quinta-feira, junho 11, 2015

Tudo tão efémero






Em tempos eu conheci um homem rico que era um bon vivant. De todos os que tenho conhecido, este talvez fosse o que melhor uso sempre deu ao muito dinheiro que tinha. Um bocado mais velho que eu, era muito alegre, muito divertido, muito sedutor, muito folgazão, sempre disponível para a conversa, para a tertúlia, para uma boa gargalhada. Era também um profissional exemplar, reconhecido, mas, francamente, era o seu lado humano que sobressaía sobre tudo.

Teve uma mulher, uma mulher de forte personalidade de que muito ouvi falar mas que nunca conheci, e depois divorciou-se. Quando o conheci já estava divorciado. Falava-se de namoradas, aventuras, excessos, loucuras. Depois começou de namoro com a secretária, uma mulher interessante, muitos anos mais nova que ele, igualmente extrovertida, algo destemperada, exuberante. Começaram a viver juntos e ela modificou-se: tornou-se uma jovem mulher cuidada, longos cabelos muito bem tratados, sempre elegante, muito bem maquilhada, saltos muito altos, uma mulher que não sendo especialmente bonita, era aparatosa, chamativa. No inverno, volta e meia, aparecia com um vison comprido, até aos pés. Lembro-me bem dela nesses dias: jeans justíssimos, geralmente uma elegante camisa branca, um colar discreto de ouro branco, sapatos muito altos, o casaco escuro de pêlo sedoso e a sua longa cabeleira sobre as costas do casaco. E os lábios muito encarnados. Perfumada, voz rouca, gargalhadas fartas. Uma mulher que, por todos os motivos, dava nas vistas.

Ele continuou a ser como sempre foi: um ar de quem não ligava a mínima ao seu aspecto físico, vagamente amarrotado, pouco cuidado, casaco pendão, sempre carregado com a sua mala a deitar por fora de tanto papel; e continuou a ser malandreco como sempre foi, cativante, e, mesmo, aquilo a que vulgarmente se chama engatatão (mesmo que o fosse apenas pelo prazer imediato de ver o efeito das suas palavras ou actos nas mulheres). Muitas vezes a namorada apercebia-se das investidas do seu homem já que aquela maneira de ser nele era tão intrínseca que ele parecia não se coibir com a sua presença. Ciumenta e primária nas suas reacções, ela fazia cenas de ciúmes igualmente exuberantes, alto e bom som, muitas vezes embaraçosas - coisa que a ele dava vontade de rir e não vontade de se corrigir.

Muitas vezes, toda numa efervescência, ela contava-me peripécias dele, irritada, sentida. Dizia-me que lhe fazia ultimatos mas que ele não tinha emenda -- e, ao contar-me isto, eu via que ela estava de rastos. Lembro-me, por exemplo, de uma vez me ter contado que ele não tirava os olhos de outra no restaurante, e que a outra, que estava acompanhada, à socapa toda se derretia para ele. E que ela não tinha aguentado e se tinha virado para ela e, de mesa para mesa, lhe tinha atirado: 'Olhe lá! Não quer trocar comigo? Já que não liga ao seu marido mas sim ao meu, vou eu para aí e vem você para o pé do meu. Quer? Esteja à vontade!'

No entanto, lembro-me bem dela numa vez em que apareceu emudecida, comovida. Ele tinha-lhe oferecido um Patek Philippe. Eu conhecia a marca sem nunca ter visto um ao vivo. Nem tinha noção dos milhares que um relógio daqueles poderia custar. Custava-me até a acreditar num excesso daqueles. Ela também. E não conseguia ainda assimilar que ele gastasse tal fortuna num relógio daqueles para lhe oferecer. Para ela, mais do que tudo, aquele relógio era a prova do amor dele por ela (coisa de que, por vezes, ela, que o amava ilimitadamente, quase duvidava). E falava extasiada da caixa em que o relógio vinha, uma peça de arte, dizia ela. E os olhos embaciavam-se de comoção, quase acreditando que ele, afinal, gostava mesmo dela porque, se não gostasse, ia gastar tanto dinheiro num relógio?, interrogava-se ela. Eu pouco dizia, também espantada com o exagero: como é que um maluco daqueles ia gastar tal maluquice de dinheiro num relógio para uma maluca daquelas? 
Mas, note-se, ao pensar neles como malucos era com algum carinho e admiração pois todo aquele amor entre aparentemente desiguais (ele de uma família endinheirada, ela de família humilde, ele um gestor reputadíssimo, ela a sua secretária, ele uma homem de meia idade, de aspecto descuidado, e ela uma mulher jovem super-produzida) era um amor carregado de excessos, de zangas extremas, de reconciliações ardentes: mas eram tão genuínos, tão boas pessoas, tão apaixonados que era impossível não simpatizar com eles. 
Pouco tempo depois, sem que alguma coisa o fizesse esperar, um amigo comum chegou ao pé de mim, branco, nervoso, quase sem voz, e disse-me: 'Morreu o C'. Fiquei impressionada com o rosto devastado do meu amigo e, nesse instante, apreensiva e quase bloqueada, passei em revista todos os nossos amigos com aquele nome e não me pareceu possível que algum deles pudesse ter morrido. Perguntei-lhe: 'Quem!?'. Ele quase não conseguia falar. Repetiu o nome e acrescentou 'Fulminante. Não é possível. Está morto'. Tenho ideia de não conseguir dizer nada, não via que isso pudesse ter acontecido a algum dos nossos amigos. Depois ele disse, 'A M. está desfeita'. E então eu percebi que a pessoa que tinha morrido era aquele nosso amigo tão transbordante de vida. Fiquei em choque. Num instante, desapareceu uma vida inteira, aquela vida tão exuberantemente vivida, desapareceu a vida para aquele homem que nos fazia rir a todos, de quem se contavam mil histórias, todas excessivas, todas loucas, todas carregadas de um tremendo amor à vida. E desapareceu também a vida para ela, a vida tal como ela a vivia nos últimos anos, ela que vivia para ele.

Toda a gente que o conhecia ficou muito abalada. Foi como se um silêncio se tivesse abatido sobre todos. Durante muito tempo ninguém falava dele. Penso que ninguém queria falar nele no passado.

Algum tempo depois, conheci a filha dele. Era igual a ele, até fisicamente. Alegre, irreverente, louca, transbordante de paixão. Já divorciada, divertia-se, tinha aventuras, nada temia, arriscava pelo prazer de brincar, de desconcertar os outros. Um dia perguntei-lhe pela M. O seu semblante toldou-se, disse: 'Sobre essa senhora não quero falar'. Na cabeça dela, a M. era a pistoleira por quem o pai tinha perdido a cabeça e que tinha levado ao divórcio entre os pais. Disse-lhe apenas que conhecia a M. e que era boa pessoa e que tinha testemunhado a adoração que tinha pelo pai. Ela encolheu os ombros, disse que era pessoa que não lhe interessava -- e mudou de assunto. Tive pena.




Lembrei-me agora disto ao ler na Obvious um artigo sobre o Grandmaster Chime da Patek Philippe.

Para celebrar os 175 anos da marca, a Patek Philippe projetou o relógio mais complexo da história. O Grandmaster Chime (algo como "Harmonia do Mestre") tem meia dúzia de invenções patenteadas, mais de mil peças no seu interior, e um preço que gira em torno dos 2.5 milhões de dólares - para cada uma das seis unidades postas à venda.
O Grandmaster Chime (algo como "A Harmonia do Mestre", em português) tem 1366 componentes diferentes, seis invenções patenteadas incorporadas ao mecanismo interno, cinco tipos de som, e custa 2,5 milhões de dólares - caso você consiga uma das únicas 6 unidades postas à venda. O corpo do relógio gira em torno do próprio eixo e é todo coberto por ouro 18 quilates.
Enquanto um Apple Watch leva alguns dias para ser manufaturado, o Grandmaster Chime precisou de 7 anos para ser completamente desenhado, e de mais 2 para ser produzido. O vídeo abaixo dá uma ideia da complexidade e beleza do processo.

Patek Philippe 5175R Grandmaster Chime Watch




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Já agora o anúncio da marca onde se pode ver aquilo que é a assinatura da marca:

'You never actually own a Patek Philippe, you merely look after it for the next generation'


E eu cada vez mais me interrogo:
Possuímos, de facto, alguma coisa?
 Efémera como é a vida, qual o significado de se possuir alguma coisa?

Eu sinto que não possuo nada. Nem certezas, quanto mais coisas. Nada.
Cada vez mais, acho que não possuímos nada.




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Desejo-vos, meus Caros Leitores, uma boa quinta-feira.
E que aproveitem bem cada instante da vossa vida: aí reside, em minha opinião, a verdadeira riqueza -- nos instantes bem vividos.

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