Aos poucos talvez as coisas voltem ao normal - se é que antes eram normais.
Quando fui vê-lo ao hospital, logo no sábado a seguir ao ano novo, ainda antes de ser operado, naqueles dias em que lhe retiraram o anticoagulante para o sangue espessar e diminuir o risco de hemorragia durante a cirurgia, estava choroso. Dizia 'estou em xeque com isto...'. A minha mãe questionou, 'Em xeque? Mas estás em xeque porquê?'. Ele olhou para nós com aquele seu olhar desfocado, 'Pois, não é em xeque'. E esforçou-se por encontrar a palavra, balbuciou, depois calou-se, não a achava. A minha mãe perguntou, 'Chateado?' Ele confirmou, 'Pois, estou chateado com isto' e nós dissemos que era natural que estivesse chateado. Depois virou-se para mim e disse 'Tinha a minha vida lá em casa, fazíamos as nossas coisas e agora isto'. E eu disse que ia voltar a ser o que era, que era só o tempo de ser operado e que haveria de voltar. Mas ele, choroso, que não queria ser operado. E virou-se para a minha mãe, 'morrem todos'. A minha mãe repreendeu-o, 'mas morrem todos, quem?'. Ele disse o nome de um e disse que tinha sido operado e que, passado algum tempo, tinha morrido e, depois calou-se, pensou, e quando se lembrou, disse 'O Salvador também'. A minha mãe corrigiu. Que o primeiro ainda viveu muito tempo e morreu de outra coisa e que o Salvador morreu logo, caíu no jardim e bateu com a cabeça. Ele não disse nada, talvez tenha ficado mais animado.
Depois foi operado. Na manhã em que ia ser operado, às sete e picos da manhã tocou o telemóvel do meu marido. Fiquei petrificada. Àquela hora, alguém a ligar, não podiam ser boas notícias. O meu marido não chegou a tempo e o número era daqueles que não atendem quando se liga na volta, geralmente são cartões de centrais telefónicas. Fiquei com o coração a bater descompassado, pavor de que algo tivesse acontecido. Mas não voltaram a ligar.
Depois a operação correu bem, uma placa, uns parafusos, o colo do fémur aparafusado. Um grande alívio. o risco não era a cirurgia em si mas o estado debilitado dele.
Depois a operação correu bem, uma placa, uns parafusos, o colo do fémur aparafusado. Um grande alívio. o risco não era a cirurgia em si mas o estado debilitado dele.
Nessa noite, às dez e tal, novamente o telemóvel. Mais um sobressalto. Mais uma vez não se foi a tempo, mais umas vez o coração disparado.
Na manhã seguinte, à mesma hora, a mesma coisa. O meu marido foi veloz. Era da Central de Alarmes. O meu filho pôs um alarme em casa e das duas vezes de manhã não se tinha lembrado de o desligar e à noite ligou-o e depois foi lá abaixo sem o desligar e aquilo disparou e accionou um alerta na central. Como a seguir eles não atenderam o telemóvel, ligaram para o terceiro número, o do meu marido. Menos mal. O meu único medo era que fosse do hospital.
Depois as complicações, várias. Cada dia uma coisa. Uma pessoa já tinha medo de saber como é que o ia encontrar. A seguir à operação, e outros dias, quando estava pior das várias complicações, a minha mãe não tinha coragem de ligar, ligava eu. Assim, quando lá se chegasse, já não havia surpresas. Por vezes não atendiam logo do hospital e logo a minha mãe me ligava, assustada, 'Não dizias nada, já estava preocupada, aconteceu alguma coisa?'
Outras vezes, estava todo baralhado. Onde é que estou? Trouxeste os sapatos para eu me poder ir embora? Mas as operações agora não são coisa de um dia? Vá, dá-me lá o casaco para nos irmos embora. Como é que me descobriram aqui?
Talvez fosse da anestesia, talvez do estado geral. Depois passava-lhe, voltava ao normal. Ao normal depois do AVC, quero eu dizer.
Um dia que eu não estava lá, perguntou à minha mãe, Tu tens uma filha? A minha mãe disse, Nós temos uma filha, nós. Ele ficou a olhar, Ah, e como é que se chama a tua filha? A minha mãe corrigiu outra vez, Minha filha não, a nossa filha. Diz lá tu como se chama a nossa filha. Pensou e disse o nome da minha mãe. A minha mãe disse, Então esse não é o meu nome? E depois disse-lhe o meu nome e perguntou Então não é? E ele disse, Ah pois é.
No domingo estava no cadeirão, ainda a soro (pois os níveis de potássio tinham baixado), e cheio de almofadas pois mal se aguentava direito, olhos muito abertos, desfocados, meio despenteado, olheiras enormes, agitado. Que já não se aguentava sentado, que não havia direito, que mais valia acabar com aquilo tudo. Estava numa impaciência, que nos fossemos embora, e já se zangava comigo e com a minha mãe, que queria ir para a cama, que os enfermeiros ainda se esqueciam dele ali. Eu e a minha mãe comentámos uma com a outra que ainda teria hospital para mais uma semana, tal o estado em que ainda estava.
Estávamos enganadas. Esta segunda, estive numa reunião toda a manhã. Perto da hora de almoço, enviei um sms à minha mãe a dizer que ainda não tinha ligado porque estava numa reunião. Respondeu-me por sms que o meu pai tinha tido alta. Respondi, Não acredito! mas, de seguida, saí logo da sala e fui ligar-lhe. Estava enervada, que lhe tinham ligado do hospital, que o iam mandar para casa, que estava a arranjar a cama, a preparar as coisas. Fiquei estupefacta. Disse-lhe que ia ver o que se passava. telefonei para lá. As enfermeiras estavam também admiradas, que o médico tinha lá chegado e dado alta a vários doentes e que ela também não estava à espera, que costumam preparar a alta e falar com a família mas que não tinha dado tempo. Disse-lhe que não aceitava que estivessem a tratar o meu pai dessa forma. Ela respondeu que o mundo ideal é um e o mundo real é outro e que cada vez mais é assim. Com muita dificuldade lá consegui falar com o médico.
Explicou a situação, que ele estava estável, que podia ir para casa, que se não fossem todas as complicações já teria tido alta há mais tempo, e lá me disse quais os tratamentos e consultas seguintes. Respondi-lhe que o meu pai não ia sair nesse dia porque queria que as enfermeiras falassem com a minha mãe para lhe explicarem tudo como deve ser, porque queria que as coisas não fossem precipitadas daquela forma. O médico disse que compreendia.
Depois a enfermeira ligou-me a pedir desculpa e a dizer que, com a pressa nem tinha reparado mas que, para além de tudo, não estando o meu pai referenciado como carente do ponto de vista económico, teria que ser a família a fretar a ambulância para ele sair de lá.
Assim se fez.
Já está em casa. Esta quarta-feira vai lá a enfermeira do centro de Saúde para lhe dar uma injecção, para fazer o penso. Deve ir também uma fisioterapeuta (particular) para ver qual o programa recomendável, a ver se em casa consegue fazer alguns exercícios. Era bom que conseguisse voltar a dar uns passinhos dentro de casa. Tenho esperança. Já não é a primeira vez que está acamado, quase sem se conseguir mexer e depois, com muita fisioterapia, lá consegue dar os seus passinhos. Mas agora, para além das dificuldades todas, deve ter medo pois foi assim, a ir da sala para o quarto, que lhe escorregou a mão em que se apoiava e caíu, partindo a perna.
Supostamente deverá ir, dentro de pouco tempo, quando houver vaga, para uma clínica de reabilitação, para fazer recuperação como deve ser. O recomendável são 3 meses de internamento mas ele não deve querer ir e a minha mãe diz que, se ele não quiser, não o vai forçar. E eu também não forçarei.
Como de costume a minha mãe, depois da angústia natural de quando as coisas acontecem, volta à sua boa onda habitual. Já nem teme muito o que por aí vem pois há seis anos que está habituada a ser cuidadora a tempo inteiro.
Pelo meio, depois de uma das visitas ao hospital, já a trouxemos a ver a casa do meu filho, já andei a passear com ela à beira mar, já lá teve os netos a lanchar e continua a fazer a manta de crochet para a cama de um dos bisnetos, nem sei bem para qual. Tentámos que não lhe custasse tanto o internamento do meu pai e que, ao menos, aproveitasse para passear um bocadinho, coisa que, com o meu pai em casa, nunca pode fazer.
Por tudo isto, pela preocupação, por algum cansaço, pela alteração na rotina, por ter tido menos tempo para estar com os mais pequeninos, por tudo, tenho andado menos inspirada.
E agora não é que esteja muito mais descansada. Não estou. Por exemplo, não sei como vai ser esta noite e isso preocupa-me. No hospital, se ele chamava, se estava inquieto, estavam lá os enfermeiros. Lá em casa, se necessário, só terá a minha mãe. Queria que ela arranjasse apoio a tempo inteiro mas não quer, diz que já lhe basta esta situação quanto mais ainda andar a tropeçar numa outra mulher a viver lá dentro de casa, que era o que lhe faltava. Percebo-a e não posso nem quero forçar o que quer que seja. Mas, enfim, tudo se há-de ir resolvendo.
Afinal, a vida continua.
If you smile through your pain and sorrow
Smile and maybe tomorrow
You'll see the sun come shining through
For you.
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O mais fácil de satirizar em nós é sempre o que nos torna surdos à realidade, prisioneiros da ficção de nós mesmos; é a nossa comédia de enganos, com os seus tiques e trejeitos, as suas atoardas que se pretendem o idioma da verdade; é o nosso caminho ostentado sem qualquer preocupação de contacto com os outros, que rapidamente se pontilha de automatismo e preconceito. Reconhecer o ridículo é a forma mais nobre e ágil de sair dele, mas essa não é uma decisão nem espontânea, nem indolor. O riso não é uma consolação, nem uma terapia fácil de seguir para ninguém. Exige uma grandeza interior que se conquista milímetro a milímetro, à maneira do alpinista que galga uma encosta árdua.
Um dos textos mais belos sobre isto mesmo é uma nota autobiográfica assinada pelo escritor Dinis Machado em 'Reduto quase Final'. Evoco-a com a devida vénia. 'Uma das primeiras grandes revelações da minha infância, ao surpreender as coisas, foi verificar que me interrogava, invariavelmente, assim: qual é o lado mais cómico disto? Os desfiles militares, as cerimónias religiosas, os cumprimentos obsequiosos e constrangedores, os adereços excessivos da autoridade, as exigências rígidas da hierarquia, os compromissos artificiosos. E eu: qual é o lado mais cómico disto? Daí a fazer esta pergunta interior em qualquer situação dramática, foi um passo. A doença, a brutalidade, a estupidez, a intolerância, a maldade pura, a alucinação despótica - até o leito do sofrimento, o leito da morte. E eu: qual o lado mais cómico disto? (...) Quando uma vez caí, a patinar no passeio com botas cardadas, e parti o dente da frente, fiz a pergunta calada e sacramental, enquanto as pessoal olhavam para mim: - Qual é o lado mais cómico disto?
(...) Creio que os cómicos (...) me compreendiam melhor que ninguém. Habitavam o coração do desastre com a desenvoltura e a paciência evangélica dos grandes missionários da naturalidade.
Extracto de 'O humor é a liberdade' de José Tolentino Mendonça em 'Que coisa são as nuvens' no Expresso
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- As primeiras fotografias são da autoria de Jeffrey Vanhoutte, foram feitas no âmbito de uma campanha publicitária dinamarquesa e a bailarina é Noi Pakon. Escolhi-as porque mostram aquilo que sinto nestas situações, vontade de soltar de cima de mim o peso da angústia, vontade de deixar de sentir o peso do medo, vontade de ser capaz de encarar tudo com maior leveza.
- A fotografia das crianças é da autoria da mãe, a fotógrafa russa Elena Shumilova
- O segundo grupo de fotografias faz parte de uma série intitulada People Reading Poorly-Chosen Books In Public que pode ser vista aqui e coloquei-as no meio deste post porque nada como o humor para enfrentar os momentos menos animados da nossa vida. Rir para mim é um poderoso antídoto para as agruras da vida, sempre foi e tomara que sempre assim seja.
- O Smile é de Charlie Chaplin na interpretação de Nat King Cole (e, foi-me lembrado pela Leitora Rosa Pinto que, em boa hora, me deixou a tradução da letra da canção num comentário mais abaixo).
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Hoje vinha com ideia de falar dos muito pobres cada vez mais pobres e dos muito ricos cada vez mais ricos e do Paulo Portas a gabar-se do estado da economia depois de as notícias divulgarem que a já de si anémica economia continua a abrandar. Mas comecei a escrever sobre o meu pai, alonguei-me e, aqui chegada, já não me apetece pôr-me agora a falar de tão desagradáveis coisas. Por isso, hoje fico-me por aqui.
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Desejo-vos, meus Caros Leitores, uma boa quarta-feira.
E, por favor, não se esqueçam:
Smile though your heart is aching
Smile even though it's breaking.
When there are clouds in the sky
you'll get by.
Nada nos desestabiliza mais do que os problemas, de saúde ou outros, mas sobretudo os de saúde, daqueles que nos são mais próximos. Os meus votos de que tudo corra bem durante a recuperação do seu pai.
ResponderEliminarBoa noite!
ResponderEliminarRede de Unidades de Cuidados Continuados, são centros de internamento para doentes em recuperação mas que têm alta no hospital, e depois tem mais uma série de tratamentos de recuperação para fazer.
Esses centros foram uma das obras mais fantásticas que se implementou em Portugal.
Lá, nos centros, com cerca de 20 a 30 utentes dependendo da sua localização e área geográfica, têm ginásio, sala de estar, sala de jantar, quartos equipados com casa de banho privativa adaptada, cadeiras adaptadas, muita luz, jardim e um carinho acolhedor, sente-se tem gente com sentido de humanidade (ou sentia-se na altura do governo de Socrates que foi quem implementou estes centros em Portugal ao dispor de todos, agora eles estão a ser um pouco abandonados tem falta de recursos) tem gente que está ali para cuidar das pessoas com dignidade, respeito e conforto, não é um negócio, tanto que a assistente social, diretor/a, medico/a, enfermeiro/a, fisioterapeuta, animador/a e psicólogo/a, não falam sobre dinheiro nem em valores, na altura da reunião para integração do utente, falam dos hábitos, dos gostos, da saúde, das rotinas e da família, daquilo que realmente é importante para o processo de adaptação, de bem estar, proteção e recuperação do utente com dignidade e total respeito.
Acompanhei a minha avó em dois processos de integração e recuperação em duas unidades diferentes (Grândola e Moura), e comprovo que se sente um alivio quando chegamos lá e sentimos que os doentes são valorizados como seres humanos, perante tantas dificuldades e sentimentos de abandono que sentimos por parte dos nossos hospitais públicos.
O pedido para integração numa Unidade, é feito no hospital enquanto o doente está internado, ou após sair , junto de uma assistente social na Segurança Social.
É um serviço público, e o custo de internamento é de acordo com os rendimentos do agregado familiar, e tem a duração mínima de 1 mês até máximo de 6 meses.
Visitem um centro estão espalhados por todo o país, são obras com verdadeiro valor e sentido de humanidade. São um projeto vivo daquilo que todas as organizações que recebem pessoas para cuidar deveriam ser e não o são. O dinheiro corrompe a alma.
Um dos motivos, e eu defendo tanto um homem que se chama José Socrates, pela sua obra ao dispor de todos em igualdade.
As melhoras para o seu pai UJM.
V
Simplesmente,bom dia !
ResponderEliminarVotos de Boas Melhoras para o Senhor, seu Pai, estimada UJM .
ResponderEliminarMelhores Cumprimentos.
Vitor
Caríssima UJM
ResponderEliminarAs melhoras para o seu pai e que tudo corra ( irá correr ) pelo melhor
Desejo-lhe um óptimo dia e tudo de bom
Um abraço
HB
Beijinho para si e seu pai.
ResponderEliminarA Todos,
ResponderEliminarO meu agradecimento pelas vossas palavras. De facto, o sabermos que os nossos mais próximos não estão bem, é coisa que nos deixa com o coração nas mãos. Mas tenho sempre a esperança de que, passando os sobressaltos ocasionais, a vida vá andando com relativa tranquilidade.
Em particular a V,
De facto, é de vaga numa destas unidades de Cuidados Continuados que estamos à espera. Parecem ser poucas para as necessidades. Tivemos uma reunião com a Assistente Social do Hospital que nos falou disto e pareceu-nos muito bem. Contudo, o tempo de espera parece ser da ordem das 4 semanas. O ideal teria sido que fosse do Hospital para lá, que talvez quase nem desse bem por isso ou, pelo menos, talvez aceitasse como fazendo parte do internamento hospitalar. Agora, estando em casa, parece ser difícil que aceite sair 3 meses para outro lugar. A ver vamos. Mas as referências que tenho são, de facto, as melhores e dou-lhe razão: o Sócrates tinha consciência social e deixou obra feita e de qualidade.
Agradeço muito as suas palavras pois ajuda a divulgar esta realidade.
A todos, pois, o meu muito obrigada!