terça-feira, agosto 26, 2014

Percebi que quando entro para uma palavra é como quando entro numa casa. Ambas podem e devem estar desabitadas.


No post abaixo já vos falei de José Gil, o filósofo com sorriso de menino, e já vos disse que Einstein - a ser dele a frase que se cita - explica bem porque é que dos actos de Passos Coelho e da tropa fandanga que o apoia não é de esperar outra coisa senão derrapagem no défice, aumento da dívida, pobreza, subdesenvolvimento. Estranho é que os mesmos disparates repetidos vezes sem conta produzissem resultados diferentes. Ele faz porcaria e os resultados são uma porcaria. Bate certo. E é um sortudo. Poderia querer fazer porcaria e não o deixarem. Mas não, todos o deixam à vontade para fazer porcaria em todo o lado a toda a hora.

Para cortar, mostrei-vos a vista maravilhosa que tinha da esplanada sobre o mar onde estive ao fim do dia. Uma beleza que só vista.

Mas, enfim, isso é a seguir a este post. Aqui, agora, a conversa é outra. Tinha começado a compor este post ontem mas depois mudei de rota. Aqui estou de novo, pois, para prosseguir. Desenhar nuvens.


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"Não tenhas receio; a ilha está cheia de ruídos, de sons e de músicas suaves que agradam e não fazem mal. Às vezes, mil sonoros instrumentos ressoam-me nos ouvidos; outras vezes, são vozes tão doces que, se estou acordado depois de um sono prolongado, me tornam a adormecer; então, em sonhos, parece-me que as nuvens se abrem e vejo riquezas sem conta que vão chover sobre mim; assim é que, quando acordo, anseio por sonhar outra vez."
(Shakespeare, A Tempestade, Caliban, 3º acto)



Através das janelas, tal como na grande moldura da ilusão que é a boca de cena, vejo desfilar as gentes e os lugares.

E não é uma questão da quantidade de livros que lemos, nem do tamanho da biblioteca, mas sim o modo como só alguns poucos livros nos podem acompanhar e alimentar a vida inteira. E por vezes são só mesmo pequenos fragmentos de alguns livros que nos marcam.

(...) percebi que quando entro para uma palavra é como quando entro numa casa. Ambas podem e devem estar desabitadas. Ambas esperam ser moldadas, seduzidas pelo universo que transporto aos ombros. E é com esse peso, qual densidade da minha própria sombra, que se contamina uma qualquer atmosfera, que se produz um lugar efémero e puro. O espaço da palavra.



Saber vaguear, folhear num aparente caos. Preciso de me perder por lá, e quantas vezes me é difícil encontrar a saída.

Mas é com redobrada alegria que consigo trazer dessas 'viagens' as referências que vão acarinhar as futuras descobertas. Estar nessa grande biblioteca como na cidade.

Tal como Walter Benjamin dizia sobre viajar e conhecer cidades "... gosto de me perder na cidade, mas como tudo requer uma aprendizagem..."



"o que atrapalha ao escrever é ter que usar palavras. (...) Se eu pudesse escrever por intermédio de desenhar na madeira ou de alisar uma cabeça de menino ou de passear no campo, jamais teria entrado pelo caminho da palavra."
(Clarice Lispector, Lembrança da feitura de um romance, 1984)


Ao entardecer, gosto intuitivamente de reparar com especial atenção na projecção que o sol faz no chão da sala ou nos surpreendentes de contraluz que o mesmo provoca nos corredores.

Os longos corredores das casas são também verdadeiros laboratórios de cena, com as suas várias cortinas de luz e cor. Infelizmente, as casas de hoje já não têm esses corredores. Lá nasciam muitos dos sonhos de infância. Normalmente às escuras, o corredor é como um palco vazio sempre à espera de um acontecimento. Basta que uma porta se abra para deixar espreitar um pequeno raio de luz, para uma simples fresta surgir. Suficiente para o início de outra aventura.

Os nossos sonhos estão impregnados de luz e cor. (...)

E se há uma memória da luz, também há uma poética da luz. O mergulho no mundo da luz e da cor é também para mim um acto poético. A poesia emerge sempre que a imagem consegue vibrar.



À beira da estrada, um casebre. Um homem, lavrador decerto, de olhar doce e sagaz, recebeu-nos. "Este senhor lhe dirá então as oliveiras que pretende."
Caminhando pelo olival adentro, na terra lavrada, o homem disse-me que, vendo uma a uma, era só escolher. Ele me diria depois as que poderia cortar ou não.
"Esta aqui pode ser?"
"Ah, esta aqui é a Sara."
E deu uma volta atenta em redor da mesma.
"Não, esta não pode ser.". Continuamos.
"E aquela ali?"
"A Begónia? Vamos ver. Sim, pode ser. Cortamos aqui, deste lado."
E assim fui apresentado a tantas oliveiras amigas. Árvores centenárias ou mesmo milenárias, de troncos possantes, rendilhadas carcaças, ostentando em mil rugas a passagem do tempo.

Todas tinham um nome. Manolo vivia só e esta era a sua família. Observava carinhosamente as velhas carcaças dos seus troncos. Tocava-lhes com suavidade. parecia sussurrar-lhes algo que eu não entendia. Dando voltas na terra mole e com alguma relva, sabia com segurança aquelas que já tinham 'sus hijos' a nascer da mesma raiz, o que lhes garantia a sobrevivência. 
"De certo modo, até me dava jeito limpar algumas árvores", dizia ele.

Lembro-me da forma peculiar como, naquela tarde, o sol entrava através dos ramos do olival. Também do silêncio e tranquilidade daquele campo.








Georges Banu consagrou-lhe um belo livro chamado, precisamente, O esquecimento (L'oublie). Aquela zona de nós mesmos por onde começa o vazio.

"As metáforas mais habituais do esquecimento: a areia, o pó, o fumo... todos parecem dizer-nos o mesmo: o esquecimento é monotonia."

Uma 'black box' é também um exercício para o esquecimento total, na tentativa de recomeçar tudo de novo. Tentativa impossível, porque o esquecimento por maior que seja nunca é total. É como a ferrugem. Na oxidação do ferro mais vigoroso, a ferrugem, em conluio com o tempo, avança, sem parar, mas deixa um pó. O óxido da memória.



E quando envelhecemos, 
parece que ficamos heróis 
das pequenas histórias 
sem importância.

(Tchekhov)

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Todo o texto até aqui e abaixo do vídeo com Benedict Cumberbatch a ler 'The Seven Ages of Man' de Shakespeare são excertos transcritos desordenadamente do maravilhoso livro Desenhar Nuvens de José Manuel Castanheira, um 'Manual de sobrevivência de um Cenógrafo, Cenógrafo a quem Fernando Alves muito justamente colocou na galeria dos Portugueses Excelentíssimos.


Este livro é, em si, uma obra excelente, de uma qualidade e requinte ínvulgares. O design e a paginação são de Rui Rica, a Edição é de Caleidoscópio e teve o apoio da Câmara de Almada.

Os desenhos ou aguarelas são da autoria de José Manuel Castanheira. A penúltima imagem, com texto de Tchekhov, mostra uma fotografia de Constantino, avô do autor.


O que também merece uma atenta visita é o seu site que é interactivo e especial. Há pessoas que são diferentes mas que o são de uma forma produtiva, elas fazem a diferença. José Manuel Castanheira é, sem dúvida, uma pessoa que desenha nuvens como ninguém, desenha sonhos, inventa espaços de luz para acolher o milagre da palavra dita.


A escolha do poema de Shakespeare ou o de Manuel António Pina (Amor como em casa lido por José-António Moreira) para integrarem este post são da minha responsabilidade e não me perguntem a que se devem pois apenas saberei dizer que acho que fazem sentido ou que soam bem neste contexto.


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Relembro: no post já a seguir, o caldo azeda. Tirando a parte em que falo de José Gil e mostro um mar belo ao cair do dia, o resto é mesmo só para a desgraça. Estão avisados.


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Desejo-vos, meus Caros Leitores, uma terça feira em beleza. 
Saúde, sorte e boa disposição e bons sonhos para todos.


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1 comentário:

  1. bob marleyagosto 26, 2014

    tenho saudades da crónica (última página do JN) de Manuel Pina, conseguia dizer tanta coisa numa coluna pequenina. Para mim quem diz com pouco tudo é um génio.

    começava a ler o JN por aí

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