Se, no post a seguir a este, a música, a sensualidade, a beleza e o glamour andam no ar, aqui, agora, a conversa é outra. Infelizmente muito outra.
Já não sei bem a quantas andamos com o físico-pop Maqueijo a contestar não sei o quê e mais uns quantos a inventarem outras tantas teorias. Mas, na última vez em que me pareceu haver um relativo consenso, tenho ideia que o universo estava em expansão. Ora, na minha simplística visão dos factos, se o universo se expande, também a vida dos que o habitam deveria seguir o mesmo percurso.
Up, up and better.
Up, up and better.
Custa-me perceber que se ache normal que os humanos, como qualquer espécie, não caminhem no sentido positivo da sua evolução. Se antes os seres viviam em cavernas, morriam cedo, pereciam, indefesos, às garras de perdadores e, entre sobressaltos, vêm atravessando os tempos, tornando-se mais longevos e supostamente mais sabedores, como explicar que grande parte deles se deixe subjugar por estirpes daninhas que tentam o retrocesso?
Os jornais e televisões trazem-nos notícias de actos selvagens, gestos bárbaros, e constatamos que há jovens que abandonam o mundo do conhecimento para se juntarem a seitas que praticam o mal como se a iluminação dos tempos não tivesse passado por elas.
Mas não me refiro apenas a sequestros e decapitações, ou mesmo a mutilações genitais, apedrejamentos até à morte, assassinatos conjugais e toda a espécie de violência doméstica. Não. Refiro-me também a outra espécie de retrocesso, um retrocesso silencioso, uma violência que esmaga e envergonha: a da exploração total de pessoas, a nova forma de escravidão - como a dos condenados que trabalham segundo contratos de zero horas*.
Leitor, a quem muito agradeço, enviou-me um artigo publicado no Le Monde cujo título é Au Royaume-Uni, les damnés des « zero hour contracts » e que é da autoria de Philippe Bernard.
Começa assim (o artigo completo apenas será acedido por quem for assinante e eu não tenho como anexar o PDF; além disso, está em francês e sei que já não há muita gente que domine a língua; ainda assim, coloco-o aqui):
Candice Roberts n’a pas besoin de parler pour expliquer à quoi sa vie ressemble. Elle brandit son antique téléphone portable Huawei comme une pièce à conviction, où les six mots du SMS qu’elle a reçu samedi après-midi sont restés inscrits: « Mission annulée. Mettez-vous en attente ». La quadragénaire aux yeux cernés et au sweat-shirt en éponge saumon n’est pas astronaute. Elle est emballeuse de biscuits secs à l’usine Jacob’s, une énorme bâtisse de brique sur laquelle flotte l’Union Jack, à Aintree, au nord de Liverpool. Lorsque son patron a besoin de ses services, Candice, 46 ans, place dans leurs boîtes les cheese crackers ou les club chocolate, qui défilent sur un tapis roulant. Sinon, elle attend la prochaine « mission » de l’agence de placement Prime Time, qui sert d’intermédiaire. Un simple SMS pour la convoquer au travail, parfois dans l’heure qui suit. Un autre, éventuellement, pour annuler sa venue. Et des journées entières à attendre qu’on la sonne, en pensant à la paie qui rétrécit à chaque heure perdue.
Appelée ainsi vendredi pour rejoindre l’équipe du dimanche matin à 7 heures, elle a appris la veille que, finalement, on n’avait plus besoin d’elle. « I’ve been cancelled » (« J’ai été annulée »), explique-t-elle en un terrible raccourci. Le long silence qui suit n’est troublé que par les applaudissements du jeu diffusé par la télé, allumée en permanence.
Como se viu, o que ali se descreve não decorre na África profunda, nas montanhas secretas da América do Sul, nos confins dos planaltos tomados pelo terror islamita ou em qualquer outro local distante que nos sossegue a alma. Não é longe nem podemos dizer que não nos acontecerá a nós ou aos nossos: é aqui ao lado, no coração da Europa civilizada, em Inglaterra.
Cresce o número de pessoas profissionalmente desprotegidas, à mercê de um telefonema, de um qualquer chamamento. Não têm garantia de nada. Inscrevem-se numa empresa que angaria trabalhadores e os coloca nas empresas que os requisitam. Podem ser contactados por sms para se apresentarem numa empresa no espaço de 1 hora. O artigo fala das pessoas que embalam bolachas. Quando a fábrica precisa de gente, contacta uma dessas empresas que, por sua vez, contacta uma pessoa da sua base de dados.
Nós somos como os bolos que embalo na fábrica: caímos numa caixa para deixar espaço para os seguintes, diz um operário dessa fábrica, a Jacob's.
Certamente que, para os gestores da fábrica, o que importa é reduzir custos, aumentar a eficiência. Seja de que forma for, os meios não interessam, o que interessa é que os custos sejam baixos, para a margem ser confortável, para que o artigo seja competitivo face à concorrência. As pessoas que embalam os bolos valem tanto como os bolos, como se os clientes que compram os bolos tudo merecessem, como se os clientes não fossem pessoas tão frágeis quanto os operários de horário zero.
Os trabalhadores sujeitos a este infame regime, trabalham as horas que calharem. O valor horário é mínimo e nunca sabem se vão ter trabalho na semana seguinte, no mês seguinte. Claro que, quem diz trabalho, diz rendimentos. É a precaridade levada ao extremo, a desprotecção, a insegurança.
Imagino a angústia de quem aguarda um sms que não chega quando não tem outra forma de rendimento, quando tem família para sustentar ou quer formar uma e não vê condições para o fazer.
Imagino a angústia de quem aguarda um sms que não chega quando não tem outra forma de rendimento, quando tem família para sustentar ou quer formar uma e não vê condições para o fazer.
No artigo, alguns dos ouvidos dizem que se sentem até preteridos por serem ingleses e brancos já que há imigrantes que pacificamente se sujeitam a tudo, sendo ainda mais dócil carne para canhão.
Todo o excelente artigo é uma punhalada no peito. Pelo menos para mim é. E acredito que o seja para todos quantos sentem como sua a tragédia que isto é.
Como se chegou aqui? Que voltas tresloucadas é que o mundo deu sobre si próprio para que se tenha chegado a este triste ponto?
Muitas vezes o tenho aqui perguntado: se não se governa para bem das pessoas, governa-se para quê?
Como é que a humanidade iniciou uma trajectória contrária à do universo no qual se insere? E que loucura. Como se pode pretender que os tempos andem para trás?
Há alguns anos conheci um senhor que me contou que antes, há muitos, muitos anos, na antiga CUF, no Barreiro, havia uma figura designada por ‘o balão’.
Quando era preciso mais gente para as fábricas, alguém chegava ao portão e dizia que precisava de não sei quantos homens. Enchia-se o balão. Contava ele que muitas vezes queriam gente para carregar sacas de 100 kg de adubo ou outros trabalhos pesados que davam cabo da saúde de qualquer um.
Junto ao portão esperavam muitas e muitas dezenas de homens desempregados, ansiosos por serem chamados. Depois havia ainda a escolha. A olho eram escolhidos os mais fortes. Os mais fracos continuavam sem trabalho, aguardando dia após dia.
Mais tarde, quando não eram mais precisos, eram postos fora. Era como se o balão se esvaziasse. Chegavam a ser dispensadas centenas de pessoas que, sem trabalho, seguiam, rua fora, em busca de qualquer outra coisa, talvez nos campos, o que aparecesse.
Passou-se isso várias décadas atrás num país retrógrado, nuns tempos longínquos. A pobreza, a desprotecção, a ditadura, tudo contribuía para que os mais desafortunados se vissem à mercê de um chamamento, vivendo sem direitos, sem direito a um futuro digno.
Mas eis que, aqui chegados, tanto tempo depois, é para trás, para esse negrume, que estamos a ser empurrados.
A mediocridade é geral, a impunidade campeia, a ignorância parece tudo cobrir como um manto denso e opaco que destrói a vida, que impede que a luz e o oxigénio passem para as camadas inferiores.
E tudo vamos aceitando, como se não fosse connosco, como se não nos pudesse acontecer, como se os outros não fôssemos nós.
* Leitor atento chama-me a atenção para a forma como escrevi: zero horas e corrige para zero hora. Admito que seja correcto dizer zero hora (hora no singular) mas a verdade é que não me soa bem e, portanto, neste caso, mantenho por me parecer que a habituação oral talvez justifique a imprecisão da escrita. Contudo, vou ver se me informo pois, se o que estou a escrever for um disparate completo, corrigi-lo-ei.
Mas eis que, aqui chegados, tanto tempo depois, é para trás, para esse negrume, que estamos a ser empurrados.
A mediocridade é geral, a impunidade campeia, a ignorância parece tudo cobrir como um manto denso e opaco que destrói a vida, que impede que a luz e o oxigénio passem para as camadas inferiores.
E tudo vamos aceitando, como se não fosse connosco, como se não nos pudesse acontecer, como se os outros não fôssemos nós.
Primeiro levaram os comunistas,
mas eu não me importei
porque não era nada comigo.
Em seguida levaram alguns operários,
mas a mim não me afectou
porque eu não sou operário.
Depois prenderam os sindicalistas,
mas eu não me incomodei
porque nunca fui sindicalista.
Logo a seguir chegou a vez
de alguns padres, mas como
nunca fui religioso, também não liguei.
Agora levaram-me a mim
e, quando percebi,
já era tarde.
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- O primeiro vídeo é Stephen Hawking - The Expanding Universe (ie, the expanding universe, the doppler effect, introduction to the birth of the universe)
- Tinha o poema por ser 'A indiferença' de Bertold Brecht mas o André diz que não, que faz parte de um sermão de Martin Niemöller e eu acredito nele.
- O último vídeo é Despair, sendo a música da autoria e interpretada por Johan Troch.
* Leitor atento chama-me a atenção para a forma como escrevi: zero horas e corrige para zero hora. Admito que seja correcto dizer zero hora (hora no singular) mas a verdade é que não me soa bem e, portanto, neste caso, mantenho por me parecer que a habituação oral talvez justifique a imprecisão da escrita. Contudo, vou ver se me informo pois, se o que estou a escrever for um disparate completo, corrigi-lo-ei.
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Relembro: no post abaixo o ambiente aligeira-se. É tempo de festa de aniversário, de beautiful people, de glamour. Acho que talvez até saiba bem um sopro de leveza depois do peso da realidade.
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Desejo-vos, meus Caros Leitores, uma boa sexta-feira.
Saúde e alegria é o que vos desejo a todos.
...
Zero horas? Ta certo.
ResponderEliminarZero hora,não será?!
Cristiano
Também eu pensei durante muito tempo que fosse um poema de Bertolt Brecht, mas quando tentei saber em que obra/publicação estaria escrito, todas as informações que consegui me conduziram no sentido de ser de um texto de um sermão de Martin Niemöller. Existem diversas versões do "poema", nomeadamente com quebras de versos diferentes e vocabulário diferente. Esta é a minha preferida.
ResponderEliminarCumprimentos
sim, desesperante.. que futuro atroz nos espera!! "ninguém pode dizer desta água não beberei", já que " o dia de amanhã ninguém o viu", somos simples peças duma engrenagem... Mario Puzo no seu livro "O Siciliano" descreve um sistema semelhante de contratação de mão de obra...excesso populaçional, utilização de tecnologia sem ética, poluição/destruição da "Mãe Natureza", ausência de valores morais, avidez desmedida, só pode levar à destruição do Planeta Terra, na sua versão Verde. Ninguém se alimenta de plástico, ouro, betão,ferro,transgénicos, sem água potável ninguém sobrevive e no futuro o que teremos são simples cursos de água sem vida e completamente contaminados, somos filhos da Mãe Natureza e não donos dela, tem que haver espaço para florestas, etc...Uma sociedade doente, tem como futuro o colapso...
ResponderEliminar"zero hour contracts"
ResponderEliminarTRADUÇÃO
Contractos zero hora.
Zorro
Sobre a "zero hora", não conheço nada em Portugal, mas no Brasil, para além de haver um jornal com esse nome, a legislação utiliza "zero hora" e no sítio do Senado há várias instruções de estilo, entre as quais a "zero hora", que é quando entram em vigor todas as leis (v.g. "entra em vigor à zero hora do dia...".
ResponderEliminarBeijinhos
_ «zero hora» // «zero horas»: talvez dê alguma luz sobre a questão
ResponderEliminarhttp://www.ciberduvidas.com/pergunta.php?id=17017
_ de facto, embora lhe seja bastas vezes atribuído, o poema não é de B.B.
Bom fds, UJM
Neste seu Post, acaba de descrever o sistema capitalista actual, sem tirar nem pôr. Tal como ele é hoje, cá e lá por fora (pelo menos numa boa maioria de países). O sistema que gente infame e miserável como Passos, Portas, Albuquerque, hoje o defenderam no Parlamento, por ocasião do O.E.
ResponderEliminarConheço inúmeros casos que, desde há uns tempos a esta parte, são representativos da precariedade que entretanto se instalou, graças a este inqualificável governo. E de quem lhe dá cobertura, como a Comissão Europeia (com o bastardo do JM DB como seu principal impulsionador), o FMI, os tais Mercados e Agências, etc.
O Capital, aos poucos, perdeu a vergonha e foi, passo a passo, minando alguns bons princípios que ainda subsistiam, politicamente, como os da Social-Democacia, etc.
No nosso caso, instalou-se a Selva, com estes bando de alarves e criminosos a praticar, legislando, actos socialmente infames.
Vivemos tempos perigosos, com a Democracia a resvalar para índices nunca antes registados, depois do 25 de Abril. Com um PR, autoritário e socialmente insensível, que teria, sem dúvida, sido um exemplar ministro de Salazar, tivesse ele vivido nesse tempo, tudo isto permitindo, sancionando os actos legislativos mais abjectos deste governo.
Portugal vive uma catástrofe desde há 3 anos. E por mais um ano ainda! A sua dimensão social, laboral, económica e política terá repercussões que levarão anos a sarar.
Esta gente e este tipo de capitalismo, como aqui descreve, nas relações laborais, deveria, depois de Outubro de 2015, de ser erradicada, para todo o sempre, deste país!
P.Rufino