Desaperte-me o corpete, por favor. Ele obedeceu. Quando o último colchete se soltou, ela fez um leve movimento e o corpete caíu, como uma folha, disse ela, afastando-se de novo. Depois as cuecas, como uma folha. Ele olhava-a.

Ela estava séria e ele também. Ele disse: 'Esse seu olhar'. E ela, sentindo o olhar cada vez líquido, respondeu 'Olhe-me. Olhe-me com esse seu olhar. Olhe-me'. Ele disse, 'Mesmo que quisesse, não conseguiria deixar de a olhar'. 

Depois reparou: 'As luvas'. E, devagar, uma e depois outra, ela tirou as luvas. Em voz baixa, ele pediu, 'Não tire mais nada'. Ela respondeu-lhe: 'Para que veja que não sou wild, vou fazer-lhe a vontade'. E então, assim, apenas com as meias e os sapatos altos, sentou-se na chaise longue. 'Vá, doutor, mostre-me, então, o que tem para mim'


Ele disse, 'Mostro. Diga o que quer. Já sabe, é à votre seul désir'.

Ela sorriu: 'Sabe muito...'. Ele respondeu: 'Não o suficiente'. Ela disse: 'Não vou discutir. Olhe, quero Borges. Mas com sentimento, em voz baixa'. Ele sorriu também: 'Os seus desejos são ordens, milady. Em português?'. Ela sussurrou, antecipando o prazer, 'No original'.

Ele aproximou-se, sentou-se aos pés dela, e, olhando-a nos olhos, disse:

Ni la intimidad de tu frente clara como una fiesta 
ni la costumbre de tu cuerpo, aún misterioso y tácito y de niña, 
ni la sucesión de tu vida asumiendo palabras o silencios 
serán favor tan misterioso 
como el mirar tu sueño implicado 
en la vigilia de mis brazos. 
Virgen milagrosamente otra vez por la virtud absolutoria del sueño, 
quieta y resplandeciente como una dicha que la memoria elige, 
me darás esa orilla de tu vida que tú misma no tienes, 
Arrojado a quietud 
divisaré esa playa última de tu ser 
y te veré por vez primera, quizá, 
como Dios ha de verte, 
desbaratada la ficción del Tiempo 
sin el amor, sin mí.


'Um pouco triste, doutor. Mas tão belo, tão belo'. Então puxou-o a si, abraçou-o, disse-lhe palavras de amor, deixou que ele a beijasse, e pediu-lhe Mais e ele foi percorrendo todo o seu corpo enquanto as palavras a iam acariciando e a voz ia sendo cada vez mais lenta, mais cava, e ela ia-o interrompendo, beijando, mas sempre dizendo Não páre. E ele, cada vez mais lentamente, foi dizendo:

Lunas, marfiles, instrumentos, rosas, 
lámparas y la línea de Durero, 
las nueve cifras y el cambiante cero, 
debo fingir que existen esas cosas. 

Debo fingir que en el pasado fueron 
Persépolis y Roma y que una arena 
sutil midió la suerte de la almena 
que los siglos de hierro deshicieron. 

Debo fingir las armas y la pira 
de la epopeya y los pesados mares 
que roen de la tierra los pilares. 

Debo fingir que hay otros. Es mentira. 
Sólo tú eres. Tú, mi desventura 
y mi ventura, inagotable y pura.

Ela repetiu-lhe ao ouvido, como se lhe segredasse, sentindo-o arrepiado, Tú, mi desventura y mi ventura, inagotable y pura. E ele beijou-a muito, muito, amou-a muito, muito e ela amou-o muito, muito.

Depois, corpo contra corpo, ele disse ainda:

Se precisaron todas esas cosas 
para que nuestras manos se encontraran.

E ela abraçou-se ainda mais, pele contra pele, vontade de se fundir nele, toda, toda. Para sempre. 

Depois, porque ela tremesse, talvez frio, talvez apenas um grande amor, ele trouxe-lhe o soutien e a camisa. Ela disse, maliciosa: 'E as cuecas, não?' Ele sorriu. Depois, dengosa, pediu-lhe: 'Vista-me'. Ele vestiu-a. Depois foi a sua vez de fazer um pedido: 'Deixe-me fotografá-la; está tão bonita'. Ela disse que sim, 'E faz favor de, depois, pôr a fotografia numa moldura, em cima da sua secretária'. Ele riu. E fotografou-a. Várias vezes. 'Aproveite que hoje eu estou boazinha', disse ela. Ele corrigiu: 'Boazona'. Ela zangou-se 'Não seja vulgar'.

Sorriam. Sentiam-se felizes.


Mais tarde, ela disse, 'Olhe, não tinha que ir ainda tratar de uns assuntos? Vá, xô, que eu estou perdida de sono'. Ele resistiu: 'Já me está a despachar?! Sou o quê? Um objecto pour votre seul plaisir?'. Ela zangou-se: 'Claro. Pensava o quê? Que era o meu chevalier? Ora, ora. E vá, não gosto de choraminguices, já sabe. Eu levo-o à porta'.

Ele beijou-a e disse que não era preciso. E que ia ao carro buscar uma coisa, que voltava num minuto. E voltou. Trazia um ramo de rosas. Tão belas as rosas que ela se comoveu, 'Surpreende-me sempre'. E então ele disse: 'Descanse, durma, eu fico aqui até que adormeça'. 

E, uma a uma, foi colocando rosas em volta do rosto da amada. Antes de adormecer, sentindo o suave perfume das flores, ela ainda lhe sorriu 'Eu não lhe disse que wild is the wind? Eu sou mansinha, mansinha'. Ele beijou-a ao de leve na testa, depois nos lábios. Mon amour.


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O primeiro poema é Amorosa anticipación, o segundo é El enamorado e o pequeno excerto é o final de Las causas - todos poemas, bem entendido, de Jorge Luis Borges. Lá em cima Nina Simone interpreta Wild is the wind. As fotografias mostram Kate Moss.

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[Se estiverem para aí virados, poderão descer para ler qualquer coisa sobre um (o único?) dos debates de hoje: a tentadora Maria de Belém e o santo ex-Padre Edgar]

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4 comentários:

  1. dengosa?? nem num folheto de doenças ultramarinas tal barbarismo cai bem...

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  2. Caro Anónimo/a:

    den·go·so |ô|

    1. Que tem muita denguice.

    "dengoso", in Dicionário Priberam da Língua Portuguesa [em linha], 2008-2013,
    http://www.priberam.pt/dlpo/dengoso [consultado em 03-01-2016].

    Denguice = Requebro afectado na persuasão de agradar.

    "denguice", in Dicionário Priberam da Língua Portuguesa [em linha], 2008-2013,
    http://www.priberam.pt/dlpo/denguice [consultado em 03-01-2016].

    Certo?

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  3. Right... I stand corrected

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  4. aquela lingerie deixa qualquer um com os olhos em bico. Borges e um tango de gardel, seriam a trilogia perfeita.

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