segunda-feira, julho 21, 2014

Talvez porque quase morri ao nascer, nasci sem asas


No post abaixo já vos dei conta da minha perplexidade e, de certa forma, da minha angústia perante a conjugação de rancores, massacres, ódios que grassam por este mundo fora. Visto de cima o planeta é azul, pacífico, parece limpo e feliz. Mas, à superfície, o que se vê são feridas abertas, gangrenas, dores.

Mas, felizmente, de vez em quando aparecem vozes que vêm de dentro da terra, trazendo a pureza do primordial. Esta semana, no Expresso, o Pde. Poeta José Tolentino Mendonça traz uma carta de Rosa Luxemburgo e fala-nos de como é possível a felicidade em tempos de cólera e fala-nos, também, do amor e compaixão pelos que são humilhados e cuja dor é desprezada (sejam quem forem os outros).

Mas isso é a seguir. Aqui, agora, a conversa é outra.


I can fly




Era para ter nascido umas duas ou três semanas antes. Com dificuldades em dar à luz, tal como já tinha acontecido com o seu próprio nascimento e como viria a acontecer com o parto dos seus netos, a minha mãe foi internada num hospital onde a iam deixando morrer. Muitas vezes ela diz, aquelas freiras, umas malvadas, eu a gritar, cheia de dores e elas nem queriam saber e depois, dias depois, já mais morta do que viva, e não ligavam nenhuma.

Acabei por nascer mas, tendo estado em sofrimento, presumo que sem oxigénio, nasci coberta de limos. Verde. A minha mãe diz que nasci toda coberta de verde, e inanimada. A maior parte das vezes não diz morta mas diz que tiveram que me dar uma injecção de coramina para me reanimar. Depois puseram-me na cama dela mas, exausta, caíu num sono profundo. Foram as do lado que se aperceberam que eu estava de novo quase asfixiada pelo seu corpo. As freiras não queriam saber. Podias ter morrido, nem sei como escapaste, diz a minha mãe.

Com tudo isto, poderia ter ficado com sequelas gravíssimas, a minha mãe diz isto ainda horrorizada, ainda com as marcas de sofrimento e susto muitas vivas no seu corpo. Quando o assunto vem à baila, há sempre alguém que diz, Então e não ficou com sequelas...? Ficou! Porque é que acha que ela é tão maluca…? A minha mãe ri.

Sabendo disto, admiro-me também e interrogo-me sobre se a falta de oxigénio, os dias de sofrimento em trabalho de parto, a necessidade de ser reanimada, terão deixado sequelas em mim, se sou como sou também por isto.

Mas não detecto nenhuma anomalia. Apenas a falta de asas. Nasci sem asas.

Claro que me habituei. Caminho sobre os pés e apenas a minha cabeça voa.

Acontece-me muitas vezes, em especial quando caminho ao fim do dia junto ao rio, abrir os braços, aspirar o ar fresco e molhado, olhar o céu e quase esperar que os meus braços se transformem em asas e me levem ao longo do rio. Queria acompanhar os veleiros, deixar-me ir até ao alto mar. 

No entanto, tenho medo de alturas; mas isso talvez seja, justamente, porque me falte o amparo das asas.

Se ando num sítio muito alto e sem protecção tenho a sensação de que me vou despenhar e, só de pensar nisso, os meus pés parecem ficar tomados por uma falta de força que me deixa desamparada. Vertigens. Terríveis vertigens. A vertigem do abismo.

Quando eu era adolescente, tinha um grupo de amigos que eram completamente destemidos. Chegavam de barco à praia e juntávamo-nos todos antes de irmos à descoberta. Depois, afastávamo-nos dos nossos pais e íamos para a zona das rochas altas, enfiávamo-nos nas pequenas aberturas em busca de grutas desconhecidas. Um perigo. Depois escalávamos as rochas, saltávamos de umas para outras. A parte de cima das rochas estava seca mas a parte de baixo estava molhada, fria, escorregadia, coberta de limos e algas, de mexilhões, lapas, pequenas medusas. Nas poças que se formavam na própria rocha havia por vezes pequenos peixes, pequenos moluscos; e eu adorava aquilo. Menina do mar. Mais do que andar a trepar até ao ponto mais alto das rochas, eu gostava era de andar a descobrir os recantos, de sentir o cheiro limpo do mar, de espreitar os esconderijos sombrios. Mas os meus amigos subiam, passavam de umas para as outras e dali mergulhavam para o mar. Nunca fui capaz de mergulhar lá de cima e tinha pavor de cair no vazio quando passava de umas para as outras. Era a única que não se atirava lá de cima e apenas por receio de ser excluída do grupo, me aventurava naquelas incursões tão perigosas. Depois eles mergulhavam e iam a nadar até à areia e eu tinha que descer a pé as rochas e correr para os apanhar.

Ainda hoje muitas vezes sonho que estou em sítios altos, a ter que escalar ainda mais, a ter que saltar de um lado para o outro sobre o vazio e sinto um terror paralisante. Nessas alturas, acordo assustada.

Outras vezes, em contrapartida, sonho que voo. É uma sensação muito boa, das melhores que tenho experimentado. Sinto mesmo a sensação de voar, o ar frio no rosto, na pele do corpo, o vento no cabelo, o mundo visto de cima, o corpo sem peso, leve, livre, toda eu sem destino, liberta de tudo, uma felicidade inumana percorrendo-me a alma.

Para que isto pudesse ser mais do que um sonho, faltam-me, de acto, as asas.

Perdi-as ao nascer, fruto do parto difícil, fruto, talvez, do desinteresse das freiras malvadas que não acudiram a minha mãe quando ela me entregou à luz.


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Sobre as fotografias que ilustram o texto, transcrevo:

«Stone Nudes» é um trabalho a preto e branco de Dean Fidelman, no qual o fotógrafo mostra mulheres nuas a escalar montanhas



Inspirado pela beleza do corpo humano e movido pela paixão em relação à escalada, o norte-americano Dean Fidelman fotografa mulheres nuas a escalar montanhas, em diversos lugares do mundo, desde o estado norte-americano do Arizona à Tailândia, escreve «O Globo». O projeto chama-se «Stone Nudes» (Nus na Pedra) e começou há mais de 10 anos, em 1999.






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A música lá em cima é  I Can Fly - Angel Gabriel

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Permitam-me que recorde: gostava muito que descessem até ao post seguinte. Depois de uma introdução com uma reflexão muito desolada, tenho lá um texto maravilhoso escrito a meias entre Rosa Luxemburgo e José Tolentino Mendonça.

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Desejo-vos, meus Caros Leitores, uma bela semana a começar já por esta semana.

Be happy.


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