A consciência moral, que tantos insensatos têm ofendido e muitos mais renegado, é coisa que existe e existiu sempre, não foi uma invenção dos filósofos do Quaternário, quando a alma mal passava ainda de um projecto confuso. Com o andar dos tempos, mais as actividades da convivência e as trocas genéticas, acabámos por meter a consciência na cor do sangue e no sal das lágrimas, e, como se tanto fosse pouco, fizemos dos olhos uma espécie de espelhos virados para dentro, com o resultado, muitas vezes, de mostrarem eles sem reserva o que estávamos tratando de negar com a boca. Acresce a isto, que é geral, a circunstância particular de que, em espíritos simples, o remorso causado por um mal feito se confunde frequentemente com medos ancestrais de todo o tipo, donde resulta que o castigo do prevaricador acaba por ser, sem pau nem pedra, duas vezes o merecido.
Má para toda a gente, a situação, para os cegos, era catastrófica, uma vez que, segundo a expressão corrente, não podiam ver aonde iam nem onde punham os pés. Dava lástima vê-los a esbarrar nos carros abandonados, um após outro, esfolando as canelas, alguns caíam e choravam, Está aí alguém que me ajude a levantar, mas também os havia, brutos de desespero ou por natureza, que praguejavam e repeliam a mão benemérita que acudira a auxiliá-los, Deixe lá que a sua vez também lhe há-de chegar, então a compassiva pessoa assustava-se, fugia, perdia-se na espessura do nevoeiro branco, subitamente consciente do risco em que a sua bondade a tinha feito incorrer, quem sabe se para ir cegar uns metros adiante.
Diz-se a um cego, Estás livre, abre-se-lhe a porta que o separava do mundo, Vai, estás livre, tornamos a dizer-lhe, e ele não vai, ficou ali parado no meio da rua, ele e os outros, estão assustados, não sabem para onde ir, é que não há comparação entre viver num labirinto racional, como é, por definição, um manicómio, e aventurar-se, sem mão de guia nem trela de cão, no labirinto dementado da cidade, onde a memória para nada servirá, pois apenas será capaz de mostrar a imagem dos lugares e não os caminhos para lá chegar. Postados diante do edifício que já arde de uma ponta à outra, os cegos sentem na cara as ondas vivas do calor do incêndio, recebem-nas como algo de certo modo os resguarda, tal como as paredes tinham sido antes, ao mesmo tempo, prisão e segurança.
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- O texto é composto por três excertos não sequenciais de Ensaio sobre a Cegueira de José Saramago
- As três primeiras imagens pertencem à Parábola dos Cegos ou Cegos conduzindo os cegos, obra datada de 1568 de Pieter Bruegel the Elder
- A última imagem é da autoria de Roberta Coni
- Dame Kiri Te Kanawa interpreta "Vocalise" de Rachmaninoff
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Sobre a minha excentricidade, queiram, por favor, descer até ao post seguinte onde o meu irmão gémeo Raul mostra que é tal e qualzinho eu.
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Desejo-vos, meus Caros Leitores, uma bela terça-feira.
E desejo outra coisa: que não se encontrem entre os cegos que não sabem para onde ir, que quase preferem ficar aprisionados - e desejo isso para que, no próximo dia 4, consigam escolher o vosso próprio caminho, um caminho alternativo.
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Olá, UJM!
ResponderEliminarLembrei-me de passar por aqui e dizer olá!
Os ebooks revolucionaram a minha vida: ter os clássicos todos de forma gratuita na palma da mão foi a melhor coisa que me aconteceu! (isto por causa do que diz no outro post).
Queria também deixar-lhe uma palavra de força para que dia 4 vá votar esperançosa, mas estou muito preocupada. Acho que, no outro dia, quando dizia que toda a gente, mesmo pessoas tipicamente de direita, detestava este governo e os seus líderes Pedro e Paulo, tinha toda a razão, mas acho que isso não significa que não votem neles. E nem acho que seja por terem muito medo do bicho-papão do PS que viria trazer dívida, défice e descontrolo. Acho que é mesmo inércia: as pessoas não gostam da dupla PàF, mas mudar é uma chatice... sinto que a maioria das pessoas anda com um certo ódio ao PS, não sei se é ainda o efeito desgastante do Sócrates. Na verdade, também a mim me custa votar no PS. O meu pai dizia ontem que vai votar no Costa, porque acha que é o melhor para o país e já não aguenta o Coelho e o outro, mas para ser sincero, a ele, até convinha era votar nos Pafs, porque a ele convém é manter este statu quo de desregulamentação em que ele se movimenta profissionalmente, e prestações sociais e incentivos à economia vindos dos socialistas nunca lhe trouxeram nada de benéfico para si próprio. Também para mim, que talvez daqui a uns tempos venha a ser advogada, acho que ficava, numa perspetiva egoísta, mais bem servida com a direita.
E mais, não concordo com grande parte das medidas do PS. Não concordo com a descida do IVA da restauração (verdadeira política socialista seria, por exemplo, baixar o IVA na eletricidade, bem de 1ª necessidade, e não num setor onde grande parte do dinheiro é gasto por turistas, sendo que os cafés que tinham de fechar por causa do aumento do iva já fecharam e os que existem estão adaptados aos novos custos fiscais), não concordo com a descida da TSU (medida que se reparte de forma regressiva pelos cidadãos e que não é necessária, pois o crescimento da economia tem sido feito pelo lado do aumento do consumo, não sendo precisos mais incentivos a ele, mas sim ao investimento - preferiria uma diminuição apenas da TSU dos empregadores), não concordo com as mexidas na legislação laboral (onde é preciso uma reforma constitucional, e não alterações que pouco mudam e só trazem instabilidade legislativa).
E ainda: custa-me votar num partido falido, porque me dá a sensação de que querem o meu voto, não tanto por acreditarem que podem honrá-lo com políticas que melhorem a vida do país, mas sim porque precisam mesmo de se safar da situação difícil em que estão, às tantas pensam que nem conseguem regularizar as finanças partidárias, mas, pelo menos, conseguem os tachos para os gosmas do aparelho do partido que já não podem sugar nada nele e estão desesperados por voltar a beber do tutano do Estado e das instituições públicas.
Votava de bom grado no Livre (no BE jamais, por muito agradável que tenha achado a mudança de visual e estilo da Catarina Martins, pois ninguém me faz esquecer que foram os principais responsáveis pelo chumbo do PEC4 e vinda da Troika e da coligação para o poder), até porque parece que podem eleger um deputado por Lisboa, onde voto, mas o chamamento do voto útil é, ainda assim, mais forte, pois considero ter o dever moral para com os meus concidadãos de fazer tudo o que posso para tirar os Pafs do poder, e não quero correr risco nenhum a este respeito. Voto PS, mas voto a contragosto.
Boa semana,
JV
Olá JV, que bom voltar a ler as suas palavras!
ResponderEliminarSempre vibrante, incisiva. Concorde eu com tudo o que escreve ou, em alguns pontos, nem tanto, isso não interessa - porque dá gosto ler uma prosa assim, ginasticada, transbordante de energia.
Grande advogada vai ser, JV!
E é isso que acontece: "não me apetece mas voto PS" (já lá dizia o O'Neill)
E vamos fazer figas para que o PS, com a vitória na mão, faça bom uso dela.
Um abraço, JV!