quarta-feira, setembro 17, 2014

Desencontros. Encontros.




Ela beija-me nos lábios. Parece que tem de ser, por causa do fotógrafo. Levantam uma discussão porque eu é que devo beijá-la. Beijo. Tropeço no vestido. Metade das flores fica no chão.



Querendo uma coisa, tem de se largar mão de outra? A minha boca arada é de inteiro que gosta. Quem existe pra me confirmar nos desejos do meu coração e dizer: 'Vai filha, que não obras em erro'? Se a responsabilidade é minha, me aperta. Gosto de agir com garantias, escasseadas neste nosso mundo agitado de teorias.



Sozinhos no escuro, hesitando, foi ela que teve coragem e acendeu a lâmpada da cabeceira. Pelo dia adiante, fora o sim da igreja, não tínhamos falado nem sabíamos que dizer.

Vejo-a despir-se sem recato, vir para mim, sorrindo, as mãos sobre o ventre:

- Aperta. Vê como já se sente.

Ponho as mãos atrás das costas, assustado, incapaz de mexer, e ela corre para a cama a soluçar, apaga a luz.



Quero o que se deve querer, já que, conforme o mandamento, somos todos chamados à perfeição: é por isso, é por estrito senso de dever que eu quero o mais custoso. Gosto de coisa boa. Falo assim, um pouco por literatura, força de expressão, porque sei que devo abrir o Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo e fazer tal e qual. Mas vigia, é nas pequeninas coisas que me estrepo. Por exemplo: gosto de passar brilho nos lábios e levantar as sobrancelhas com uma escovinha. Onde é que eu encontro permissão para isso nas Sagradas Escrituras? Onde?


Na cama era pior. A fala reduzida ao mínimo, ao que obriga a partilha dos lençóis, ternura nenhuma, como se o sacramento nos tivesse trazido a mudez e o veneno. Fel, quando os olhos se encontravam. Despíamo-nos no escuro e a cama era grande bastante para que os corpos não se tocassem. Uma luta.

Às vezes, acidente, surprendia uma perna nua,o seio a transparecer, crescia em mim um desejo que me nauseava a ponto de vomitar. E ela, ignorante, compadecida:

- Sentes-te mal?

Empurrava-a para que me deixasse.

- Bruto!


Tudo é de Deus, menos o pecado. Você que me escuta e tem coração maldoso, ri pra dentro pensando que eu sou fácil. Não sou. Eu sou muito pedregosa, caçadeira de chifre na cabeça de cavalo, caçadeira de indaca.
Invez de casar e cuidar de filhos, pôr espinafre moído na sopa deles pra eles ficarem fortes, pregar com linha dupla os botões na camisa do meu homem, eu fico teologando em latim, fico querendo um Romeu constantemente na minha janela, falando e tocando violão pra mim como se eu fosse a única mulher desta terra e a mais bonita, sem a qual homem algum pode viver. 



Ela chora e amparo-a sem carinho, só porque me dá pena o corpo disforme, sacudido.

- Se tu quisesses!

Que lhe respondo? A minha vontade é fugir, desaparecer, subir o Monte e caminhar para o outro lado, longe, sozinho. O sonho do menino que queria crescer.


Quero ser canonizada santa casada poetisa. Na minha imagem quero bem visível a aliança no dedo da mão esquerda, a coroa de louro reverdecente na minha testa. Assim, por catequese, para exemplo e conquista de quantos se afastam porque falo Teu nome, ó Senhor, com minha língua suja, mas com um desejo tão puro minando do meu coração, como resina em tronco machucado.


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Cá está: J. Rentes de Carvalho e Adélia Prado - ele dizendo 'Montedor' e ela, em itálico, 'Solte os Cachorros'. Les beaux esprits se rencontrent, é sabido.



O vídeo é Adélia Prado dizendo Para o Zé 
(...) Aprendo. Te aprendo, homem. O que a memória ama fica eterno. 
Te amo com a memória, imperecível. (...)


As fotografias mostram Kate Moss e David Gandy.


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