No post a seguir falo sobre a sexualidade de um certo deputado do PSD e, mais abaixo, mostro o resultado da minha ida aos saldos. Conversetas. Coisas menores. Ligeirezas.
Mas agora, aqui, é coisa bem diferente. A vossa atenção, por favor.
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Silêncio por favor que é tempo de um certo Redondo Vocábulo
Agora abro alas para falar de um texto do mais maravilhoso que há. Gostava de o transcrever todo. Gostava de o saber de cor. Gostava de o ter escrito. Gostava que toda a gente o lesse. Gostava que toda a gente gostasse tanto da Hélia Correia como eu gosto. Gostava que Portugal inteiro a pusesse num pedestal e a ouvisse e que as suas palavras ecoassem por essa Europa fora.
Como é que esta mulher que parece viver entre fadas e duendes, acariciando gatos e outros seres misteriosos, aparentemente perdida entre sótãos, florestas, poesias, ficções e devaneios de toda a ordem tem depois esta lucidez tão vibrante, esta precisão de atiradora profissional? Pasmo. Sempre pasmei. Mas hoje mais do que nunca.
Peço-vos, mas peço-vos encarecidamente que, no fim, abram o link para o artigo completo e, palavra a palavra, tomem o texto de Hélia Correia nas vossas mãos, pensem nele, levantem-se com as palavras dela como bandeira.
Transcrevo um pouco, apenas um pouco (destaques meus). E vou ilustrar com os graffitis de outro grande, Banksy, ao som de um outro espírito brilhante, José Afonso.
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No rigor do latim, “indignado” é o que é tornado indigno. E eis, porém, que a palavra não se aceita a ela própria, empreende uma singular rebelião. Nega a humilhação que cai sobre ela. Vejam o quanto esta palavra é poderosa. Como deitou ao chão a sua origem. Como tomou nas mãos a sua vida
I
Não tenho competência para escrever sobre os eventos da realidade. Começa a falha pelo léxico: nem sei se o termo “evento” pode usar-se aqui. Não aprendi o bom vocabulário. E quanto à organização para o discurso, saber onde ele começa e como acaba, mais o que pelo meio se vai pondo, tão pouco faço a mais pequena ideia.
(...)
Parece, às vezes, que o cenário da ficção científica assentou no planeta actual: que criaturas mais ou menos humanóides nos conquistaram pelo interior e desapoderaram-nos de tudo, esperança, dignidade e alegria. Vimos tanto clamor nas praças gregas, cólera e fogo com nenhuma consequência. É como se entre os protestantes e o poder não houvesse trajecto, não houvesse natureza contínua. Duvido até que conseguissem procriar se a carne de uns e de outros se encontrasse. Respiram ares diferentes e não faz sentido algum que certa retórica da esquerda os desafie a que experimentem a pobreza, a que tentem viver com o salário que destinaram para os indefesos. Provavelmente viveriam bem porque não se alimentam como nós. Nem dormem como nós. Talvez nem morram. A verdade é que pouco pensamento nós conseguimos produzir sobre eles. A desumanidade é um mistério.
II
Por que aceitamos que se fale, por exemplo, nas “gorduras do Estado”? O Estado não tem metabolismo. Tem excesso de despesas, muitas delas em mordomias e em disparates.Um Estado não “emagrece”: corta nos gastos, e a escolha para os cortes tem critérios, e os critérios não se aplicam ao acaso. Aquilo que se chama ideologia, a moldura mental com que um comum destino se interpreta e planeia, decide a escolha. E escolhe-se cortar naquilo que é empecilho ao projecto, no que se quer extinguir ou, pelo menos, fazer partir para onde não se torne visível. Com a metáfora sobre o corpo obeso dá-se a volta ao assunto, transformando-o em algo humanizado e censurável. Fica fora do alcance da razão — nos labirintos do imaginário, naquilo que culturalmente assimilámos a ponto de esquecer — a simpatia pela causa. Dentro de nós, a ideia do descuido, da glutonice, da preguiça, enfim, do Sul, facilmente coabita com a ideia de punição e de dieta rigorosa. Tomar medidas para emagrecer é justo e bom. Se implica sacrifícios, são sacrifícios de ginásio, desses que conferem certa estética ao suor. Só um bulímico se recusa a entender e a estimar um regime que assegura saúde e elegância a quem o siga. Alcança longe, a manha da metáfora.
(...)
Se hoje as pessoas continuam a marchar é porque, à força de repetição, os sapatos estão enfeitiçados. Não é de dança, mas de espasmo, o movimento. O grito que invectiva já não faz estremecer o seu destinatário. O seu destinatário olha para “aquilo”, chama-lhe “aquilo”, e vai à sua vida. Mostra um grande talento para apoucar. Nós que talento revelamos? O da fé? O da brava teimosia? Repetimos os nossos argumentos… “até à náusea”: assim acaba a frase que herdámos da retórica latina. Não é possível refazer a língua? É, sim.
III
(...)
Por que usam a palavra “austeridade”? Porque há nela uma certa ressonância de coisa justa, de atitude respeitável. Alexandre Herculano foi austero. Sóbrio, frugal, um tanto seco na expressão, honesto, incorruptível — isso mesmo. A austeridade é um estádio a que se chega num percurso moral muito esforçado. É um modo de vida, uma atitude pela qual alguém opta, numa escolha inteiramente pessoal, quando recusa render-se ao luxuoso e ao supérfluo. Classificar alguém de “austero” significa que lhe atribuímos qualidades pouco usuais no cidadão vulgar. Ouvimos a palavra e logo o nosso dicionário subconsciente nos assinala que é para respeitar, acatar e temer. Se há uma “austeridade” que castiga é porque andámos na dissipação. Pressupõe-se que nós baixemos a cabeça sob o pecado que a palavra implica.
Na verdade, não há “austeridade” aqui. Há alguém empurrado para a miséria. É um processo involuntário, imposto por uma força superior, neste sentido de que não pode desobedecer-se. E imposto, no sentido, também, da inocência. Estamos a pagar o quê, porquê? Em que momento é que prevaricámos? Foi a comprar mais um televisor, foi a escolhermos uma sala com lareira? Nós aprendemos, no devido tempo, que não podemos alegar ignorância da lei se a violámos, mas havia uma lei contra o conforto? Havia alguma lei que proibisse os filhos de viverem como tinham vivido os patrões dos seus pais? Devo dizer aqui que o consumismo me desperta uma viva repugnância, que admiro e sigo, porque quero, a vida “austera”. Mas, porque eu ando de transportes públicos, entenderei que a compra de um automóvel deve entregar o cidadão ao agiota? Estou a falar de pequeninas coisas, de minúsculas coisas que não chegam para lançar uma pessoa no inferno. O grande gasto, o gasto vil, onde se oculta?
Na verdade, não há “austeridade” aqui. Há alguém empurrado para a miséria. É um processo involuntário, imposto por uma força superior, neste sentido de que não pode desobedecer-se. E imposto, no sentido, também, da inocência. Estamos a pagar o quê, porquê? Em que momento é que prevaricámos? Foi a comprar mais um televisor, foi a escolhermos uma sala com lareira? Nós aprendemos, no devido tempo, que não podemos alegar ignorância da lei se a violámos, mas havia uma lei contra o conforto? Havia alguma lei que proibisse os filhos de viverem como tinham vivido os patrões dos seus pais? Devo dizer aqui que o consumismo me desperta uma viva repugnância, que admiro e sigo, porque quero, a vida “austera”. Mas, porque eu ando de transportes públicos, entenderei que a compra de um automóvel deve entregar o cidadão ao agiota? Estou a falar de pequeninas coisas, de minúsculas coisas que não chegam para lançar uma pessoa no inferno. O grande gasto, o gasto vil, onde se oculta?
Não, não nos pedem a “austeridade”. Eles exigem a pobreza e as suas consequências. Não, não fizemos mal. O que fizemos foi por fraqueza de desprevenidos ante a perversidade dos banqueiros. Não nos aliciavam com empréstimos? A bruxa má não estava a oferecer maçãs? Ficaremos agora deitados no caixão, narcolépticos, à espera de algum príncipe?
Vamos de história em história, adormentados.
Uma palavra envenenada estraga o mundo. Basta atentarmos em “democracia”, palavra vinda de tão longe, trabalhada, moldada, experimentada tanta vez. Parece ter sofrido uma anquilose, uma patologia da velhice que a transformou numa entidade rígida. E o conceito que lhe corresponde imobiliza, prende, como num propósito de teia. Diz-se: o eleitor votou em liberdade. E essa liberdade manietou-o. Mais não pode fazer do que esperar pelo próximo processo eleitoral. E censuramos os abstinentes que nos respondem que “não vale a pena” — quando os factos lhes dão toda a razão. Porque a democracia está disforme, ainda que insistamos em louvá-la.
Se olharmos sem a ilusão veremos quão irreconhecível se tornou. Veremos como finda o seu processo ali onde devia ter início. Melhor dizendo: finda o que, em rigor, é perene. A palavra “escrutínio” significa, para nós, simplesmente, a contagem dos votos. Mas escrutínio não é apenas isso: é vigilância. É observação continuada, é um exame de comportamentos. Por alguma razão os ingleses, experientes neste assunto, ainda aplicam a expressão under scrutiny aos governantes. O sustentáculo da democracia está na possibilidade e na probabilidade de cada cidadão vir a ser eleito e, uma vez eleito, prestar contas. Essa é a superioridade da República e a sua beleza. O voto é só um expediente técnico que o espaçamento temporal vicia.
Como se leva isso à prática não sei. Mas sei como se leva ao pensamento. E sei que o pensamento é o que faz levantar a cabeça. Estamos num tempo novo, rodeados por luz e escuridão para as quais não temos nem mapa nem farol. Temos modelos tão inspiradores como remotos. Certo é que a palavra é a obra do humano e a palavra não cessa de existir. Com palavras se fazem os fascismos, e Magnas Cartas e as Constituições. Cultivá-las, estudá-las, não nos salva talvez. Mas dignifica-nos. E se podemos aprender algo com o passado, antes de o perdermos completamente de vista, é que a dignidade se conquista e que a indignação a isso ajuda.
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Relembro: não deixem, por favor, de ler o texto na sua versão integral.
Relembro também: se quiserem saber das minhas compras nos saldos ou se aquele tal deputado do PSD é gay, então vão de encontro ao meu lado 'pipoca mais doce' e desçam, por favor, até aos dois posts seguintes.
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E, assim sendo, por agora fico-me por aqui.
Desejo-vos, meus Caros Leitores, uma bela quarta feira.
E que as sábias e belas palavras de Hélia Correia vos acompanhem.
http://lifestyle.publico.pt/artigo/329736_com-respeito-as-palavras#.UtwrQPC9yqc.facebook
ResponderEliminarum dia passam cá - http://filmspot.pt/artigo/benefits-street-o-programa-de-televisao-que-escandalizou-a-gra-bretanha-4320/
ResponderEliminarhttp://www.ionline.pt/artigos/portugal/manuel-alegre-apela-trasladacao-salgueiro-maia-panteao-nacional
ResponderEliminaré mais fácil passar 2 camelos pelo buraco de uma agulha, mas vale pela coragem de o pedir.vamos ver se outros pedem o mesmo.
e que tal um monitor destes lá no trabalho - https://www.youtube.com/watch?v=zL_HAmWQTgA
ResponderEliminareste tipo dá, dá ,dá, e mesmo assim ainda consegue ser o mais rico, que dure muitos anos - http://annualletter.gatesfoundation.org/?cid=bg_yt_ll0_012018/#section=home
ResponderEliminarou aqui 3 mitos- https://www.youtube.com/watch?v=UL4zoo8xijc
Que grande artigo! Inspirado! E excepcionalmente bem escrito. Há muito que não lia algo assim! Gostei. Bastante.
ResponderEliminarDá-nos que pensar. Naturalmente, a quem pensa. Os do governo não pensam. Têm trampa na cabeçorra. Uma chatice que se reflecte nas maldades que praticam sobre todos nós.
P.Rufino
Olá jeitinho,
ResponderEliminarExcelente!!!
Beijinhos Ana