domingo, janeiro 17, 2016

Memória e ternura junto à praia da Lenta, no lugar de Lovelhe, numa margem do Rio Minho


Caminhava rente às margens do Minho, e mais logo já vos mostrarei como tem razão o Leitor que, em comentário lá mais para baixo, diz que, por esta altura, o Minho em geral ganuha umas tonalidades tão suaves e fica com um ar tão puro que até é um crime não ir lá no inverno.

Ouvia cânticos religiosos, uma Ave Maria e outros, e, de vez em quando, uma voz feminina isolava-se e era só a sua voz que se ouvia, e tudo aquilo parecia impossível, o rio belíssimo, os pássaros, só nós dois, e aqueles cantares como se descessem dos céus para banhar aquele momento perfeito.

Mais tarde ouviu-se o que pareceu ser a voz de um padre e percebemos que deveria ser alguma missa transmitida para toda a vila ou talvez estivessem a cantar as janeiras. Não sei. O que sei é que pensei que jamais poderia descrever o que se estava ali a passar. Ninguém, ninguém por ali. As margens do rio, lindas, e, não sabemos de onde, cantares como que entoadas por anjos.

Até que, de uma das margens de um estreito braço do rio, naquele lugar chamado Lovelhe perto de uma praia chamada Praia da Lenta, reparei num arco verde, parecia-me que com florzinhas, não percebi bem. Quando passei para o outro lado, aproximei-me, espreitei, fotografei. 



Trepadeiras envolviam o arco e as trepadeiras estavam floridas. E, no chão, vasinhos, pequenos arranjos de flores, pedras e pedrinha mais pequeninass, pequenos seixos coloridos, caixinhas com florzinhas, uma pequena candeia.


Presas no arco outra pequena candeia, e mais bonequinhos, passarinhos a fingir, uma coisa amorosa que ali, num lugar daqueles, no meio da natureza, parecia quase inquietante.


Em cima, um nome, Carla, e uma data, 24-07-2011. Mais à frente descobri um senhor que apanhava couves, a única presença humana para além de nós dois. Dirigi-me a ele e perguntei o que era aquilo. Levantou-se para me falar e explicou-me:
Há uns anos, numa madrugada, um carro com dois casais de jovens embateu num poste -- e apontou um poste envolto em ramos de flores:
e a rapariga que ia a conduzir não conseguiu segurar o carro, despistou-se e, com tamanha falta de sorte, aqui que há árvores a toda a volta, passou pelo meio delas, e foi entrar no rio. Um rapaz e uma rapariga morreram, afogaram-se, a rapariga que ia a conduzir e outro rapaz salvaram-se. E desde aí, todos os meses, alguém vem aqui pôr flores e juntar coisas, o que vê. 

Sorria enquanto me contava isto mas era um sorriso triste, quase de perplexidade inquieta. Eu, nestas alturas, quando fico perturbada, disfarço a perturbação com perguntas práticas, despropositadas. É involuntário e acontece sempre. E, portanto, sem querer, perguntei: Mas o rio aqui deve ser baixo, como aconteceu isso, afogarem-se? Esclareceu-me que não, que o rio aqui não é nada baixo, que é até muito fundo, que é perigoso. 

Afastei-me, inquieta. Deve ser terrível, uma coisa mesmo terrível, estar num automóvel com outras pessoas, sofrer um acidente deste tipo, assustador, o carro virado dentro de água, noite escura, que aflição medonha; e, depois, saber que alguns dos que lá estavam morreram. Para quem ia a conduzir, então, deve ser um pesadelo, um inferno. Presumo que só com forte acompanhamento psicológico se sobreviva a um peso esmagador como este, se consiga ir em frente. 

Fui agora à procura da notícia. Encontrei-a. Ao ouvir o senhor a contar-me, e ao ler agora a notícia, ocorreu-me que deve ser a rapariga que ia a conduzir e que sobreviveu que ali vai relembrar os que perderam a vida nessa noite terrível. Mas não sei dado que há ali uma placa com um único nome. Pode ser a mãe ou o namorado da rapariga espanhola que morreu, Carla. Seja quem for, fá-lo com um carinho imenso, parece querer fazer agradinhos à pessoa que um dia amou e que ainda vive no seu coração. Mês após mês, e já lá vão quase cinco anos, vai deixar lembrancinhas para quem perdeu naquele lugar tão belo mas tão perigoso. É muito triste, muito comovente

Hesitei em mostrar as fotografias e em falar disto: foi um acidente trágico e na ternura de quem vai ali deixar aqueles pequenos objectos parece haver uma dor funda, muito íntima. Mas, uma vez que está ali à vista, num lugar público, de passagem, e como a notícia veio nos jornais, resolvi superar a minha hesitação e trazer aqui este tema. Faço-o com pudor, a medo, mas faço-o quase como solidariedade, para dizer que me tocou a dor, a tristeza, que compreendo a vontade de manter viva a memória dos que se foram, compreendo e gostava de saber escrever aqui a palavra certa para que, quem me leia e esteja nas mesmas circunstâncias, de ter perdido seres amados, se possa sentir confortado por saber que não está só. Mas, como não sei, com o devido respeito dou a palavra a quem o sabe.

E mostro uma outra fotografia. Para a fazer tive que passar, de novo, para a outra margem e usar, em força, o zoom. Só agora, ao escolhê-la para aqui, reparei no halo que, misteriosamente, não aparece em mais nenhuma fotografia.
No local onde o carro se terá afundado, sobre as águas havia um manto de limos verdes. Sobre esse manto, dois pássaros, muito serenos, encontravam-se pousados, quase imóveis, como se olhassem com tranquilidade o tempo que passa, como se estivessem a velar a memória dos dois jovens cuja vida se perdeu naquela noite terrível, como se dissessem que a vida ressurge, transforma-se, pode aparecer no corpo dos pássaros, pode aparecer no voo que desenham quando alcançam os grandes espaços, pode aparecer na luz que os banha, pode aparecer no canto mágico que, dos céus, de vez em quando, desce para os envolver. Não sei. Mas gostava de acreditar que sempre viverão aqueles que têm quem os guarde no coração e os recorde com carinho, quase como se, quem se foi, vivesse agora dentro de um sonho bom, muito bom, muito apaziguador.

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