domingo, novembro 29, 2015

As flores obscenas, as flores cómicas, as flores trágicas, as derrocadas de rosas saem de todos os lados. O típico exemplo da pureza ofuscante e inadmissível.




Tantos talentos acabaram por levá-lo, na assentada de um só ano, à Academia Royal de Belgique e à Académie Française. E a fazer viver ao lado deles o êxito de uma sedução pessoal que o rodeou de homens e mulheres elegantes, de intelectuais, de outros anjos que se chamaram Marcel Khill, Jean Marais e Edouard Dermit.

Jean Cocteau , Picasso , Stravinsky & Hohlova - 1926


Em 1981, dezoito anos depois da sua morte, aconteceu a primeira edição francesa de O Livro Branco com nome de autor. 

O Livro Branco passava a ser o Cocteau assinado, não para ficar entre os seus melhores momentos em prosa mas como sua única confissão sexual directa e associada ao desejo do outro, de se fundir nele e através dele se realizar como narciso, também desejo de ver a sua preferência por rapazes incluída nas tolerâncias da sociedade onde vivia.

Já era uma época em que mais tempo e distância concediam ao contestado Cocteau, ao 'príncipe frívolo' dos anos trinta e quarenta, o direito às serenidades; em que as críticas se amaciavam com aquela memória do maestro que em singulares momentos da primeira metade do século XX tinha regido sinfonias marcantes da cultura francesa. 

Angelo Rinaldi pôde reconhecê-lo como 'ponto extremo de brilho no aforismo, na máxima e na fórmula', François Mauriac, desde há muito assustado com as entrelinhas 'pecaminosas do seu mundo mental, chegava a concordar que 'a morte lhe conferia um carácter de autenticidade', e Marguerite Yourcenar a encontrar-lhe 'uma grandeza estranha, muito próxima de um poder oculta'. 

Chegava o tempo de ser compreendido de outro modo o que fora observado apenas na dimensão prestidigitadora das palavras, na diversidade polifacetada que ele próprio defendia como recusa do colete ortopédico dos géneros (Le Secret Professionnel), de ao tempo enganar o hábito dissonante cantando de vinte formas diferentes e evitar, assim, o elogio do hábito e as nobres pedras de gelo (Plaint-chant), na afirmação provocatória que foi alvo, entre os surrealistas, de um demorado sarcasmo: o poeta é uma mentira que diz sempre a verdade (Secrets de Beauté).

Jean Cocteau por Diego Rivera
Cocteau morreu em 1963, a poucas horas de uma outra morte, da sua grande amiga Edith Piaf. Uma grande fraqueza física aconselhava aos médicos transfusões de sangue que o fariam prolongar-se sem glória num pouco mais de vida. 

Na frase da sua recusa à antipoesia desta técnica científica, talvez haja ressonância do título do seu mais velho filme: Nada substitui o sangue de um poeta.

E, tempos antes, tinha avisado: Façam de conta que choram, meus amigos, porque os poetas só fazem de conta que morrem.



[Excerto da apresentação de 'O Livro Branco, seguido de O Fantasma de Marselha' de Jean Cocteau, redigida por Aníbal Fernandes que é também o tradutor; os destaques do texto são da minha responsabilidade e a escolha das imagens também, claro]

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Início do livro


Por mais atrás que eu volte, e mesmo na idade em que o espírito ainda não influenciou os sentidos, encontro rastos do meu gosto por rapazes.

Sempre amei o sexo forte, que me parece legítimo chamar o belo sexo. Os meus problemas chegaram de uma sociedade que condena o raro como crime e nos obriga a modificar inclinações.
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Três factos decisivos me acodem à memória.

O meu pai vivia num pequeno castelo, perto de S. O castelo tinha um parque. No fundo do parque havia uma quinta e um tanque que não lhe pertenciam. Em troca dos lacticínios e dos ovos que o homem da quinta diariamente nos trazia, o meu pai tolerava-os sem vedação.


Numa manhã de Agosto vagueava eu no parque, a brincar aos caçadores com uma carabina carregada de espoletas, e oculto atrás de uma sebe esperava que um animal passasse, quando vi do meu esconderijo um rapaz da quinta, muito jovem, levar ao banho um cavalo da lavoura. Para entrar na água e por saber que nunca havia quem se aventurasse naquele fim de parque, cavalgava completamente nu e fazia o cavalo soprar a poucos metros de mim. O bronzeado do rosto, o pescoço, os braços, os pés, contrastavam com a pelagem branca e lembravam-me castanhas-da-índia a saltar das vagens, mas os sombreados não se ficavam por aí. Outro me atraía os olhares e ao centro tinha um enigma que se destacava com todo o pormenor.

Os meus ouvidos zumbiram. O meu rosto congestionou-se. Fiquei sem força nas pernas. Tinha o coração a bater como um coração de assassino. Sem saber como, perdi os sentidos e só me encontraram depois de uma busca que durou quatro horas. 

(...)
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Um encontro de mentes brilhantes
A propósito de Parade : Cocteau fala de Erik Satie, Picasso, Diaghilev



Parade



Je Suis Jean Cocteau

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Os desenhos são de Jean Cocteau.
O título do post é parte do que Genet escreveu a propósito da escrita de Cocteau.
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Lá em cima, Antony and the Johnsons interpretam Another World - "Flowers"


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E queiram, por favor, descer até ao post seguinte onde o River Man se passeia in heaven, lá onde a paz é absoluta e as cores parecem, por vezes, alinhar-se a la Barnett.

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