No post a seguir a este, escrevo uma Carta Aberta ao Henrique Monteiro (do Expresso) ou a todos os que fazem opinião sem terem muito apegamento a números, deixando-se enrolar com excessiva facilidade.
Mas isso é mais abaixo. Aqui, agora, a conversa é outra.
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Se eu fosse escritora tenho quase a certeza que seria como o Herberto Helder. Não na qualidade, claro – tomara eu…. - mas no facto de ser bicho do mato, de não andar a fazer sessões de lançamento, a dar entrevistas e essas coisas que imagino que sejam chatas, enervantes e, até, a tender para o deprimente. Ter que ser bem educada e responder àquelas perguntinhas tantas vezes ridículas, ou repetitivas, ou pessoais, ou a pedirem explicações para o que se escreveu… deve ser uma chatice, mas uma senhora chatice, imagino eu.
Não me considero nem de longe nem de perto uma escritora mas, ainda assim, escrevo para aqui umas coisas. Mas comigo passa-se uma coisa: como não premedito o que escrevo, nem retoco, nem volto a ler, se me perguntassem pormenores sobre histórias escritas há algum tempo, já teria dificuldade em responder, é coisa que passou à história, aconteceu no momento em que escrevi, nada mais. Que maçada se me viessem pedir explicações para o que escrevi há meses...
E andar em feiras, a conversar com outros escritores, jornalistas, e todos a fazerem citações ou a falarem de personagens ou autores ou livros fantásticos e eu bloqueada, sem me lembrar de nada… É que até parece que é de propósito: no meio de gente que gosta de se armar ao pingarelho, parece que ainda fico mais burra, deve ser porque não tenho paciência, só me sinto bem ao pé de gente simples, não tenho mesmo pachorra nenhuma para aturar pessoas que se armam em esquisitas, afectadas, enjoadas, ou cheias de triquitriqui, ou sabichonas, ou então dá-me vontade de ser inconveniente ou de me armar em burra para as ver armadas em espertas e eu a gozar com a burrice delas. Enfim. A coisa não resulta. Já sei. Por isso, para me poupar, prefiro evitar.
Se publicasse algum livro (e quem sabe um dia, quando me reformar, desinibida e inconsciente, não desato a escrever?) com certeza que seria como o Herberto Helder ou como o Dalton Trevisan: toda a gente a ver se arranja alguma fotografia mais actual, toda a gente curiosa de saber como são eles na actualidade, desejando uma entrevistinha, e eles nada, moita, na sua vidinha saudável, longe da barafunda e do ruído.
Aquele número de andar a dar entrevistas por tudo o que é sítio, sessões de lançamento, palavrinhas de circunstância, ná… E aquela coisa de fazerem imagens dos escritores em cartão, em tamanho natural? Horrível. Uma pessoa vai a entrar numa livraria e apanha com o Miguel Sousa Tavares, ainda hoje entrei na Bertrand e senti-me observada, era ele, fui ao supermercado e lá estava ele, uma multiplicação de seres de cartão que nos cerca, um susto, parece que estão ali especados a olhar para a gente. Não sei se é por isso, se é por ser tão badalado, se é por abrir os livros, folhear e aquilo não me dizer nada, ainda não li um único livro dele. Não consigo, é mais forte que eu.
Corrijo: já li o Não te deixarei morrer, David Crockett e até não desgostei. Tirando isso, nunca fui capaz. Acho sempre que há melhor alternativa.
Adiante.
Ontem lá comprei alguns livros imprescindíveis, daqueles que tomara eu que fosse possível que me entrassem na veia, talvez diluídos em soro para correrem melhor.
Podia mostrar-vos os ditos de uma forma mais normal mas, como sabem, prefiro dar um toque mais pessoal às fotografias de livros. É o meu lado artístico: gosto de fazer instalações.
Assim, seguindo a sugestão da Leitora Antonieta, trouxe o Viagens e outras Viagens do Antonio Tabucchi, e claro, viagens requerem que se ande e, para se andar, é melhor que se ande calçado.
Quando eu era pequena, pequenina mesmo, quis ter uns sapatos encarnados. A minha mãe fez-me a vontade e tenho algumas fotografias com esses sapatinhos. Lembro-me muito bem deles. Achava-os uma coisa do outro mundo. As minhas amigas todas com sapatos castanhos, pretos ou azuis escuros e eu de sapatos encarnados.
Mas a pancada por sapatos encarnados não esmoreceu. Sempre os fui tendo ao longo da minha vida. Frequentemente eram de salto bem alto e uma parte deles de camurça. Mas também os tive de pele simples, outros de verniz, uma indecência. Lindos.
Agora, desde que há uns meses fui operada, ando um pouco afastada de saltos de agulha. Sinto-me mais confortável com sapatos de cunha ou de salto não muito alto e afiado. Provavelmente é psicológico. Um dia destes, volto aos meus sapatinhos elegantes que estão ali tão abandonados.
Adiante.
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Antonio Tabucchi, Viagens e outras Viagens - e os meus red shoes |
Cá está o Tabucchi ao pé dos meus actuais - e confortáveis! - sapatos encarnados.
Transcrevo a parte final da crónica dedicada ao Palácio Fronteira porque, justamente, no dia da sua morte,
falei aqui do dia em que estive lá com ele, numa suave tarde de sol dourado. Lançava-se, então, o livro da sua autoria com ilustrações da Paula Rego, que tinha também feito a pintura de um painel de azulejos para o banco chamado
Fogo. Tenho esse livro autografado por ambos, como poderão ver nesse meu outro texto.
Mas passo a palavra a Tabucchi:
O Palácio Fronteira é a casa do actual marquês de Mascarenhas, mas é também um museu aberto ao público. Aconselho uma visita com bom tempo, porque o jardim à italiana, elegantíssimo, merece um passeio. Para além disso, os azulejos dos bancos não são inferiores aos da fachada. Aliás, há um que pede uma paragem especial: como os azulejos se tinham deteriorado irremediavelmente, voltou a desenhá-los uma grande pintora contemporânea, Paula Rego, uma artista cuja força visionária não é inferior à dos antigos mestres. O seu banco, que se chama Fogo, tem figuras que 'ardem' e é impossível sentar-se nele.
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A Granta Portugal, I, 'Eu' - e a minha blusinha primaveril com um colarzinho a condizer |
Aquela roupa da cama em desalinho da capa deu-me vontade de despir o que trazia vestido e pousá-la ali, junto à minha blusa de tecido suave e florido. Tenho este lado meio fútil, meio vaporoso, que querem...?
Adiante e vamos à Granta.
Laura acordava sempre em sobressalto. Verificava o corpo como alguém que confere os bens depois de um terramoto. Nunca se arrependeu da decisão. Mas começa a sentir-se fatigada e não consegue perceber se a causa está na idade que uma parte dela tem ou naquela aturada vigilância para manter os bocados no lugar.
(Parte final do texto Intervencionados de Hélia Correia, um dos vários textos desta revista que é um luxo, um luxo. Custa 18€ mas vale bem o que custa. Uma vez mais, está de parabéns o Carlos Vaz Marques que a dirige. Apenas a folheei, espreitei, li bocados, mas nisto a minha intuição não se engana - e, convém não esquecer, a intuição não é uma coisa extra-sensorial, a intuição não é senão um short cut da inteligência - e, sobretudo, Granta é Granta, há que não esquecer os pergaminhos da marca)
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Servidões de Herberto Helder,
sobre mesa com tampo de pequenos azulejos das Louças de Sant'Ana,
mesa esta que era também da Tia Nena (mas oferecida ainda em vida dela),
e junto a uma pequena cadeira pintada adquirida em Porto Côvo |
Tenho agora aqui na minha mão o mais recente livro de Herberto Helder ainda a cheirar a tinta (a sério!), com uma bela capa, uma xilogravura de Ilda David.
Abro-o e leio:
André Breton - Des têtes! Mais tout le monde sait ce que c'est qu'une tête.
Alberto Giacometti - Moi, je ne sais pas.
(Penso: ora bem, cá está, mais um maluco, não há dúvida que este é mesmo cá dos meus e, pelos vistos, continua em grande forma.)
Depois um texto. Mergulhamos no mundo do poeta, naquele mundo que é só dele. Não devíamos, talvez, aqui estar. Dói de emoção. Acaba assim esse texto introdutório:
Compreendi então: cumprira-se aquilo que eu sempre desejara - uma vida subtil, unida e invisível que o fogo celular das imagens devorava. Era uma vida que absorvera o mundo e o abandonara depois, abandonara a sua realidade fragmentária. Era compacta e limpa. Gramatical.
Depois, noutra página, isto:
dos trabalhos do mundo corrompida
que servidões carrega a minha vida
E a seguir:
saio hoje ao mundo,
cordão de sangue à volta do pescoço,
e tão sôfrego e delicado e furioso,
de um lado para o outro para sempre num sufôco,
iminente para sempre
23.XI.2010: 80 anos
Gostava de continuar mas, claro, tenho que parar. Mas é um livro maravilhoso. As nossas mãos quase têm vontade de desaparecer para não tocar naquelas palavras ainda quentes, a cheirar a sangue fresco, doce.
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A leitora Antonieta disse-me:
há-de ver o marcador do livro do Nuno Lobo Antunes, tem tudo a ver consigo.
Tinha o livro, fui ver. Cá está o marcador aqui mesmo ao meu lado.
Tem razão. Tudo a ver comigo.
Uma árvore imensa. E até a terra parece pedregosa como a minha terra in heaven
Muito bonito.
Numa outra encarnação fui uma árvore. Noutra uma gaivota. Noutra uma etrusca.
(Obrigada, Antonieta) |
E aquela ali, de olhos fechados, encostada à árvore, podia ser eu... a precisar de ir dormir. Tão tarde que é. Ou melhor: tão cedo...
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Relembro que a seguir há a Carta Aberta ao Henrique Granadeiro.
E aproveito ainda para vos convidar a irem visitar o meu outro blogue, o
Ginjal e Lisboa, onde hoje, enlevada pelas palavras de Herberto Helder, falo de um certo Poeta Invisível. A música que acompanha é a de Cesária Verde, uma música muito bonita.
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Resta-me despedir-me por hoje desejando-vos, meus Caros Leitores, uma bela quarta feira.
Desejo que sejam felizes e que a poesia voe perto de vós.
Se possível que pouse nas vossas mãos.