Chove muito. Ouço a chuva bater no empedrado, escorrer pela estreita rua inclinada. Aqui dentro está quente, há um perfume agradável no ar, o ambiente é envolvente. Apenas uma luz quente e discreta ao meu lado, escrevo com pouca luz. Fui à janela ver a chuva. As muralhas estão iluminadas, o cenário não podia ser mais romântico. Ouço, baixo, a música que também poderão ouvir.
Há pouco, ao fim da tarde, estive a ler e li sobre amizades frágeis ou dúbias, sobre amores desencontrados, Madame de Staël que amou D. Pedro de Sousa Holstein, futuro duque de Palmela, bem mais novo que ela. Li sobre as suas cartas, li como o desacerto os levou por caminhos divergentes. Depois, ambos tiveram outros amores, a vida continuou -- sempre continua. Li sobre Camões ou livros que se lêem cedo demais. Ou sobre a melancolia. É o livro Biblioteca de Pedro Mexia. Crónicas curtas, bem escritas, temas diversos, sempre interessantes.
De vez em quando adormecia, e é tão bom sentir o sono a vir devagarinho, depois acordava, lia, depois sentia de novo o sono a querer vir. Levantava-me, espreitava a janela, sossegada a vila, sossegada eu.
Tinha andado, de dia, pela vila, encantada, sempre encantada aqui. Frio e vento, as folhas rodopiando nas ruas, mas os lugares onde se pode entrar são acolhedores, há uma cor suave nas cerâmicas, nos bordados, nos recantos, nos enfeites.
Nas paredes de fora das casas há coisas assim E não sei se há ternura se alegria se poesia numa coisa assim mas é muito bom de ver |
Sto António à janela |
As Caldas da Rainha aqui bem perto, pois então |
Apetece entrar para ver os santos, os presépios, os pequenos altares populares |
Varandins, azulejos e um rodopiar de folhas ao sabor do vento |
Encanto-me: cada pequeno pormenor, cada vista iluminada, tudo me faz parar para ver melhor. O meu marido diz que já andei mil vezes por estes lugares, que não há nada de novo para eu estar como se nunca tivesse visto. Respondo-lhe que me impressiona que tantos anos de convívio comigo não despertem nele o sentido estético e a urgência da beleza. Ri-se e diz que nem vai responder, tamanha a maluquice. Rio também, dou-lhe o braço e prossigo.
É um sobe e desce nas ruelas, escadinhas, canteiros, vasos floridos e, ao longe, uma paisagem serena |
Uma loja tem cortinas na porta, como se ao transpor a portada nos esperassem segredos, intimidades.
Há pouca gente nas ruas, são sobretudo brasileiros. Um virou-se para mim, sorrindo, e disse: 'Cê é brasileira, não é? Se vê logo, tem todo o ar de ser brasileira. É, não é?'. Muitas vezes, especialmente quando eu usava o cabelo quase rapado, me diziam que eu tinha ar de francesa. Brasileira nunca ninguém tinha dito. Esclareci que não e ele ainda teimou: 'Mas olha que tem todo o ar de ser'. Antes tinha querido saber, junto da livreira, que autores brasileiros se vendiam mais em Portugal. Com ar desafiador, disse: 'Paulo Coelho? Vai, me diz'. A livreira disse que não: Clarice Lispector. E ele desfez-se, sorriu agradado e contou, logo ali, a história de Clarice, a brasileira que nasceu ucraniana.
Disseram-nos, agora à noite, que a partir de Fevereiro, Março, há muito mais gente na vila. Mas para mim está muito bom assim.
A igreja-livraria entre a renda das folhas que o inverno ainda permite |
Agora ainda mais. Um homem teve uma ideia e da ideia fez um sonho e do sonho nasceu uma vila literária. José Pinho é um homem feito de livros, uma pessoa fascinante. Há livros por todo o lado e livrarias nos lugares mais improváveis - parece magia, loucura, coisa do além; mas é, afinal, fruto do sonho de um homem simples, de olhos luminosos e sorriso inocente.
Há livros no que era uma igreja e que agora tem recantos, em cima, em baixo, atrás de pilares, sobre o varandim. E há livros novos, usados, antigos, nunca vistos, coisa de loucos: de tudo um pouco.
E há livros no mercado biológico, onde se vende pão normal e pão de fruta, limões, laranjas, compotas, mel, bolinhos e biscoitos. Muitos, muitos livros.
Uma brasileira dizia para a filha: 'isto é que nem um sebo' e o sotaque gracioso dela trazia um toque ainda mais exótico àquele maravilhoso lugar.
Ao fundo, mal se vê na fotografia, ao pé dos livros, a secção de frutaria e mercearia |
Aqui, sim, vê-se o mercadinho biológico o meio da imensa livraria |
E há livros em caixotes, livros em mesas, em cima de cadeiras, em estantes imensas. E há livros em inglês, em francês, de poesia, de viagens, literatura normal, edições antiquíssimas. Uma coisa de perder a cabeça. Perdi. Perdi mesmo. Não gastei muito dinheiro porque há livros baratos, a 4 ou 5 euros e grande parte dos que trouxe andaram por aí. Um delírio, isto, para quem, como eu, tem a paixão dos livros.
E há livros numa antiga adega, num lugar em que só sabendo ou estando com atenção, num lugar onde se pode lanchar e estar serenamente a descansar, a ler, a conversar.
E há mais. Parece mesmo um sonho. É como se o prazer dos livros se tivesse materializado de uma forma quase inimaginável.
Fomos jantar a um restaurante muito agradável, comida boa mesmo, numa aldeia a 4 kms, Usseira. Pois lá estavam livros por todo o lado, até na casa de banho.
Mas os livros por estas bandas não são objectos inanimados, sacralizados: não, por aqui eles estão misturados -- ou misturados uns com os outros numa alegre anarquia ou misturados com toda a espécie de objectos.
Mas os livros por estas bandas não são objectos inanimados, sacralizados: não, por aqui eles estão misturados -- ou misturados uns com os outros numa alegre anarquia ou misturados com toda a espécie de objectos.
(Continua a chover copiosamente e a chuva, talvez porque a janela está quase ao nível da rua empedrada, saltita e corre como um riacho musical; que som tão bom)
Temo maçar-vos. Tenho este meu lado infantil que se deixa entusiasmar e quase enfeitiçar por coisas assim, incomuns. Como parece que a minha memória retém impressões e pouco mais, quando revejo as coisas, parece que as redescubro, que nunca tinha visto coisa igual.
Estantes com livros? Que delírio é este por estar entre livros?
Não sei dizer. Só sei dizer que poder estar entre livros, muitos livros, milhares e milhares de livros, estantes até ao tecto, muitas estantes, livros anacrónicos, mesmo livros que eu jamais lerei, livros de toda a espécie e feitio -- me deixa assim, neste estado de felicidade.
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Vou parar. Não quero cansar-vos mas acho que Óbidos merece mesmo ser visitada, divulgada. Ler é muito bom, escrever também -- e os escritores, editores e livreiros poderem ter uma vila dedicada aos livros deve ser, para eles, um prazer e um orgulho.
[Alonguei-me demais. Tantas vezes me dizem que quem procura os blogs quer ler textos curtos, não longos lençóis de palavras. Mas desta vez não foi só o meu gosto pela escrita -- claro que podia ter mostrado menos fotografias e sido menos descritiva, mas há tantos leitores que são de longe ou que não têm possibilidade de se deslocar e vir conhecer que acho que, pelo menos, assim, talvez possam ficar com uma ideia. Pelo menos, eu gostava de achar que sim].
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Ah, esqueci-me de contar uma coisa. Óbidos é também a vila da ginginha e do chocolate e, portanto, com o frio que estava, obviamente, não dispensámos esse conforto regional: cada um de nós bebeu a sua ginja em copo de chocolate (ou seja, depois de bebermos a aguardente comemos o copo). Que bem me soube. E eu que, dantes, ao mínimo gole de bebida alcoólica fica perdida de sono e de vontade de rir, agora nada me faz diferença. Gosto, bebo e não me provoca qualquer alteração. Coisas boas que a idade me tem trazido, é o que é. O meu marido ri-se, diz que estou no bom caminho.
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(apesar de serem de 2013 acho que mostram bem o espírito do local)
Alguns vídeos relativos ao Festival Literário de Óbidos
(apesar de serem de 2013 acho que mostram bem o espírito do local)
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E, agora que a chuva serenou, vou ler um pouco mais antes de dormir que amanhã é outro dia.
A primeira fotografia e as quatro últimas dizem respeito ao The Literary Man Hotel e -- read my lips -- que, não tarda, vai dar que falar.
Note-se que não tenho participação nos resultados do hotel nem conheço os donos (os mesmo do premiado Hotel Rio do Prado)
...E, agora que a chuva serenou, vou ler um pouco mais antes de dormir que amanhã é outro dia.
Desejo-vos, meus Caros Leitores, uma boa semana a começar já por esta segunda-feira.
Bons sonhos, bons dias, muita saúde, alegria e dinheiro para os gastos.
E sorte (que é coisa que dá sempre jeito).
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Bons sonhos, bons dias, muita saúde, alegria e dinheiro para os gastos.
E sorte (que é coisa que dá sempre jeito).
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