Uma Leitora enviou-me um filme com um rapazito cego que toca piano de uma forma um pouco diferente e que canta com uma voz bonita. Tocante. Já vi algumas vezes, emocionada. Fui saber mais deste menino, do Lou.
Estive a ler o site onde se fala deste jovem a quem os pais tratam por Petit Prince e que sofre de uma 'rara', estive a ler os sintomas desta doença de que nunca tinha ouvido falar, estive a ler as Cartas a Lou escritas pelo pai ao longo de seis anos, desde os 5 até aos 11 anos do filho, de facto, mais um diário do que cartas.
Estive a ler o site onde se fala deste jovem a quem os pais tratam por Petit Prince e que sofre de uma 'rara', estive a ler os sintomas desta doença de que nunca tinha ouvido falar, estive a ler as Cartas a Lou escritas pelo pai ao longo de seis anos, desde os 5 até aos 11 anos do filho, de facto, mais um diário do que cartas.
Descobri que, entretanto, Luc Boland, Bèrlebus, o pai, tem um blogue, justamente chamado LE JOURNAL DE BÈRLEBUS, no qual prossegue os seus relatos, desabafos, queixas sobre o sistema de ensino que, segundo ele, não apoia tanto quanto deveria crianças diferentes.
Quem tem a sorte de ter crianças normais, sem problemas, frequentemente não se apercebe da sorte que é não ter que lutar por tudo o que tenha a ver com a vida de crianças problemáticas. Tudo pode ser um drama: a higiene, o equilíbrio, a locomoção, a aprendizagem, a sociabilização.
Quando eu era pequena, ao pé de nós pais morava um casal amigo dos meus pais que tinha um filho com uma ligeira deficiência mental e problemas de locomoção. Lembro-me que usava sempre sempre botas ortopédicas e umas talas metálicas nas pernas. Ele andava na escola comigo e era tratado como um menino normal. Mas não era. O seu atraso intelectual foi sendo mais notório à medida que crescia.
Depois, na adolescência ou quando adulto, era um problema para os pais. Fazia coisas complicadas, às vezes punha-se nu à varanda e, como, de aparência, era um homem quase normal, os vizinhos faziam queixa, deixando a mãe destroçada. E desarrumava tudo, e sujava-se. Os pais tinham pavor de morrer antes dele - o que seria dele sozinho? Mas afinal morreu cedo. Os pais tiveram um grande desgosto, filho é filho. Já só vejo a mãe (ficou viúva, entretanto) em circunstâncias tristes, geralmente em velórios. Vem sempre de braços abertos na minha direcção, vem dar-me um abraço muito apertado, 'olha a minha Jicas...' (era assim que ele me chamava e foi assim que fiquei para ela) e gosta sempre de recordar coisas do seu menino e gosta de recordar como eu brincava tão bem com ele. Diz sempre que sente muito a falta dele. Esqueceu os momentos difíceis, apenas recorda a ternura dele, a companhia. Afinal era seu filho e de um filho gosta-se da mesma maneira, seja normal, seja diferente.
Também trabalhei com um administrador, pessoa divertida, que me fazia rir com as suas histórias, piadas, irreverências e com quem muito aprendi a muitos níveis. Tinha sido governante (no tempo em que para governante ia gente do mais competente e conhecedora que havia no país), e depois disso tinha sido administrador de outra grande empresa. Tinha-se separado da mulher a quem amava de coração mas a quem era incapaz de ser fiel. Depois de ter praticado adultério vezes sem conta, cá e nas sete partidas do mundo, foi uma vez apanhado pela mulher numa noite em que ia a sair do prédio da amante da altura, uma directora da empresa da qual era então presidente, uma miúda (como ele dizia) com quase metade da idade dele. A mulher tinha recebido um telefonema anónimo contando o que se passava e dando-lhe as coordenadas. Ela tinha ido verificar. Quando o apanhou, disse-lhe secamente: 'se ainda me tens respeito, faz já hoje a tua mala e sai de casa'. Ele, envergonhado, mortalmente envergonhado e arrependido, assim fez. Foi viver com a amante. Quando o conheci vivia com ela mas já andava a pular a cerca. Estava-lhe na massa do sangue, como ele dizia com malícia e candura.
Aos poucos foi retirando a roupa de casa da amante, uma coisa de cada vez, para ela não dar por isso. Ele tinha uma moradia na Linha, casa de fim de semana, e era para lá que ia levando a roupa. De vez em quando inventava que tinha uma reunião fora ou uma viagem de serviço e ia pernoitar a essa casa. Até que se separou, pois o interesse já tinha esfriado e, sobretudo, nessa casa na Linha tinha uma vizinha italiana que o deixava doido.
No entanto, o tempo todo mantinha-se apaixonado pela mulher com quem se mantinha casado, falava todos os dias com ela e visitava-a sempre que podia. Para além da necessidade em estar com ela, havia outra razão: tinham uma filha com um problema. Dizia-me que a filha era linda, que ninguém diria - mas que tinha uma deficiência mental. Volta e meia a rapariga saía de casa, perdia-se, andavam todos doidos atrás dela. Lembro-me de um dia cheio de reuniões, ele telefonar para toda a gente, aflito, todos a telefonarem-se sem saberem dela, a polícia informada e, depois, aterrorizado, largar reunião e sair a correr. Tinha muito medo, pavor mesmo, do que lhe acontecesse perdida na rua pois era uma jovem muito bonita mas sem tino nenhum.
Durante o dia ficava na Cercisa, ia e vinha de autocarro, mas as noites eram problemáticas, dormia mal, levantava-se, fazia barulho. Ele tinha também um filho mas o filho já tinha a sua vida, já tinha a sua casa. Gostava muito da irmã e garantia sempre aos pais que tomaria conta dela, se viesse a ser caso disso. Mas o pai tinha também pavor do que seria o futuro dos filhos um dia que ele ou a mulher morressem, porque mesmo que o filho, de facto, ficasse a tomar conta da irmã, teria a sua vida muito sacrificada. Ele, sempre tão animado, ficava quase sem voz, ficava de lágrimas nos olhos, quando pensava nisso.
Reformou-se alguns anos depois e soube que a mulher teve um AVC e não viveu muito mais. Deixei de o ver mas contaram-me que, de repente, ele tão alto e garboso, parecia um velho, curvado, triste. Depois contaram-me que, passado pouco tempo, morreu ele. Não faço ideia do que aconteceu à filha. Talvez o irmão a tenha consigo. Uma angústia.
Mas nem todas os casos serão tão tristes, nem a gravidade é toda igual. Seja como for, o afecto ajuda todos a superar melhor as dificuldades, pais e filhos, e há sempre aspectos que enternecem o coração dos que se amam.
Não digo mais nada. Situações difíceis talvez convivam melhor com o respeito e com o silêncio do que com palavras que podem parecer palavras fáceis.
Fiquemos, pois, com o Lou e com os seus olhos tão lindos e que não lhe levam a cor do mundo.
*
Desejo-vos, meus Queridos Leitores, um belo sábado!
Da sensibilidade: Um poste que marca e, sobretudo, comove quem o lê.
ResponderEliminarUm abraço
Olá UJM,
ResponderEliminarTambém não conhecia o síndroma de Morsier. Conforme sugeriu fui pesquisar os sintomas da doença, li as "Cartas a Lou" e o Blogue do Pai de Lou e emocionei-me imenso com a luta que este pai trava para proporcionar ao seu filho 'literalmente excepcional' todo o bem estar e conforto. Vi os vídeos de Lou várias vezes e igualmente emocionada pela força desta criança, partilhei-os com as minhas amigas e familiares. Vou pesquisar a 'www.fondationlou.com" e divulgar também.
Obrigada UJM por este post diferente dos outros, mas do agrado de todos os seus Leitores, certamente.
Um beijinho e bom fim de semana.