terça-feira, setembro 01, 2015

O mar e as memórias, a sul






Por uns dias, rumámos a sul. No meio de consultas médicas, afazeres e algumas canseiras, o apelo do sul é forte. Cá estamos. Aqui voltamos sempre. O mar a sul nestes dias dourados tem um azul intenso, absolutamente atraente. A aragem amena tem o tempo todo em suspenso, as gaivotas esperam o cair do sol para iniciar os seus largos voos e eu, na varanda, olhos cheios de mar, espero que elas cheguem, cruzando o espaço luminoso, afável. Leio um livro mas, de facto, não leio, apenas quero que um livro me acompanhe pois parece que me sinto mais eu, assim, sentindo o vagar com um livro nas mãos. O livro é 'O mar' de John Banville mas ainda mal passei das primeiras páginas.

Há turistas a rodos, gente e mais gente, o comércio local agradece e a economia, certamente, leva um pequeno pontapé para cima -- mas para quem, como eu, prefere, nestas situações, o sossego e o silêncio, é gente a mais. Mas queiramos nós afastar-nos um pouco ou escolher as horas de maior acalmia, e conseguimos ter o prazer sereno do amor a sul só para nós.




Desde pequena que venho para o Algarve, pelo menos no verão.

Íamos para Faro, e visitávamos as primas de Faro, primas do lado da minha mãe, e lembro-me de umas casas grandes numa rua central, lembro as casas como iguais, com um grande corredor a meio e janelas altas, com portadas de madeira, que davam para a rua principal e os tectos eram altos, trabalhados. E deviam ter as portadas quase fechadas ou os cortinados corridos porque me lembro da penumbra que sempre havia. E eu chegava e aquilo era cerimonioso (a minha mãe dizia que as primas eram umas vaidosas; aliás tenho ideia que ela e os meus tios diziam isso dos algarvios, em geral) mas, logo, passado um pouco -- especialmente quando ia também o meu tio, irmão da minha mãe, que era muito alto, muito alegre, tinha um vozeirão bem disposto, e a mulher dele, a minha tia querida que era uma divertida, amiga da farra -- o ambiente animava-se e, por fim, já era uma alegria. E, na despedida, elas combinavam retribuir a visita mas tenho ideia que nunca saíam dali, não me lembro de que alguma vez tenham ido visitar-nos.

E havia família dos lados de Monchique, também dos lados da minha avó materna, e de Alte, do lado do meu avô materno que tinha morrido tinha eu uns dois ou três anos. Mas acho que já não devia morar lá família porque só lá íamos passear, ver a casa, a rua, onde antes moravam.

Tinha havido em Portimão a família do primo presidente mas, se ainda por lá havia parentes, já não seriam chegados, não me lembro de fazermos visitas por essas bandas.

E havia também, para os lados de Loulé, em vários lugares por ali, primas e tias aos montes, estes do lado do meu pai. Famílias grandes, muita gente dispersa que se juntava no verão, e as terras lembro-as secas, e figueiras, alfarrobeiras, amendoeiras a perder de vista. As casas tinham em cima um terraço onde secavam as amêndoas e as alfarrobas. E lembro-me de um compartimento interior, fresco, não sei se era perto da cozinha, onde secavam os figos. E havia as mulas para transportar os carregos e havia um ribeiro lá em baixo, no meio de árvores e terra fértil. Muitas vezes as férias eram passadas nestas casas grandes, brancas, caiadas.




Como o meu pai e o irmão, no verão, usavam o tempo para irem à praia ou visitar a família e estar com primos que vinham de França e do Canadá, a minha avó, mãe deles, assertiva e independente (mandona, diziam eles), concluíu que eles não ligavam patavina às terras, não queriam saber do azeite, de negociar as alfarrobas e as amêndoas, nem de nada dessas coisas e, então, sem passar cavaco a ninguém -- provavelmente nem ao marido, meu avô (que pouco voto tinha na matéria, face ao voluntarismo da mulher) -- vendeu as propriedades todas a uma sobrinha. Os filhos, quando souberam, ficaram para morrer, furiosos com a mãe, diziam que a prima era uma espertalhona, que tinha feito um excelente negócio, aproveitando-se da parvoíce da minha avó mas ela não quis saber, achou que tinha feito o acertado; e, de resto, já não havia nada a fazer. 

Do lado do pai do meu pai, o meu bisavô, senhor morgado, dono de muitas casas, de muitas terras e animais perdeu tudo com mulheres e com o jogo. Quando deram por ele, tinha fugido para a Venezuela ou para a Argentina, nem sei. Sobrou a casa onde morava a mulher com os filhos pequenos e uns quantos terrenos, um dos quais um que agora ninguém da família está para se dar ao trabalho de registar em seu nome. Era ali para os lados de Vale do Lobo, acho eu. Primeiro era preciso esperar que o meu bisavô tivesse nascido há mais de não sei quantos anos, para não haver dúvidas quanto ao óbito, depois era preciso fazer habilitação de herdeiros e mais não sei o quê. Ninguém fez nada, nem o meu avô, nem o meu pai nem o meu tio e, agora, nem eu nem a minha prima. De vez em quando ela diz-me, olha lá, o terreno lá do Algarve, e bom que ele é, devíamos fazer alguma coisa. E eu respondo, pois é, qualquer dia já nem sabemos onde aquilo é. E ficamos assim, Nenhuma de nós mexe uma palha, acho que nem sabemos o que fazer ou, então, é porque não temos vida para nos metermos em mais trabalhos. Mas, de facto, o que acho é que somos todos é gente desinteressada. Cá para mim já lá alguém fez uma casa e já perdemos direito àquilo. Não faço ideia - e só me estou a lembrar disto porque estou a escrever isto. Amanhã já nem me lembro outra vez de tal coisa.

Agora já não visito família nenhuma aqui no Algarve, perdi o rasto a essa gente toda. Os meus pais e tios é que davam conta de todos esses laços mas essas primas e primos e tias e tios que visitávamos já devem ter morrido e os filhos deles nem faço ideia quem sejam.

Uma vez, há unas anos, apareceu-nos uma francesa parisiense de gema, linda, elegante, talvez se chamasse Nicole, já nem me lembro bem. Sei que era mais nova que eu. Era filha de um primo do meu pai que, tendo enviuvado em novo, foi para Paris e lá casou com uma francesa e teve filhos. Essa minha prima em segundo grau disse que tinha uma irmã mais nova e mostrou-nos fotografias e era ainda mais bonita que ela. Mas, para mim, era uma estranha, simpática, mas estranha. Dantes, o meu pai dizia que eu, quando fosse a Paris, deveria ir visitar o primo João, que tenho ideia que era director numa grande empresa (a minha avó falava desse seu sobrinho com orgulho), que ele gostaria muito que conhecêssemos a sua família. Mas nunca me lembrei de tal coisa.

Para mim agora o Algarve já não é a terra dos meus avós que, novos, daqui saíram, deixando a família para trás, muito menos de primas ou tias. Para mim, e desde há muitos anos o Algarve é Lagos, Sagres, o mar azul, o calor branco, o ar limpo, o tempo vagaroso, o horizonte à vista -- uma terra pelo qual sinto um afecto especial, como se as minhas raízes se tivessem diluído neste mar.



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Convido-vos, ainda, a seguirem de viagem até ao meu Ginjal onde hoje descanso enlevada pelas palavras de Florbela Espanca ao som de Pedro Abrunhosa.
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Desejo-vos, meus Caros Leitores, uma bela terça-feira.

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2 comentários:

  1. Se antes de ler este post me disssem que os algarvios tinham "invadido e conquistado" a regiao entre Sado e Tejo eu nao acreditava. Agora acredito piamente! Mais, acredito (quase) piamente que os algarvios mesmo "expatriados" nunca deixarm de sentir a nostalgia do "seu" Algarve.. Por isso voltam sempre. Boas férias aí por Lagos.

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  2. Que curioso, parece que acontece a todos.

    Revi-me no seu post. Tambem tenho raizes no Algarve, numa pequena vila pescatoria. Com a vinda para Lisboa com poucos meses, fomos perdendo o contacto com a grande familia, passámos a ver-nos só no Verão.

    Lembro-me de bons dias passados em praias só nossas. Lembro-me das casas, de tios e tias, espalhadas por campos junto ao mar, de Benagil até quase Ferragudo. Lembro-me do cheiro a figos torrados no final das férias.

    Com a descoberta do turismo venderam campos de amendoeiras e vinha a perder de vista.
    Tornaram-se ricos. Passaram a viver, quase todos nas cidades de Silves, Portimão e
    outros juntaram-se a familiares em Almada.

    Tambem sinto o chamamento da terra, mas o meu Carvoeiro tornou-se tão estranho, tão internacional que já nada me diz. Dou sempre uma volta pelo Algar Seco, Sra. da Encarnação, o velho Paraíso, de onde avisto a casa amarela, onde nasci, mas saio sempre com a sensação de que perdi algo.

    Desejo-lhe umas boas e retemperadas férias cheias de saude, sol e aquele silencio do final da tarde.

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