Em geral, não conhecemos nem nos importamos com o que é essencial à nossa vida. Prendemo-nos a pequenos nadas e ignoramos aquilo sem o qual dificilmente passamos.
Desconhecemos o nosso organismo; podemos ter uma doença grave a medrar dentro de nós e, porque o desconhecemos, continuamos a valorizar insignificantes disputas, rivalidades fúteis.
Não abençoamos mil vezes por dia a sorte de termos junto a nós, seja de que forma for (seja dentro da nossa casa, seja como familiar ou amigo com quem falamos regularmente, seja como amigo de quem estamos longe mas com quem trocamos palavras e afectos e com quem, quando estamos fisicamente juntos, conversamos como se estivéssemos por perto a toda a hora), não abençoamos mil vezes o facto de estarmos bem, de podermos caminhar, de podermos ver, de podermos ter autonomia. Até de podermos falar.
Uma vez uma tia do meu marido adoeceu. Era uma tia de quem eu gostava muito, uma mulher muito irónica, de uma ironia fininha, divertida. Não se percebia o que tinha porque a doença restringia-se a ter deixado de falar. E pôs-se de cama. Se lhe perguntavam se lhe doía alguma coisa, abanava a cabeça, que não. Se se sentia mal disposta, abanava a cabeça. Mas ficava na cama, sem falar. A irmã solteira com quem vivia chamou o médico a casa. O médico perguntou se não teria sofrido um choque emocional. Lembraram-se, então, que o gato que ambas adoravam -- um gato vadio que andava pelos telhados e que, ao fim do dia, vinha acolher-se ao conforto daquela casa tão bonita, tão bem decorada e de onde se via Lisboa até ao Tejo -- um dia, ao fugir, quase tinha ficado entalado pelo pescoço na porta que dava para varanda. Lembraram-se que temeram que, tal a força da porta ao fechar-se, ele ficasse estrangulado. Ela, em particular, a irmã lembrava-se bem, tinha soltado um grito de medo. Não tiveram filhos, tinham-se afeiçoado-se àquele gato insubmisso como se fora um filho rebelde. O médico disse que, então, talvez tivesse sido isso. Receitou um ansiolítico e que descansasse, se o corpo lhe pedia cama, pois que se se deixasse estar até se sentir melhor. Depois de uma semana em que tínhamos ouvido falar da intrigante história do súbito mutismo daquela tia de quem todos tanto gostávamos, veio então a explicação. Um fanico. Um chilique. Foi uma paródia.
Mas os dias passavam e ela naquilo, sem falar, e cada vez notando-se mais a angústia por não falar. Resolveram chamar de novo o médico. O médico estranhou não ter havido alteração, achou que ali havia coisa. Mandou-a ir a uma clínica fazer exames e tenho ideia que, logo nesse dia, ficou internada. Um tumor cerebral. Tinha que ser operada com urgência e a coisa era séria demais para as perspectivas poderem ser optimistas.
Fui vê-la no dia seguinte.
Sabendo o que tinha, começou a querer determinar algumas resoluções: para quem deveria ficar o cordão de ouro que tinha sido da mãe, o relógio, umas medalhas de ouro, coisas assim. Nesse dia, numa clínica ali nas Amoreiras, estávamos todos aflitos de roda dela, querendo perceber o que ela queria dizer mas nada lhe saía, de vez em quando, tal o esforço, lá saía um som, uma vagido. Diziam-lhe que não se preocupasse, que ia ficar boa, que se deixasse de querer distribuir os pertences. Mas ela queria tomar decisões. Fazia gestos, as pessoas punham-se a adivinhar e ela triste, desconsolada, outras vezes enervada, quase zangada, sem se conseguir comunicar. Arranjaram papel, ultimamente comunicava-se com papel mas, como estava deitada e talvez a doença também a afectasse nesse aspecto, a escrita já não lhe saía muito perceptível. Já não me lembro porquê mas tenho ideia que ainda se aborreceram uns com os outros, talvez uns a acharem que deveriam deixar que ela se esforçasse e outros a tentarem demovê-la. O que sei é que aquilo me fez uma tremenda impressão. Lembro-me que lhe fiz uma festa no cabelo e lhe disse que iria ficar boa, que, depois da operação, ia tudo voltar ao normal. Ela segurou na minha mão e, com um olhar muito triste, e apenas com os lábios, sem som, lamentou-se 'não consigo falar' - pelo menos assim o percebi. Saí de lá muito perturbada: pouco tempo antes ela estava bem, sem sintomas e, de repente, deixou de falar, toda a gente na brincadeira por ela ser tão maricas que apanhava um susto daqueles por causa de um gato e, afinal, tinha um problema tão sério.
Foi operada mas não viveu muito mais.
Sabendo o que tinha, começou a querer determinar algumas resoluções: para quem deveria ficar o cordão de ouro que tinha sido da mãe, o relógio, umas medalhas de ouro, coisas assim. Nesse dia, numa clínica ali nas Amoreiras, estávamos todos aflitos de roda dela, querendo perceber o que ela queria dizer mas nada lhe saía, de vez em quando, tal o esforço, lá saía um som, uma vagido. Diziam-lhe que não se preocupasse, que ia ficar boa, que se deixasse de querer distribuir os pertences. Mas ela queria tomar decisões. Fazia gestos, as pessoas punham-se a adivinhar e ela triste, desconsolada, outras vezes enervada, quase zangada, sem se conseguir comunicar. Arranjaram papel, ultimamente comunicava-se com papel mas, como estava deitada e talvez a doença também a afectasse nesse aspecto, a escrita já não lhe saía muito perceptível. Já não me lembro porquê mas tenho ideia que ainda se aborreceram uns com os outros, talvez uns a acharem que deveriam deixar que ela se esforçasse e outros a tentarem demovê-la. O que sei é que aquilo me fez uma tremenda impressão. Lembro-me que lhe fiz uma festa no cabelo e lhe disse que iria ficar boa, que, depois da operação, ia tudo voltar ao normal. Ela segurou na minha mão e, com um olhar muito triste, e apenas com os lábios, sem som, lamentou-se 'não consigo falar' - pelo menos assim o percebi. Saí de lá muito perturbada: pouco tempo antes ela estava bem, sem sintomas e, de repente, deixou de falar, toda a gente na brincadeira por ela ser tão maricas que apanhava um susto daqueles por causa de um gato e, afinal, tinha um problema tão sério.
Foi operada mas não viveu muito mais.
Depois desta tia, quantos mais familiares e amigos meus partiram? Nem sei. Em relação a quase todos, senti sempre que a grande injustiça, a maior de todas, residiu no facto de, antes, não se ter festejado a vida com a alegria e devoção que é devida aos verdadeiros milagres.
E vim parar aqui, imagine-se, quando antes estava a pensar em assuntos bem mais comezinhos: na sorte de termos água nas nossas torneiras, de termos electricidade, de podermos acender a luz, ligar as máquinas. Sabemos pouco de tudo isto, não ligamos, damos por bens adquirido. De onde vem a água, por onde passa, quantas pessoas trabalham para que nos chegue pura, sem interrupções, com a pressão devida? E a electricidade? Onde se forma, por onde vem, que espaços atravessa, como entra nas nossas casas, segura, contínua? Sem isso, os nossos quotidianos não teriam a qualidade que têm hoje, ficaríamos sem saber como adequar as nossas vidas, as cidades tornar-se-iam caóticas. As nossas vidas facilmente degenerariam num pesadelo.
E falo destas utilidades básicas mas poderia falar do que nos rodeia a nós, infinitamente pequenas criaturas, perdidas num infinitamente vasto espaço.
Abro um novo parêntesis.
Os cientistas andam intrigados. Há qualquer coisa no espaço que não se comporta como uma estrela normal. O Kepler espia a luz, a intrigante diminuição da sua intensidade, avaliam-se hipóteses, mas a estranheza persiste. Admite-se, ainda que com uma probabilidade remota, que se trate de uma enorme construção extraterrestre. Continua a ter nome de estrela, um daqueles nomes difíceis de fixar e que os cientistas dão aos corpos celestes como se fossem peças do imenso catálogo que, à nossa volta, está por estudar: KIC 8462852.
Enquanto desperdiçamos o tempo com assuntos de importância nula - agastando-nos com o que aquele disse ou escreveu, com a forma como aquela olhou para nós ou nos desdenhou, insignificâncias imateriais a que damos valor como se fossem determinantes - à nossa volta, múltiplos outros seres, desconhecidos, podem estar a vigiar-nos, a decidir sobre a nossa sorte. Ou não. Poderemos estar apenas sujeitos a infinitas combinações de acasos, vogando num imenso espaço imerso na mais absoluta aleatoriedade.
Mas há quem saiba dar valor ao que, de importante, temos na nossa vida. Há quem queira que isso mereça a atenção do nosso olhar ou a emoção que deve ser dedicada ao que, de facto, marca a nossa vida. Quando vejo a arte ao serviço de todos ou valorizando aquilo que é tão essencial à vida tal como a conhecemos, sinto que a natureza humana tem, em si, a grandiosidade que talvez nos salve.
As imagens que ilustram este texto mostram grandes construções metálicas que sustentam os cabos de alta tensão na Islândia. São, como dizem os autores, os arquitectos Jin Choi e Thomas Shine, cariátides modernas. A estas enormes figuras humanas chamaram eles Land of Giants. Comovem-me pela sua aparente leveza, pela poesia que se desprende dos seus corpos silenciosos.
Transcrevo, do seu site: “Like the statues of Easter Island, it is envisioned that these one hundred and fifty foot tall, modern caryatids will take on a quiet authority, belonging to their landscape yet serving the people, silently transporting electricity across all terrain, day and night, sunshine or snow.”
Acho a ideia fantástica e acho que aqueles gigantes feitos de transparências transformam a paisagem num lugar poético, verdadeiramente cheio de luz.
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A música é Time Forgets - Yiruma
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Nota Final
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Nota Final
Hoje não me apeteceu falar de política. Apeteceu-me caminhar por outras paragens. Mas, claro, não me é nada indiferente o rumo das coisas neste nosso retardado país de gente atada e medrosa.
Tenho ideia que um cão com pulgas desafiou o PS a dizer, de vez, se queria fazer parte de um governo do PSD e CDS. Acho que não há muitas dúvidas mas a comunicação social continua infestada: pafs e pró-pafs everywhere. Do pouco que ouvi (e estou a educar-me no sentido de me recusar a ouvir a cambada de efervescentes criaturas que opina histericamente sobre o tema como foi o caso, pareceu-me, do agora dominical catraio Mendes), parecia concluir-se que, se o PS não se prestar a servir de muleta àqueles desgovernados, todas as pragas se deslocarão do fim do mundo para arrasar de vez a vida dos portugueses. O que eles dizem é de uma tal indigência intelectual que ouvi-los é de gargalhada.
Não falo pelo PS, não sou militante. Mas votei no PS e portanto respondo por mim: não, não votei no PS para que o PS permitisse que os PàFs continuassem por mais quatro anos as patifarias que andaram a fazer nos últimos quatro.
Votei no PS justamente para pôr fim a isso. E estou em crer que, se António Costa, durante a campanha eleitoral, tivesse mostrado a garra que tem mostrado desde a noite das eleições, tê-las-ia ganho com uma perna às costas. Assim, descontentes com a brandura que mostrou, houve muitos potenciais eleitores que votaram no BE para mostrarem que queriam mesmo uma política de esquerda.
Pode ser que haja um ou outro que tenha votado no PS na esperança de que o PS se junte ao pote pafiano ou que tudo continue na mesma. Mas acredito que esses sejam uma escassa minoria, uma ou outra Clara desta vida.
Por isso, faz bem António Costa ao interpretar que o seu eleitorado pretende o fim da política absurda dos PàFs. Portanto, é bom que responda, alto e bom som, aos cães com pulgas da coligação PSD+CDS: vão-se catar.
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Desejo-vos, meus Caros leitores, uma boa semana a começar já por esta semana.
E que se sintam felizes, muito felizes.
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Pois é amiga, o PS faz bem dizer não à direita, mas a esquerda também
ResponderEliminarnão está a facilitar. Às tantas o PS fica sozinho e que restará a
António Costa? Passos Coelho vai ser indigitado, vai levar o programa
à Assembleia da República e há quem conte que alguns deputados do PS
do grupo Segurista votarão a favor do Governo. É nisto que a direita
e Cavaco estão a apostar. E esteja atenta à CDU.
Bjs.
Irene Alves
Exactamente: vão -se catar! É o que costumo dizer quando vejo o duo pafiano na tv. É que não se aguenta ouvi-los falar do PS. Fazem críticas que se aplicam, que nem luvas, a eles próprios.
ResponderEliminarMozart
Até me arrepiei.
ResponderEliminarÉ assim mesmo.
Dou os parabéns a António Costa. As toupeiras, como eu digo, vieram ao cimo e deu para perceber quem são, se é que alguém tivesse dúvidas.
A CFA nunca me enganou...talvez sensibilidade feminina - estou a perceber-te .
A escolha entre a dignidade e a prosperidade revela o carácter da pessoa (li algures e estou completamente de acordo) .
Um grande - bem haja para si.
À Leitora que me deixou um comentário que não publico por consideração já que apresenta um erro ortográfico (provavelmente um erro de digitação),
ResponderEliminarQuando falo no 'cão com pulgas' não me estou a referir às pessoas que votaram na coligação mas sim numa pessoa afecta à dita coligação que, não sei porquê, talvez pelo seu ar mal arranjado, é assim conhecida. Não fui eu que inventei essa alcunha embora, por acaso, até ache que lhe assenta bem... :)
E já uma vez o disse, quando me refiro à estatura de Marques Mendes, lamento mas também não posso receber direitos de autor. Como já aqui o contei uma vez, foram os seus próprios correlegionários quem puseram de parte a ideia de ele ir para a frente do PSD por ser baixinho, diziam que ninguém o levaria muito a sério. De resto, ele próprio brinca com a altura.
E é verdade, não gosto da política dos PàFs: tem sido nefasta para o País e tão farta estou de o denunciar que muitas vezes já só me apetece levar o assunto para a paródia.
Lamento se, como votante na coligação, não gosta de ler o que eu escrevo mas que hei-de eu fazer? Não gosto mesmo nem consigo disfarçar.
Agora a Cara Leitora pode fazer uma coisa: deixar de ler o que eu escrevo e, sobretudo, deixar os meus netos fora da conversa.
Desejo-lhe uma boa noite.