No post abaixo já mostrei o tipo de reuniões em que o Moreira Rato e outros aprendizes de feiticeiros devem participar quando se preparam para ser comidos pelos mercados. O Lacerda da Porta dos Fundos mostra como é. Uma fantástica rábula (que as meninas, especialmente as de ouvidos sensíveis, devem ouvir mas com algodões nos ouvidos).
Mas isso é a seguir.
Aqui, agora, a conversa é outra. Aqui dou a palavra, a eloquente palavra, à Leitora JV. Um texto que merece uma leitura em espaço desafogado pelo que repesco as suas palavras dos comentários e dou-lhes aqui espaço em página autónoma.
Mas primeiro música, por favor:
Sangue Oculto, GNR
UJM, o problema não é a raça, não senhor! Os portugueses têm uma coisa que uma vez quando era ainda muito nova ouvi um senhor dizer: passam a vida a "medir piças" (não me censure, por favor, a expressão não é minha :)).
Isto é, quando em negociação, cada um não quer apenas fazer o melhor negócio possível para si à custa do outro, à inglesa. Não! Os ingleses sabem que se abusarem podem ficar sem negócio, que é pior do que fazer algumas cedências, por isso há um " self-restraint". O objetivo é sempre económico, uma questão de custo de oportunidade: enquanto o negócio vale a pena, fazem-se cedências.
Ora bem, o português é diferente: muitas vezes sacrifica o objetivo económico para ganhar o jogo das "piças".
Umas vezes, faz uma proposta que nunca ninguém aceitaria e que se lhe fizessem a ele, tomando-o como parvo, se sentiria insultado (isto é quase sempre obra de advogados, que na ganância de defender o seu cliente a todo o custo, estragam negocio atrás de negócio, prejudicando-os sistematicamente). Outras vezes, têm uma boa proposta em mãos, mas em vez de aceitarem, porque não conseguem melhor, armam-se em picuinhas, apontam defeitos ao que o outro está a oferecer, querem sempre poder dizer que deram mais do que o que receberam. Às tantas o outro ofende-se, e lá se foi o negócio.
Lembra-se da tal proposta que nunca ninguém aceitaria: pois bem, às vezes, o português está tão desesperado que aceita, e depois, mesmo antes da finalização do contrato, diz que há uns problemazinhos (os tais que levavam ninguém a aceitar a proposta). Ele nunca quis aquele negócio, mas disse que aceitava tudo, que estava tudo bem, para não afugentar o cliente, na esperança de que ao falar nos problemas depois, ainda se faria o negócio. Pois bem: nunca se faz.
Sempre a adiar o problema, sempre a adiar dar a má notícia, mesmo que se saiba que se vai ter de dá-la, andando entretanto a perder tempo com um negócio que está condenado ao insucesso. Ora aqui está o problema da produtividade!
A causa dessa indignidade e falta de civismo no comportamento perante o outro, a falta de boa fé na negociação, não é a raça, porque basta um português passar uns anos em Inglaterra, na Alemanha, na Suiça, ou nos EUA, para os negócios que celebra serem lineares, agir com correção do inicío ao fim e sem dissimulações. Não digo que no estrangeiro não haja dolo e fingimento, tentar lucrar à custa do outro.
Na Common Law anglo-saxonica nem existe essa coisa da exigência da boa fé nas negociações. Mas todos sabem ao que vão e a melhor maneira de sair a ganhar e dar aos outros a ganhar. Aqui, finge-se que se está de boa fé, dá-se muitos elogios, mas não se abre o jogo: não se diz claramente as condições do negócio.
Porquê esta mentalidade? É o clima? É a geografia?
Sabia que vencemos aos espanhóis cerca de 40 batalhas pela independência, desde a formação da nacionalidade até meados do séc. XV, portanto excluindo as pós-1640? Um pequeno país que podia ser uma Catalunha ou um País Basco, reinado a partir de Castela, que existe porque houve um tipo que não queria mais ser vassalo do primo e faltou à palavra que o aio (quiçá pai) deu em seu nome para poder ser rei, jugando sujo, venceu tantas batalhas. Dá que pensar, havemos de estar aqui por algum motivo. E depois os descobrimentos, a expansão marítima, é uma história linda, épica, como não há outra. Como não há outra!
E então vêm os Padres Antónios Vieiras, os Fernandos Pessoas, os Almeidas Garretts, etc. com a história do 5º império, do sebastianismo, etc., etc. Que raiva me dá essa treta toda! Essas manias de grandeza!
Todos dizem que somos provincianos, mas vêm com essas teorias, esses mitos e exoterismos (o Pessoa - um tosco, um bêbedo, desculpem-me os admiradores, mas admitindo que nalguns poemas se possa admirar a beleza estética e até uma ou outra ideia interessante que contenham, é um bebedolas xenofóbico, que escreve uma prosa horrível, um doido, no fundo - o Pessoa diz que até o Eça de Queirós era um provinciano, precisamente um dos poucos que portugueses que não o era).
Conhece o movimento da Filosofia Portuguesa do século passado? Que coisa abjeta! Herdeiros da Escola do Porto do Agostinho da Silva e Santana Dionísio dizem que há uma filosofia especificamente portuguesa.
Não se trata de todos os filósofos portugueses, não, é um modo de filosofar português. Um país que não tem, nunca teve, filósofos, tem um movimento único no mundo que diz que temos uma filosofia só nossa.
Uma mediocridade tremenda, um provincianismo, que é o que eles próprios dizem que nos caracteriza.
Somos um país periférico e sempre tivemos esse complexo, sempre fomos atrás da Europa, da Moda francesa, das ideologias inglesas, etc., já o João da Ega dizia que importamos tudo e que depois nada nos serve, ficamos com as mangas demasiado curtas ou compridas.
Mas este não é um problema só nosso, também os russo sempre se consideraram periféricos. E outros países que, mesmo no centro da Europa, por serem pequenos e quase sempre ocupados por outros, centram muito as atenções na sua condição específica, por exemplo, a Bélgica.
Mas mesmo um Dostoievsky muito centrado no específico problema russo (da igreja ortodoxa que destronaria a de Roma, etc.) tem muito de universalidade nos livros que escreve. As suas personagens, muito russas, são também muito humanas. Os problemas por que elas passam, sendo muito russos, são também muito humanos e portanto muito universais. Agora olhemos para o Eça. Acho mesmo que é um dos maiores escritores de todos os tempos, escreve mesmo muito bem, como muito poucos.
Mas analisando esta questão da especifidade nacional, vemos que as personagens são menos universais, são mesmo só portuguesas. As suas obras são como grandes paradas, grandes cenários, as personagens são secundárias, o ambiente é o principal, aí está a universalidade do Eça, por isso não é tão problemático que os protagonistas sejam tão pouco universais. Não se trata de provincianismo, de maneira nehuma, mas o Eça que era, no fundo, um estrangeirado, olha para Portugal de fora para dentro.
Sendo o país dos descobrimentos olhamos sempre para Portugal de fora para dentro, e vemos um país de gente inculta, desonesta, feia. É muito difícil um estrangeiro ter paciência para os Maias (sei que para muitos portugueses também, mas digo um estrangeiro culto que goste de boa literatura), mesmo admitindo que o Eça é um grande escritor.
Porque quase nem há história, ninguém quer saber do amor dos dois irmãos, o que importa ali é ver como é o português e isso não interessa nada ao estrangeiro. Qualquer um lê Dostoievsky dez vezes seguidas. É a alma humana que está ali. E repare que o Eça é universal. Há nos Maias aquela personagem inglesa, o Craft, que é um tipo espetacular, mas passa a vida a dizer "curioso" sempre que acontece alguma coisa às outras personagens, as portuguesas, seja trágica ou divertida. O Eça topou muito bem o tipo inglês: que vê todos os outros como ratos de laboratório ou animais do circo, observando-os para ver como reagem, para se divertir, lá do alto na sua superioridade inglesa. Mas é um universalismo muito pouco humano, não sei se é esta a melhor expressão, mas é a que me ocorre.
Se nos deixássemos de 5ºs impérios e sebastianismos, se admitíssemos que temos uma história engraçada, que desempenhámos um papel de relevo na história da Humanidade com os descobrimentos, se pensássemos mais de dentro para fora, como até a nossa geografia propicia - caramba!, estamos virados para o mundo, de frente para o Oceano - podíamos preocupar-nos menos em ser Grandes como os Pessoas dizem que devemos ser, mas sim em portarmo-nos bem uns com os outros, tentar desenvolver este país que tem um sol maravilhoso, ser menos tristes e lamurientos.
Porque não faz sentido passarmos a vida a dizer que somos provincianos e que temos uma Missão tipo 5º Império do Espírito e da Filosofia a desempenhar.
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As imagens são pinturas de Júlio Pomar.
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Relembro que no post abaixo poderão entrar na Porta dos Fundos, uma verdadeira escola de sacanagem, perdição e má vida.
quem disse "medir piças" é um génio, mas se calhar temos que medir muitas para chegar a este nível - https://www.youtube.com/watch?v=L9O8j9QPZc8
ResponderEliminarnão sei se foi censura (não se esqueça que estamos a fazer 40 anos) ou falhei o comentário :
"Todo o Português tem um agente funerário dentro de si, não quer que ninguém morra mas quer que a vida lhe corra"
Evolução do hip-hop - https://www.youtube.com/watch?v=ZTpn30Pms8I
ResponderEliminarDuas Garrafas de absinto para esta mesa se faz favor
ResponderEliminarNATAL?... NA PROVÍNCIA NEVA
Natal!... Na província neva.
Nos lares aconchegados,
Um sentimento conserva
Os sentimentos passados.
Coração oposto ao mundo,
Como a família é verdade!
Meu pensamento é profundo,
Stou só e sonho saudade.
E como é branca de graça
A paisagem que não sei,
Vista de trás da vidraça
Do lar que nunca terei!
14-03-1928
TUDO O QUE FAÇO
Tudo o que façó ou medito
Fica sempre na metade.
Querendo, quero o infinito.
Fazendo, nada é verdade.
Que nojo de mim me fica
Ao olhar para o que faço.
Minha alma é lúcida e rica,
E eu sou um mar de sargaço
Um mar onde bóiam lentos
Fragmentos de um mar de além...
Vontades ou pensamentos?
Não o sei e sei-o bem.
13-09-1933
pensando melhor pode ser 4
A CRIANÇA QUE FUI CHORA NA ESTRADA
A criança que fui chora na estrada.
Deixei-a ali quando vim ser quem sou;
Mas hoje, vendo que o que sou é nada,
Quero ir buscar quem fui onde ficou.
Ah, como hei-de encontrá-lo? Quem errou
A vinda tem a regressão errada.
Já não sei de onde vim nem onde estou.
De o não saber, minha alma está parada.
Se ao menos atingir neste lugar
Um alto monte, de onde possa enfim
O que esqueci, olhando-o, relembrar,
Na ausência, ao menos, saberei de mim,
E, ao ver-me tal qual fui ao longe, achar
Em mim um pouco de quando era assim.
22-09-1933
isto da poesia faz-me lembrar os matraquilhos, quando menos sabemos melhor jogamos (escolhemos)
ResponderEliminarhttp://fernandopessoa.labs.sapo.pt/
ResponderEliminarhttp://multipessoa.net/
http://arquivopessoa.net/
Renovo o gosto que me deu ler esta prosa de JV, agora em Post!
ResponderEliminarP.Rufino