segunda-feira, maio 11, 2015

Amo-te muito minha rainha, escreveu ele


Por onde passo vejo sinais dos tempos, sinais das vidas que por aqui se têm cruzado ao longo dos tempos. Mas são sinais efémeros porque logo alguém depois tatua novos sinais sobre a pele das paredes e apaga as confissões, lamentos ou desafios que outros, antes, lá deixaram. E, portanto, tudo ganha ainda um maior valor pois tudo pode desaparecer a qualquer momento.

Mais do que arte de rua o que eu aqui vejo é a expressão de sentimentos, são sonhos, são gritos, são sorrisos. E é o tempo impresso em paredes gastas onde a vida persiste apesar do abandono.







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Hoje vi um rapaz a pintar. Tinha latas de tinta e estava totalmente entregue à sua obra. Fotografei-o e ele não me prestou atenção, talvez nem me tenha visto apesar de eu estar junto a ele. Estava entregue à marca que estava a deixar impressa, letras grandes, coloridas. Um dia vou fazer o mesmo, levo tintas e ponho-me também ali a pintar peixes, pássaros, barcos, ondas, asas, letras aladas. 

Talvez me encoste ao gato branco que habita o azul e nele deixa a sua sombra. O gato podia ter escorregado pela descida cor de rosa mas preferiu flutuar nas águas ou no céu. Seria um bom lugar para eu pintar uma lua nova.




Ou então encosto-me ao patinho pernalta de grandes olhos azuis e pequenas asas também azuis. Poderia pintar uma gruta forrada de musgo dourado e habitada por grandes peixes transparentes com olhos também azuis e por mulheres também transparentes, rainhas perdidas dos seus reinos, a quem os sonhadores solitários que por aqui passam em vão declaram o seu amor. 




Ou talvez me aproxime das paredes em que os líquenes enfeitam de amarelo as paredes em que as memórias calcinadas se juntam às cores que alguém já ali deixou e às quais se juntam agora as pequenas flores cuja cor combina com as cores pintadas. Talvez ali deixe pequenos pontos invisíveis, flores inventadas, estrelas lilases perfumadas, segredos felizes, palavras que o tempo transforme, sonhos que se agarrem a estas paredes tão cheias de tantas vidas.




Mas também posso entrar nas casas em ruínas, talvez possa subir aquelas escadas que não levam a lado nenhum, ou percorrer os corredores por onde andam gatos, vagabundos, poetas loucos, e esgueirar-me até aos telhados, lá onde pousam as gaivotas, crescem flores boémias que se vestem da mesma cor que os azulejos que ainda sobrevivem. Talvez. Talvez encontre aí bocados de parede onde possa pintar bocados de céu, fragmentos de nuvens, chuvas prometidas, lágrimas escondidas, risos indecentes, e ventos desabrigados.




Ou, então, não. Talvez abra apenas mais buracos nas paredes e deixe que as flores que resplandecem em luz do lado de lá desenhem jardins clandestinos só visíveis por quem adivinha mistérios, tesouros escondidos, a alma dentro dos corpos, o murmúrio que atravessa os ventos.




Ou talvez nem isso. Talvez deixe apenas por lá o meu olhar.

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[Fotografias feitas no Ginjal]


[Uma vez mais por aqui, a música é Antony and the Johnsons interpretando Bird Gerhl]


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