sábado, agosto 02, 2014

Perigosa sedução [ - e a história vai ficando cada vez mais estranha; nem sei até se não abra uma nova rubrica: Contos Eróticos]


No post abaixo escrevi sobre a intervenção estatal no BES 
(quando escrevi grande parte do texto ainda não sabia que já era dada como certa e, no fim, estava a escrever e a ouvir a notícia que a confirmava),
intervenção essa que vai salvar o banco e evitar um muito sério colapso generalizado
(porque se já tivemos em Portugal algum verdadeiro risco sistémico este é, sem dúvida e desde o início, um desses casos)
e já lamentei que à frente das instituições relevantes do País estivessse gente tão mentalmente débil que só percebeu isto depois de milhares de milhões de perdas, e já me indispus com o desavergonhado do Gomes Ferreira a falar como se o que agora apareceu a dizer fosse o mesmo que diz desde o início.

E falei de mais não sei o quê.

Mas isso é a seguir. Aqui, agora, a conversa é outra.

Deve ser pela preocupação que este caso de polícia me tem andado a dar, parece que a minha cabeça, quando se quer evadir, só vai para jardins proibidos. Por isso, vocês, meus Caros Leitores, pensem bem antes de vir comigo.


Finisterre




Se eu contasse ninguém me levaria a sério. Por isso escondo e apenas em segredo, aqui à noite, escrevendo quase às escuras num pequeno computador, entre livros, o confesso. Não pretendo que acreditem em mim. Pensem que isto é uma história saída da cabeça de uma louca.

Digo que escondo mas, para ser honesta, não escondo já que não tenho junto de quem esconder. 

Às vezes, para não perder o hábito de falar, leio em voz alta. Outras vezes, converso como se tivesse ao meu lado um interlocutor atento. Por vezes, acabo por me calar pois quase me parece ouvir uma voz respondendo e tenho medo de estar a enlouquecer.

De vez em quando, saio para comprar comida mas cada vez mais me alimento de comida crua, fruta, bagas, coisas assim. A comida cozinhada já me parece um artifício que não se enquadra no meu regime de vida, quase um bicho vivendo em plena natureza. Aproveito também para comprar pão e queijo ou outras pequenas coisas que a senhora do pão traz na carrinha. Por vezes, para não ter que me vestir e pentear e, pior, falar com ela, deixo um saco com um papel e uma nota do lado de fora do portão e ela deixa os produtos e o troco. É uma boa mulher, gorda e asseada, mas muito faladora e a voz humana, de facto, começa a ser-me estranha.

Mas ontem aconteceu algo muito estranho. Estou aqui para o contar e, portanto, estou bem, sobrevivi. De resto, já poucas coisas me afectam.

Depois de almoço, deitei-me numas almofadas que estão no chão, debaixo da figueira. Adormeci. Durmo pouco de noite e, portanto, ao princípio a tarde tenho sempre sono.

Quando acordei, fui dar uma volta pela periferia do terreno da quinta; gosto de ver como as árvores rebentam, as ervas florescem ou secam, descobrir novas tocas, observar ninhos e o voo das borboletas. Por vezes, detenho-me imóvel a olhar a dança das nuvens ou o recorte da copa das árvores e, junto aos meus pés, passam coelhos que já não me estranham.

Ao regressar e estando a passar pelo muro que separa as duas quintas, ouvi estalidos, vozes. Subi de novo à árvore, espreitei. Não vi nada de estranho mas percebi vozes de homem. Tentei ver a mulher de cabelos brancos que talvez fosse a mesma que a mulher vestida de branco que me deu banho no outro dia mas não a vi. Então, sem pensar, passei para o muro e voltei a saltar para o lado de lá. Pensando nisto, percebo que estou a adoptar cada vez mais comportamento de bicho, um dia viverei talvez dentro das árvores ou no desvão de uma rocha.   

Fui andando. A correr vindo não sei de onde, apareceu o gato traiçoeiro. Eu tantas vezes sozinha e ele nem sei onde e, naquela altura que eu queria silêncio, apareceu-me ele. Quis vir roçar-se em mim mas ignorei-o. Tinha todos os meus sentidos apurados para descobrir de onde vinham as vozes, para ver se via sem ser vista. O gato miou num lamúrio. 

Ao de leve subi as escadas gastas, devagar, silenciosa. De dentro vinham risos, homens. Pensei, será que a mulher de branco está no meio deles? Até que percebi que as vozes vinham da grande divisão ao fundo. Esgueirei-me e vi-os. Ouviam música, estendidos, rindo.

Sem pensar, e que bom é não pensar, que bom, que bom, fui até ao quarto da mulher de branco. Pensei, estará lá? Mas não, o quarto estava vazio e desolado como se não fosse habitado há mil anos.

O gato arqueou as costas, roçou-se pela parede.

Abri a arca, escolhi umas peças. Despi o vestido largo que trazia e coloquei uma cabeleira, coloquei colares, enfeitei-me com véus, chapéus. Olhei-me ao espelho. Não era eu de novo. Ou talvez esta, esta que agora se vem fundindo com o céu na terra, seja eu.

Reparei como o meu olhar era desolado.

As vozes dos homens ao fundo não me incomodavam mas sabia que era para eles que me estava a preparar.

Despi-me de novo.

Deixei ficar a cabeleira branca, enfeitei-me de branco, véus, rendas.

Quis-me virgem, puríssima, sôfrega. Olhei-me no espelho.

Os olhos tinham já alguma vida. A pele nua, os risos masculinos, o risco - que melhor alimento para um olhar convidativo? E o meu olhar convidava. Convidava-me a avançar.

Despi-me. Nua, calcei umas botas altas. Gostei de me ver assim.

O gato olhou para mim e começou a lamber-se. Em surdina disse-lhe Não prestas...

Depois, destemida, nua, e como se a minha nudez fosse a coisa mais natural deste mundo, entrei na divisão onde os homens conversavam e riam.

Levantaram-se de um salto. O gato gemeu.

Fiz-lhes um gesto para que se sentassem. Sentei-me também.

Os homens olharam-me em silêncio. Percebi que trocavam olhares intrigados. Um perguntou, De que sonho é que esta mulher saíu? Os outros riram-se, um riso pouco à vontade.

Eu não disse nada, sentia-me como se tivesse vindo, de facto, de um mundo irreal, como se fosse normal não os perceber nem saber falar a língua deles.

Entreolharam-se, um disse, Será que não nos percebe…? E outro acrescentou, Ou não nos ouve…? Continuei a olhá-los como se não os ouvisse ou percebesse. Acercaram-se de mim.

Tapei os seios, cruzei as pernas, um súbito pudor. Um deles deitou-se aos meus pés e eu fiz de conta que isso me deixava indiferente. Mas claro que não deixava. Um outro debruçou-se sobre a mesa onde eu apoiava um dos braços e disse-me Posso ver se o seu corpo é de porcelana ou se é uma mulher de verdade? Continuei a olhar em frente e nada disse.

O homem que se tinha sentado aos meus pés, encostou a cabeça à minha perna nua, desabotoou a camisa. Fiz de conta que o ignorava.

Um outro que bebia sem parar, disse, O que temos que fazer para perceber quem és tu?

Pensei que talvez a voz não me saísse se tentasse falar. Por isso hesitei. O que se tinha debruçado sobre a mesa, disse, Ela não é de cá. O que bebia disse, Talvez seja de um outro mundo mas eu estou com vontade de lhe pôr as mãos em cima.

Então eu disse, Quero armar-vos meus cavaleiros. Vão ao quarto lá ao fundo e vistam-se decentemente. O do vinho soltou uma gargalhada. Os outros levantaram-se, admirados, como se estivessem na presença de uma aparição.

Mantive-me a olhar em frente. Sei que parecia indiferente - mas claro que não estava.

Obedeceram. Os homens obedecem sempre quando pensam que vão receber uma recompensa. Saíram da sala. O gato apareceu, ronceiro, miando baixo, suspirando.

Algum tempo depois apareceram. Vinham com casacos de veludo, alamares dourados, e estavam belos, dóceis, prontos para serem domesticados.

O que tinha estado a beber vinha à frente, descarado, gingão. Castiguei-o, A si não vou armá-lo, não tem perfil para isso. Ele deu outra gargalhada. Perfil? Mas quem é que falou em perfil? Fico mesmo melhor é de frente.

Com o olhar repreendi-o. Volte para trás e vá buscar uma pequena harpa que está junto à porta da entrada.

Ele estacou: Está a gozar comigo! Música? Não. Não sou homem de dar música.

Fui inflexível: Ou isso ou nada. Teria que sair da sala.

Obedeceu mas antes disse: Vai pagá-las.

Secamente respondi-lhe: Vamos ver quem paga a quem.

Algum tempo depois, apareceu com o instrumento musical. Ordenei-lhe: Sente-se atrás de mim e toque qualquer coisa. Desafiador, perguntou: Música celta, pode ser? Disse-lhe que sim, Se é o que sabe tocar. E ele tocou. O meu corpo deixou-se cobrir pela música que vinha dos seus longos dedos.

Os outros aguardavam passivamente. Sempre com um braço a cobrir-me os seios, ordenei-os meus Cavaleiros. Disse-lhes, depois: Sois agora cavaleiros da ordem do Infinito Perfeito. Podem beijar-me os joelhos.

Assim o fizeram. Depois disse-lhes que se sentassem à minha frente, sossegados. O gato gemeu. A seguir disse ao outro que parasse de tocar e viesse também beijar-me os joelhos. Ele disse que sim mas, quando estava à minha frente, pegou no meu braço, o braço com que eu me cobria, e pousou-o no braço do cadeirão. Fiquei assim, olhar indiferente, despida. Quando ia beijar-me os joelhos, repreendi-o de novo, Que falta de educação a sua. Então não sabe que, não sendo Cavaleiro, antes de me beijar os joelhos, deverá beijar-me os mamilos? Notei que enrubesceu. Depois olhou-me nos olhos. Enfrentei o seu olhar. Ele então, com uns lábios delicados e uma língua educada, beijou-me os mamilos. Ao fim de algum tempo, eu disse-lhe, Está bem. Já chega. Pode agora beijar-me os joelhos.

Acabou por lá chegar.

Os outros olhavam-nos sem uma palavra. O gato estava deitado, como se estivesse a dormir mas, conhecendo-o como já o conheço, sei que estava apenas a ser discreto.




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A música é Finisterre por June Tabor.

As fotografias, excepto a do gato, são de Steven Meisel.

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Relembro: sobre a nacionalização do BES (as voltas que a história dá) é descer, por favor, até ao post já a seguir.

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Desejo-vos, meus Caros Leitores, um belo sábado. 
E, se encontrarem por aí algum Cavaleiro da ordem do Infinito Perfeito, digam para vir ter comigo, se faz favor. 


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