domingo, junho 14, 2015

Notícias da beira-Tejo -- com rosas dentro [2º post de 3]


Os meus passos levam-me para a beira da água. O Ginjal é para mim, de facto, um love affair (ou melhor, um caso de ménage a trois: eu, o Ginjal e Lisboa).
Mais tarde recolher-me-ei ao ninho, procurarei o cheiro da terra. Sou mulher-bicho e invento-me entre as águas e a terra. E, soubesse eu voar, e habitaria também os largos espaços, o ar.
Mas antes de me acolher à terra, primeiro busco o azul, o ar limpo e fresco que sobe do rio, o cheiro lavado da maresia. O meu olhar tem que se purificar neste rio por onde deslizam em silêncio os veleiros e em cuja margem uma roseira provocante oferece rosas rubras aos espíritos alados e aos inocentes boémios que por aqui passam.

Lisboa é, vista daqui, um desenho suave, casinhas, pequenas árvores, uma aguarela feita com desvelo. E a ponte é uma moldura rendilhada, refinada.

E eu sou uma menina deslumbrada que ainda não conseguiu perceber como é possível uma tal beleza.



Havia no meu tempo um rio chamado Tejo 
que se estendia ao Sol na linha do horizonte. 
Ia de ponta a ponta, e aos seus olhos parecia 
exactamente um espelho 
porque, do que sabia, 
só um espelho com isso se parecia





Nas pedras do passeio sobre o mar, uma frase interpela-me: 'Hoje foste um bom robot???'. Sorrio, fotografo. Penso que não sou um robot, que ainda tenho a capacidade de olhar e ver, de achar graça às provocações, de apreciar o desenho das letras, de sentir, de sonhar. Mas penso que as cidades estão cheias de robots, de gente com o coração fechado e sem brilho nos olhos, gente que deseja ser, acima de tudo, um bom robot. 

Sorrio, penso que talvez tenha sido um anjo brincalhão, de asas cor de fogo e olhos de água, que aqui tenha deixado esta inteligente interpelação.




Os velhos cais e os frágeis passadiços entram pelo rio, indiferentes às marés, já habituados a fazerem parte desta paisagem que me deixa sempre deslumbrada como se nunca antes tivesse testemunhado tanta perfeição, tanta suavidade nas linhas da cidade, no colorido ameno, na luz que sobe do rio para envolver o casario. Os pescadores curvam-se para preparar as canas mas, vistos de longe, é como se venerassem as águas ou prestassem homenagem a Lisboa, a bela.




Um homem da tripulação de um dos cacilheiros sobe para a casa do leme, a bandeira hasteada esvoaça, a cidade espraiada em fundo, a linha azul do rio  -- e tudo me parece uma coreografia elegante, uma encenação espontânea. Penso: deveria passar agora aqui uma gaivota. Mas não passa nenhuma, nem sequer nenhuma mulher a voar.




Mas logo, um pouco mais à frente, uma mulher pousou num banco, na margem do rio. Talvez tenha vindo a voar ou talvez tenha saído das águas azuis que correm a seus pés. Olha a bela cidade em frente. Está silenciosa. Talvez espere o seu amor que talvez venha no barco que se aproxima. Talvez feche os olhos e pense beijo vejo, vejo beijo. Talvez.




Há uma dança contra a corrente
beijo vejo, vejo beijo
elas, belas
só comi uma vez
oh, como não?
Formosas barbatanas
dengosas
já pedi perdão
que agora só beijo, vejo beijo, oh tão grande é o desejo
(...)


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A itálico:
lá em cima um excerto do 'Poema da Memória' de António Gedeão, in 'Poemas Póstumos' enviado pela Leitora Rosa Pinto a quem agradeço e que pode ser visto na íntegra em comentário aqui abaixo; 
no fim, um excerto do poema 'À primeira vista' de Sónia Baptista in Tempus Fugit da Editora Mariposa Azual, um livro que tem desenhos de Bárbara Assis Pacheco

Maria Ana Bobone interpreta Nome de Mar

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3 comentários:

  1. Poema da Memória

    Havia no meu tempo um rio chamado Tejo
    que se estendia ao Sol na linha do horizonte.
    Ia de ponta a ponta, e aos seus olhos parecia
    exactamente um espelho
    porque, do que sabia,
    só um espelho com isso se parecia.

    De joelhos no banco, o busto inteiriçado,
    só tinha olhos para o rio distante,
    os olhos do animal embalsamado
    mas vivo
    na vítrea fixidez dos olhos penetrantes.
    Diria o rio que havia no seu tempo
    um recorte quadrado, ao longe, na linha do horizonte,
    onde dois grandes olhos,
    grandes e ávidos, fixos e pasmados,
    o fitavam sem tréguas nem cansaço.
    Eram dois olhos grandes,
    olhos de bicho atento
    que espera apenas por amor de esperar.

    E por que não galgar sobre os telhados,
    os telhados vermelhos
    das casas baixas com varandas verdes
    e nas varandas verdes, sardinheiras?
    Ai se fosse o da história que voava
    com asas grandes, grandes, flutuantes,
    e poisava onde bem lhe apetecia,
    e espreitava pelos vidros das janelas
    das casas baixas com varandas verdes!
    Ai que bom seria!
    Espreitar não, que é feio,
    mas ir até ao longe e tocar nele,
    e nele ver os seus olhos repetidos,
    grandes e húmidos, vorazes e inocentes.
    Como seria bom!

    Descaem-se-me as pálpebras e, com isso,
    (tão simples isso)
    não há olhos, nem rio, nem varandas, nem nada.

    António Gedeão, in 'Poemas Póstumos'

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  2. Olá Rosa Pinto,

    Muito obrigada. Belo poema. Já coloquei parte dele no próprio texto.

    Já no outro dia era para lhe ter dito que tinha ficado contente por voltar a saber de si. Muito lhe agradeço não apenas a visita mas também a simpatia por aqui deixar sempre uma palavra ou um poema a propósito.

    Um bom domingo para si, Rosa Pinto!

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  3. Obrigada pela gentileza. É um prazer vir espreitar. Bom domingo.

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