quinta-feira, maio 30, 2013

Numa maravilhosa guest house no meio do nada, com internet móvel a pedal


Para ser mais levezinho, tive a peregrina ideia de trazer um netbook que não uso há algum tempo. Pois, ao ligá-lo, desatou a procurar actualizações de windows, de anti-vírus, de spywhere e o caneco e não faz mais nada. Em desespero já o desliguei;  vai a criatura e diz-me para não desligar enquanto não instalar as actualizações, e mais séculos nisto. Quando finalmente se desligou e o liguei de novo, pôs-se a instalar e a configurar as ditas actualizações e, quando pensava que me tinha visto livre das exigências da criatura, eis que se pôs à procura de mais actualizações. Um desespero, uma seca.

Como aqui no meio do nada a rede móvel é pior que a pedal, estou nisto há séculos, a pensar que mais vale é desistir, credo.

Adiante: não vi televisão (aqui não há; aqui é só passarinhos), não sei se o Passos Coelho ainda é primeiro ministro, se o Cavaco ainda não teve um tranglomango (não deve ser assim que se diz mas é a palavra que me está a vir à cabeça, cabeça que também já está a pedal) com as invectivas do Mário Soares, não sei de nada. 

Em contrapartida, estive com um ex-colega do Gaspar que me contou umas coisas com piada do bicho. Um dia destes pode ser que vos conte.

Também não me vou pôr aqui a tentar consultar outros sites senão esta gaita ainda me bloqueia outra vez.

Portanto, não sou capaz de me pronunciar sobre a actualidade, nem me arrisco a escrever alguma coisa maior pois não sei se vou ser capaz de publicar isto. De cada vez que carrego numa tecla para lhe dar uma instrução, a coisa ausenta-se para parte incerta, o ecrã fica branco, e umas vezes vem a si, outras não.

Mas digo-vos que estou num sítio lindo, que por aqui a natureza está maravilhosa, que os campos estão cor de rosa, que dei uma volta ao fim do dia, antes de irmos jantar, e vi uns cavalos a pastarem, vi uma represa de água na qual se reflectiam as árvores, tudo rural, perfeito, tranquilo. Como estou a trabalho, não trouxe máquina, apenas tirei fotografias com o telemóvel mas, se me ponho a transferi-las para aqui, nem amanhã.

A casa onde agora estou é muito bonita, o quarto é uma graça, enorme, tem lareira (apagada, claro), os móveis são grandes, as peças são artesanais e bonitas, a casa de banho é muito bonita, tudo muito bem. Tenho comido que é um disparate... mas a comida é dos céus...! Em contrapartida foi trabalho de manhã até há bocado e tudo em inglês. Enfim. Não me queixo - porque o ambiente é bom, as pessoas são simpáticas, o assunto é agradável e... amanhã há mais

E pronto, não consigo dizer mais nada e vou esperar que isto consiga ser publicado.

Uma boa sexta feira, meus Caros Leitores, e que a vida vos corra bem!

Os maravilhosos enigmas da matemática e o que eu gosto dela, essa magana que é tão tentadora e cheia de poesias. E, por falar em enigmas: vejam-se os nove mil milhões que o Estado Português tem depositados no Banco de Portugal. É normal?!?!? Não sei. O que sei é que não vale a pena perguntar ao Gaspar. Para ele, desempregados, reformados aflitos para fazerem face às despesas, casas a serem entregues por incapacidade de pagamento, empresas a fecharem, jovens a debandarem do país, etc, etc, são umas meras e insignificantes décimas, coisa que ele não valoriza. Pergunto aos entendidos: não seria caso de alguém apresentar uma queixa-crime contra ele? Ou não carece porque o que ele anda a fazer é crime público? Não sei. Pergunto. E ainda a Tecnoforma de Relvas e a ONG de Passos Coelho debaixo de investigação na União Europeia e os Gestores propostos pelo Governo para a Parque Escolar chumbados por falta de experiência, falta de perfil, falta de interesse no que quer que seja que não a gestão da própria carreira. Lindo. Esta é a nata da sociedade portuguesa nestes 'tempos do lixo', tal como Pacheco Pereira os descreve.


1. Os maravilhosos enigmas da matemática e a minha relação de amor com a dita


Li um post, escrito por José Ferreira Borges, um filósofo (acho eu que ele é filósofo; se não é, parece), que começava assim: Dividindo por zero a unidade, Bhaskara obtinha o imperceptível infinito




Encantei-me logo. A matemática tem mistérios muito atraentes, acho que é isso que tanto me faz gostar dela.

De facto, não é apenas a divisão de um por zero que dá infinito: qualquer número a dividir por zero dá infinito. Pensemos no enigma maravilhoso que é isto: um número ao ser dividido zero vezes transformar-se em infinito... Não é extraordinário? Era um número simples, banal, um 3, por exemplo e, de repente, só porque tentou repartir-se zero vezes, agigantou-se e transformou-se num imenso infinito. Mas o que significa dividir por zero? O enigma começa logo aí.

Se eu tiver seis laranjas e as dividir por 3 pessoas, cada pessoa fica com 2 laranjas. Se as dividir por seis pessoas, cada uma ganha 1. Se, pelo contrário, as dividir apenas por 1 pessoa, essa pessoa fica com as laranjas todas. Mas se as dividir por 0, eis que as laranjas se transformam em infinito. Talvez um imenso mar de laranjas, sem princípio nem fim.




Em matemática não há um único infinito: há o mais infinito e o menos infinito. Consegue alguém visualizar o que será isso? Um em expansão, qualquer coisa imensa, crescendo, crescendo sem parar, sem limites, para além do que materialmente imaginável. O outro, o menos infinito, a desaparecer, a regredir, quase nada, mas sem atingir esse inacessível nada.

Toda a matemática é assim. Tão depressa é uma coisa normal, própria para pessoas normais, como se transforma em matéria quase inatangível (... vagamente acessível mas só a poetas, a sonhadores, a loucos).




O texto acima referido acaba assim: O desejado instante copiara o infinito: surgira sem o dizer, durara sem se mostrar, partira sem ser notado.

Que maravilha.

Objectos sem limites, leis que regem comportamentos abstractos, movimentos invisíveis, instantes indizíveis.  A beleza em estado puro. 




Há quem tenha em relação à matemática uma aproximação estudiosa, seguindo a lógica, encadeando raciocínios na tentativa de demonstrar o que alguém estabeleceu (ou sonhou). Nunca foi essa a minha abordagem. Sou muito intuitiva, não gosto de seguir o raciocínio dos outros, gosto de percorrer os meus próprios caminhos. Perante tratados enormes, cheios de teorias, eu espreito em diagonal. Antes, tal como agora. Prefiro, antes, conhecer a vida de quem fez as descobertas. Gosto de perceber como pensavam, como viviam, os fracassos, as decepções. Gosto de perceber a utilidade prática das descobertas, a lógica intrínseca das coisas. E depois o assunto fica por minha conta, reinterpreto-o, deixo-me levar pela minha intuição. Mas tem que ser na hora, se houver motivo para isso.

Claro que, enquanto estudava, esta minha maneira de ser trouxe-me alguns amargos de boca. Quem estudava comigo, frequentemente passava-se, parecia que eu não estudava. Toda a gente a estudar, dias a fio fechados em casa a estudar, e eu a laurear, a namorar. Depois, nos intervalos, espreitava os calhamaços, tentava descortinar alguns enigmas mais obscuros. De véspera sentia-me aterrorizada, achava que não sabia nada, arrependia-me, jurava a mim mesma que, da próxima, ia estudar, marrar, fazer directas, essas coisas que eu nunca fiz. 

Quando recebia os testes, tinha muitas vezes a sensação de ser chinês de uma ponta a outra. Mas depois, recompunha-me, respirava fundo, e deixava-se imbuir pelo espírito do momento, entrava em fluxo, tal como quando estou aqui a escrever. As ideias a fluirem directamente da cabeça para a ponta dos dedos e eu, no meio, a assistir.

Quando saía da sala onde decorriam os testes, não era capaz de me lembrar com precisão do que tinha feito nem sabia se me tinha corrido bem ou mal.

Nem sempre me dei bem, claro. Nos cursos, mesmo no meu, há matérias que têm que ser memorizadas. Isso para mim é fatal. Nessas matérias, o que ficava, ficava, o que não ficava paciência. Já no liceu era a mesma coisa. Aliás tive a mesma média desde que entrei no liceu até que acabei a licenciatura. Nas matérias que requeriam estudo aturado, tive catorzes, se tinha algum quinze já era uma festa, tive mesmo um ou outro treze e, creio, um doze. Nas outras estava nas minhas sete quintas, tinha dezassetes, dezoitos, um ou outro dezanove, dois vintes.

Pouco me ficou, acho eu, porque, de facto, nem na altura, alguma coisa lá estava. O que está e sempre esteve é o gosto por apanhar as ideias no ar e ir atrás delas, tentar percebê-las, tentar reinventá-las, captar a essência das coisas, imaginas a beleza invisível das coisas.



Adiante.


2. Os enigmas da actual (des)governação. O que se passa é normal? Ou estamos a ser umas inofensivas (e, até, amorosas) cobaias?


Leio que Estado tem 5,5% do PIB disponíveis no banco central. Uma reserva de liquidez é uma almofada de segurança que chegaria para financiar o défice orçamental deste ano.




Claro que fico admirada com o volume de poupança numa altura em que o país ajoelha, rendido. Não sei se esta verba é normal, nem sei quanto era antes deste governo de predadores amorais ter chegado ao poder. Tenho que tentar saber. Mas vejo que Pedro Lains também está admirado.

Transcrevo: Quanto dinheiro tem o Estado português depositado no Banco de Portugal, na Parpública ou no Tesouro? Quantos fundos têm sido postos de lado por este Governo, pelo Ministro das Finanças? A comparação histórica é só uma: Salazar acumulou ouro durante anos, sendo muito criticado por isso por muitos economistas, alguns ainda vivos, embora no silêncio da censura. E embora nessa altura não fosse muito grave, pois a economia crescia e muito. Agora não se pode acumular ouro. Mas, e este Governo, tem ou não entesourado? Se sim, para quê? Poderão ser várias as razões, incluindo para gastar em eleições. Mas posso estar completamente enganado (...).

Assunto a seguir. Com muita sorte descobriremos a explicação para este mistério.


3. As décimas da recessão que o benfiquista Gaspar não valoriza. Décimas? A quem é que umas míseras décimas tiram o sono? ... sobretudo se nos abstrairmos que as décimas são milhares de pessoas desempregadas, empresas falidas, velhos sem dinheiro para a comida e para os medicamentos, crianças que vão para a escola cheias de fome. 




Ora, o facto de o Estado português ter no final de Abril nove mil milhões de euros depositados no Banco de Portugal é tanto mais estranho quando se conhecem as previsões da OCDE: recessão mais profunda, derrapagem no défice nominal e dívida acima de 130%. E no dia em que a Governadora do Banco de Portugal, Teodora Cardoso, alerta para a trajectória explosiva da dívida.

Mistérios.

Claro que o Gaspar, que é o que se sabe, desvaloriza as previsões da OCDE tal como desvaloriza os alertas de toda a gente. São décimas de diferença, diz ele, são décimas que ele diz que não valoriza. Razões tinha o outro para dizer que o Gaspar é um psicopata social. Para ele uma recessão mais grave do que o previsto são décimas - não são pessoas desempregadas, empresas falidas, toda a gente mais pobre.

Há uma dúvida que eu tenho: um sujeito que arruina um país, que destrói milhares de milhões de euros, que desgraça a vida de tanta gente, persistindo nisto apesar de estar bem visível o descalabro e apesar de estar avisado por toda a gente, que endivida o país de forma explosiva (e não é por ter feito obras, que essas ficam), não deveria ser objecto de um processo crime? Se alguém roubar dinheiro a outra pessoa não é julgado e, se for provado, não é acusado? Então este que nos rouba a todos, que destrói tudo, que o faz com dolo, com intenção, não deveria ser acusado, julgado?

Se a justiça não actua num caso destes, em que há um flagrante à vista de todos, então que raio de justiça é esta?



4. Os negócios com fundos comunitários da empresa do Relvas, a ONG do amigo Passos Coelho, debaixo de investigação. Amigos são para as ocasiões e as administrações e as comissões e as assessorias estão cheias de gente assim




Ficámos também a saber que União Europeia investiga negócios de Relvas e Passos. Empresa Tecnoforma e a ONG Centro Português para a Cooperação estão a ser investigadas pelo Gabinete da Luta Antifraude da União Europeia por má utilização de fundos comunitários.

Gente fina. Uma vergonha para o País estar a ser governado por um sujeito destes e que tinha por braço direito um Relvas que era o que se sabia.

Esta é a nata do PSD que ocupa como um vírus nefasto tudo onde toca.

Outra: Gestores propostos pelo Governo para a Parque Escolar foram chumbados, um por ter “um percurso profissional assente na rede de contactos pessoais” e outro por evidenciar preferência pela “autovalorização pessoal”.


Nata? eu disse nata? Qual nata: isto é a borra, uma borra infecta.


***

Fico-me por aqui. Esta quinta feira tenho que me levantar cedo. Vou estar dois dias fora em trabalho. A esta hora já devia estar a dormir para aguentar a viagem e as maratonas de reuniões, almoços e jantares que me esperam. Não sei se à noite consigo escrever alguma coisa. Logo vejo.

Não vou reler o texto porque me saíu muito longo e porque também já estou com sono. Relevem qualquer coisinha, ok?

***

Desejo-vos, meus caros leitores, um belo dia. 
Saúde, alegria e amor seria bom mas, não podendo ter de tudo com fartura que, ao menos, haja sorte e disponibilidade para ver o lado belo da vida.


quarta-feira, maio 29, 2013

A Granta nº 1 que me fez despir para a fotografia ficar a condizer, o Servidões de Herberto Helder de que não digo nada para não estragar, o Viagens e outras Viagens de Antonio Tabucchi e os meus sapatos encarnados. E ainda uma árvore ao lado da qual uma mulher fecha os olhos e sonha antes de ir dormir. Livros, poesia, palavras, tudo ao pé das coisas cá de casa - e os puristas da coisa que me perdoem por estas misturadas.


No post a seguir a este, escrevo uma Carta Aberta ao Henrique Monteiro (do Expresso) ou a todos os que fazem opinião sem terem muito apegamento a números, deixando-se enrolar com excessiva facilidade.

Mas isso é mais abaixo. Aqui, agora, a conversa é outra. 

*

Se eu fosse escritora tenho quase a certeza que seria como o Herberto Helder. Não na qualidade, claro – tomara eu…. - mas no facto de ser bicho do mato, de não andar a fazer sessões de lançamento, a dar entrevistas e essas coisas que imagino que sejam chatas, enervantes e, até, a tender para o deprimente. Ter que ser bem educada e responder àquelas perguntinhas tantas vezes ridículas, ou repetitivas, ou pessoais, ou a pedirem explicações para o que se escreveu… deve ser uma chatice, mas uma senhora chatice, imagino eu. 

Não me considero nem de longe nem de perto uma escritora mas, ainda assim, escrevo para aqui umas coisas. Mas comigo passa-se uma coisa: como não premedito o que escrevo, nem retoco, nem volto a ler, se me perguntassem pormenores sobre histórias escritas há algum tempo, já teria dificuldade em responder, é coisa que passou à história, aconteceu no momento em que escrevi, nada mais. Que maçada se me viessem pedir explicações para o que escrevi há meses...

E andar em feiras, a conversar com outros escritores, jornalistas, e todos a fazerem citações ou a falarem de personagens ou autores ou livros fantásticos e eu bloqueada, sem me lembrar de nada… É que até parece que é de propósito: no meio de gente que gosta de se armar ao pingarelho, parece que ainda fico mais burra, deve ser porque não tenho paciência, só me sinto bem ao pé de gente simples, não tenho mesmo pachorra nenhuma para aturar pessoas que se armam em esquisitas, afectadas, enjoadas, ou cheias de triquitriqui, ou sabichonas, ou então dá-me vontade de ser inconveniente ou de me armar em burra para as ver armadas em espertas e eu a gozar com a burrice delas. Enfim. A coisa não resulta. Já sei. Por isso, para me poupar, prefiro evitar.

Se publicasse algum livro (e quem sabe um dia, quando me reformar, desinibida e inconsciente, não desato a escrever?) com certeza que seria como o Herberto Helder ou como o Dalton Trevisan: toda a gente a ver se arranja alguma fotografia mais actual, toda a gente curiosa de saber como são eles na actualidade, desejando uma entrevistinha, e eles nada, moita, na sua vidinha saudável, longe da barafunda e do ruído.

Aquele número de andar a dar entrevistas por tudo o que é sítio, sessões de lançamento, palavrinhas de circunstância, ná… E aquela coisa de fazerem imagens dos escritores em cartão, em tamanho natural? Horrível. Uma pessoa vai a entrar numa livraria e apanha com o Miguel Sousa Tavares, ainda hoje entrei na Bertrand e senti-me observada, era ele, fui ao supermercado e lá estava ele, uma multiplicação de seres de cartão que nos cerca, um susto, parece que estão ali especados a olhar para a gente. Não sei se é por isso, se é por ser tão badalado, se é por abrir os livros, folhear e aquilo não me dizer nada, ainda não li um único livro dele. Não consigo, é mais forte que eu. 

Corrijo: já li o Não te deixarei morrer, David Crockett e até não desgostei. Tirando isso, nunca fui capaz. Acho sempre que há melhor alternativa.

Adiante.

Ontem lá comprei alguns livros imprescindíveis, daqueles que tomara eu que fosse possível que me entrassem na veia, talvez diluídos em soro para correrem melhor.

Podia mostrar-vos os ditos de uma forma mais normal mas, como sabem, prefiro dar um toque mais pessoal às fotografias de livros. É o meu lado artístico: gosto de fazer instalações.

Assim, seguindo a sugestão da Leitora Antonieta, trouxe o Viagens e outras Viagens do Antonio Tabucchi, e claro, viagens requerem que se ande e, para se andar, é melhor que se ande calçado.

Quando eu era pequena, pequenina mesmo, quis ter uns sapatos encarnados. A minha mãe fez-me a vontade e tenho algumas fotografias com esses sapatinhos. Lembro-me muito bem deles. Achava-os uma coisa do outro mundo. As minhas amigas todas com sapatos castanhos, pretos ou azuis escuros e eu de sapatos encarnados. 

Mas a pancada por sapatos encarnados não esmoreceu. Sempre os fui tendo ao longo da minha vida. Frequentemente eram de salto bem alto e uma parte deles de camurça. Mas também os tive de pele simples, outros de verniz, uma indecência. Lindos.

Agora, desde que há uns meses fui operada, ando um pouco afastada de saltos de agulha. Sinto-me mais confortável com sapatos de cunha ou de salto não muito alto e afiado. Provavelmente é psicológico. Um dia destes, volto aos meus sapatinhos elegantes que estão ali tão abandonados. 

Adiante.


Antonio Tabucchi, Viagens e outras Viagens - e os meus red shoes


Cá está o Tabucchi ao pé dos meus actuais - e confortáveis! - sapatos encarnados.

Transcrevo a parte final da crónica dedicada ao Palácio Fronteira porque, justamente, no dia da sua morte, falei aqui do dia em que estive lá com ele, numa suave tarde de sol dourado. Lançava-se, então, o livro da sua autoria com ilustrações da Paula Rego, que tinha também feito a pintura de um painel de azulejos para o banco chamado Fogo. Tenho esse livro autografado por ambos, como poderão ver nesse meu outro texto.

Mas passo a palavra a Tabucchi:

O Palácio Fronteira é a casa do actual marquês de Mascarenhas, mas é também um museu aberto ao público. Aconselho uma visita com bom tempo, porque o jardim à italiana, elegantíssimo, merece um passeio. Para além disso, os azulejos dos bancos não são inferiores aos da fachada. Aliás, há um que pede uma paragem especial: como os azulejos se tinham deteriorado irremediavelmente, voltou a desenhá-los uma grande pintora contemporânea, Paula Rego, uma artista cuja força visionária não é inferior à dos antigos mestres. O seu banco, que se chama Fogo, tem figuras que 'ardem' e é impossível sentar-se nele.



A Granta Portugal, I, 'Eu' - e a minha blusinha primaveril com um colarzinho a condizer


Aquela roupa da cama em desalinho da capa deu-me vontade de despir o que trazia vestido e pousá-la ali, junto à minha blusa de tecido suave e florido. Tenho este lado meio fútil, meio vaporoso, que querem...?

Adiante e vamos à Granta.

Laura acordava sempre em sobressalto. Verificava o corpo como alguém que confere os bens depois de um terramoto. Nunca se arrependeu da decisão. Mas começa a sentir-se fatigada e não consegue perceber se a causa está na idade que uma parte dela tem ou naquela aturada vigilância para manter os bocados no lugar.

(Parte final do texto Intervencionados de Hélia Correia, um dos vários textos desta revista que é um luxo, um luxo. Custa 18€ mas vale bem o que custa. Uma vez mais, está de parabéns o Carlos Vaz Marques que a dirige. Apenas a folheei, espreitei, li bocados, mas nisto a minha intuição não se engana - e, convém não esquecer, a intuição não é uma coisa extra-sensorial, a intuição não é senão um short cut da inteligência - e, sobretudo, Granta é Granta, há que não esquecer os pergaminhos da marca)



Servidões de Herberto Helder,
sobre mesa com tampo de pequenos azulejos das Louças de Sant'Ana,
 mesa esta que era também da Tia Nena (mas oferecida ainda em vida dela),
e junto a uma pequena cadeira pintada adquirida em Porto Côvo


Tenho agora aqui na minha mão o mais recente livro de Herberto Helder ainda a cheirar a tinta (a sério!), com uma bela capa, uma xilogravura de Ilda David. 

Abro-o e leio:

André Breton - Des têtes! Mais tout le monde sait ce que c'est qu'une tête.
Alberto Giacometti - Moi, je ne sais pas.


(Penso: ora bem, cá está, mais um maluco, não há dúvida que este é mesmo cá dos meus e, pelos vistos, continua em grande forma.)

Depois um texto. Mergulhamos no mundo do poeta, naquele mundo que é só dele. Não devíamos, talvez, aqui estar. Dói de emoção. Acaba assim esse texto introdutório:

Compreendi então: cumprira-se aquilo que eu sempre desejara - uma vida subtil, unida e invisível que o fogo celular das imagens devorava. Era uma vida que absorvera o mundo e o abandonara depois, abandonara a sua realidade fragmentária. Era compacta e limpa. Gramatical.

Depois, noutra página, isto:

dos trabalhos do mundo corrompida
que servidões carrega a minha vida

E a seguir:

                                                                                  saio hoje ao mundo,
                                                                                  cordão de sangue à volta do pescoço,
                                                                                  e tão sôfrego e delicado e furioso,
                                                                                  de um lado para o outro para sempre num sufôco,
                                                                                  iminente para sempre

                                                                                                                                   23.XI.2010: 80 anos


Gostava de continuar mas, claro, tenho que parar. Mas é um livro maravilhoso. As nossas mãos quase têm vontade de desaparecer para não tocar naquelas palavras ainda quentes, a cheirar a sangue fresco, doce.

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A leitora Antonieta disse-me:
há-de ver o marcador do livro do Nuno  Lobo Antunes, tem tudo a ver consigo.

Tinha o livro, fui ver. Cá está  o marcador aqui mesmo ao meu lado.
Tem razão. Tudo a ver comigo.
Uma árvore imensa. E até a terra parece pedregosa como a minha terra in heaven
Muito bonito.
Numa outra encarnação fui uma árvore. Noutra uma gaivota. Noutra uma etrusca.

(Obrigada, Antonieta)


E aquela ali, de olhos fechados, encostada à árvore, podia ser eu... a precisar de ir dormir. Tão tarde que é. Ou melhor: tão cedo...


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Relembro que a seguir há a Carta Aberta ao Henrique Granadeiro.

E aproveito ainda para vos convidar a irem visitar o meu outro blogue, o Ginjal e Lisboa, onde hoje, enlevada pelas palavras de Herberto Helder, falo de um certo Poeta Invisível. A música que acompanha é a de Cesária Verde, uma música muito bonita.

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Resta-me despedir-me por hoje desejando-vos, meus Caros Leitores, uma bela quarta feira. 
Desejo que sejam felizes e que a poesia voe perto de vós. 
Se possível que pouse nas vossas mãos.

terça-feira, maio 28, 2013

Isto poderia ser uma Carta Aberta ao Henrique Monteiro se fosse provável que ele a lesse. Como acho improvável, é uma Carta Aberta a todos os que ainda não perceberam o que o (des)governo de Passos Coelho está a fazer a Portugal. Pensam que não há alternativa à austeridade. HÁ! HÁ ALTERNATIVA!!!!


Palavra que me apetece desligar durante uns tempos. Já me falta a paciência para ver tanta falta de coerência, tanta demagogia, tanta impreparação e incompetência - mas ainda me falta mais para andar aqui a pregar contra isso. No entanto, também me custa fazer de conta que não vejo o que vejo. Por isso, mesmo que já ninguém leia estas minhas investidas, volto à carga.
  • Paul Krugman, prémio Nobel da Economia, escreve alto e bom som que alguém tem que pôr fim ao pesadelo português, a esta sistemática e devastadora destruição da economia. 
  • O BEI (Banco Europeu de Investimentos) acusa a Comissão Europeia de bloquear fundos destinados ao financiamento de pequenas e médias empresas portuguesas e.... pasme-se: a Comissão Europeia acusa o BEI da mesma coisa. Inadmissível. Uns empata-fxxxx que não fazem nem deixam fazer e que se entretêm a acusar-se uns aos outros. 
  • Lá dizia a Merkel (que também deve ser esquizofrénica) que Durão Barroso é um incompetente que está a destruir Portugal com tanta austeridade em vez de desbloquear verbas disponíveis para estimular a economia. 
  • Pois bem. E, enquanto isso, o que fazem os alunos marrões da treta que nos (des)governam? Batem-se para que essas verbas sejam desbloqueadas? Usam os argumentos do Prémio Nobel e de todos os economistas que explicam à saciedade que a rota a seguir é outra que não esta? Não. Não fazem nada. Nada!

E porque venho agora com isto? Não apenas porque me revolto por ver o meu País a ser destruído, como me parece que há ainda muita gente que não acredita que HÁ ALTERNATIVA!!!!

HÁ! HÁ ALTERNATIVA!!!!!



Henrique Monteiro anda muito equivocado nas análises que anda a fazer.
Devia receber algumas explicações  de matemática


Um dos que todos os dias escreve crónicas em que revela que ainda não percebeu o que está a acontecer é o Henrique Monteiro. Até me dói, tanto o desconhecimento e o enviesamento de raciocínio. Escreve ele que as pessoas acomodadas querem viver bem em vez de abdicarem dos seus direitos, que deviam perceber que o dinheiro não chega para tudo, que é preciso cortar. Diz ele que os acomodados se deveriam estar a preocupar é com os desfavorecidos e com os desempregados em vez de estarem a defender privilégios.

Tudo mal. Parece bem mas está mal. A conversa dele, tal como a dos que ainda defendem a estupidez que nos caíu em cima, é a conversa de quem não percebe de números e facilmente se deixa levar pela moral judaico-cristã, da culpa, da expiação da culpa, dos bons, dos maus.

Ora a questão é mais simples que isso: é aritmética. (Claro que também é moral. Mas fico-me pelo mais simples: pelas operações elementares).

Por exemplo, querer que não se despeçam funcionários públicos, querer que não se cortem os ordenados aos funcionários públicos não é querer manter privilégios: pelo contrário, é defender os desempregados e os mais desfavorecidos

Porquê?

Porque os funcionários públicos, enquanto trabalham, pagam impostos, têm dinheiro para comprar coisas. Se ficarem desempregados deixam de pagar impostos, passam a receber subsídio de desemprego (enquanto o receberem) o que desequilibra as contas públicas, deixam de poder fazer compras, haverá mais lojas e restaurantes a fechar, etc.

Ou seja, defender os mais desfavorecidos é, por exemplo, defender a existência de uma classe média sólida, com excedentes financeiros (excedentes que irão para bancos, que precisam de dinheiro para financiar a economia, ou para o consumo, que é necessário para também manter a economia de retalho)

Para pessoas que não têm facilidade com números, há coisas que não entram bem. Para essas, vou dar um exemplo.

Imaginem os meus amigos que têm uma horta de onde apanham batatas. Suponha que são duas pessoas na sua casa e que ambos trabalham na horta. Todos os dias têm 8 batatas, 4 para cada um. 

Suponha agora que um de vós parte uma perna e deixa de trabalhar na horta. O outro dificilmente dá conta de tudo e as batatas começam a escassear. Agora já são apenas 6 batatas, 3 para cada um.  Ao fim de algum tempo, cansado e fraco, o que trabalha começa a dar menos rendimento e já só há 4 batatas, 2 para cada um. O Henrique Monteiro ou o Passos Coelho, se fossem a vossa casa, diriam que há gente a mais para o número de batatas e que o que há a fazer é um dos dois deixar de comer batatas. 

Tempos depois, um de vós, porque já não come, e o outro porque é o único a trabalhar e já não tem muito para comer, já ficam os dois de cama e, ao fim de algum tempo, já só há 1 batata por dia. Até que já não há batata nenhuma e um já morreu e outro para lá caminha.

(Este exemplo é a fingir e bem longe da vossa casa... e façam o favor de bater três vezes na madeira. Bolas, devia alterar o exemplo, credo, que mau gosto o meu, foge...)

Mas enfim, relevem, por favor. Voltando ao estúpido exemplo: a opção foi a errada. A solução não era comerem menos batatas porque, quando se entra num caminho descendente, é difícil saber onde parar, porque a redução alimenta a redução. A solução seria arranjar quem fosse ajudar a produzir mais. Produzindo mais batatas, haveria o suficiente para todos e talvez até houvesse excedentes para vender.

Mas a opção errada foi a que se seguiu em Portugal - com a agravante de que, apesar de se constatar o descaminho que tudo está a levar, apesar de perceber o desastre, se persiste na rota.



Só espero que os burros não se venham queixar por estar a associá-los
aos incompetentes que estão a desgraçar Portugal


Um bando de burros achou que a solução para reduzir o défice e a dívida era secar a economia, retirar o dinheiro de circulação (reduzindo ordenados, aumentando impostos, etc). Resultado: aconteceu o oposto do que supostamente era pretendido.

A solução para Portugal passa pelo oposto disso, passa por resolver o problema estrutural, ou seja, a debilidade económica. O que há a fazer é injectar liquidez (esses mil milhões que estão travados em Bruxelas davam uma boa ajuda), investir, atrair investimento (estrangeiro, se necessário for), de preferência investimento produtivo, de preferência de elevado valor acrescentado, de preferência virado para a exportação, e, em simultâneo, desenvolver (de imediato) programas de desenvolvimento de proximidade como, por exemplo, programas de reabilitação urbana, e fazer creches, fazer lares, ou seja, investimento útil e espalhado pelo país para absorver mão de obra em todo o país e para mover a economia em todo o país. E apostar com muita força no ensino, na investigação, na formação profissional. E apostar com muita força no turismo, não apenas no turismo apoiado na geografia mas também na história e na cultura, em reabilitação de monumentos, de acessos a monumentos, na dinamização cultural envolvente. E fazer tudo isto de forma articulada. E fazer já!

E deixar de atirar com pessoas para o desemprego!!!!!

E, no Governo, deixarem de contratar assessores, adjuntos, consultores, gabinetes de advogados. E acabarem com tudo o que seja redundante (institutos, fundações, etc): tudo aquilo que diziam que iam fazer e não foram capazes. Mas, até isso é relativamente secundário. O importante é mesmo o que disse acima: pôr a economia a mexer. O essencial é retirar pessoas do desemprego (não apenas por razões humanas, mas também porque isso causa um buraco tremendo nas contas): pô-las a trabalhar pois não apenas pagam impostos como põem a economia a funcionar.

Ou seja, Caro Henrique Monteiro e Caros Todos que não atinam com números: onde há que mexer é na parcela de cima, é fazer crescer o 'bolo' a repartir e não na parcela subtractiva pois, mexendo nessa, acabar-se-á também por diminuir a parcela de cima e o resultado será pior - e imparavelmente pior.

Será que me fiz entender? Para mim, que sou dos números, isto é simples. Mas, para quem é das letras e avesso a números, se calhar é difícil.

E calo-me já.

Daqui a nada já volto.


Acho que este móvel não é um pechiché. Estava no quarto dos meus avós mas tinha função de pequena estante, não de toucador.


No post abaixo festejo o Prémio Camões para Mia Couto. Mas, agora, bem mandada como sou, aqui estou a dar resposta a uma pergunta.


Perguntou-me a Leitora Antonieta se não herdei nenhum pechiché. Não sei bem, creio que o móvel que escolhi do quarto dos meus avós e que mostro abaixo não será um pechiché



Será um pequeno pechiché? Creio que não mas não sei.
Estava no quarto dos meus avós e tinha livros nas prateleiras de lado e molduras com fotografias no interior, interior esse que tem portinha de vidro, espelho atrás e prateleira de vidro a meio.
Sempre gostei imenso deste pequeno móvel.
O banquinho com forro de veludo também veio de lá.
O veludo ainda está impecável mas está a precisar de arranjo pois, como se vê, o estofo está descaído.

Agora está no 'estúdio' de que ontem falei e, por isso, os bibelots desandaram quase todos para dentro da estante/vitrine para evitar (mais) desastres



Lembro-me que quer estes meus avós, quer a minha outra avó, que era viúva desde nova, quer os meus pais antes também (agora já não têm, têm uma cómoda muito grande) tinham móveis muito bonitos a que chamavam toucadores, uns móveis que tinham como que três partes. A do meio tenho ideia que era um pouco mais baixa, não sei bem, e havia gavetinhas, e o móvel  tinha três espelhos, o do meio era fixo mas os dos lados eram móveis e eu gostava que a minha mãe se sentasse no banquinho e eu penteava-a, fazia-lhe mises e depois orientava os espelhos para que ela se visse de lado e de costas. Também penteava a minha prima mais velha, fazia-lhe penteados elaborados e ela adorava (quando eu era pequena queria ser cabeleireira, acho que já contei; agora limito-me a cortar o cabelo a alguns membros da família, e a mim também ). 

Creio que é aos toucadores que se chamava pechichés, não é?

Não sei o que aconteceu a esses móveis. Eram grandes, eu não tinha onde os colocar, com muita pena tive que abdicar deles. Tenho dúvidas que os meus primos os quisessem pois nenhum deles acha graça a móveis antigos. Aliás, nenhum deles liga muito a coisas de decoração, acham graça a eu ter querido ficar com tudo o que é tralha. Mas depois gostam de ver as coisas integradas na minha casa, nem reconhecem as coisas. Um dia destes perguntei à minha prima se não reconhecia o rádio. Olhou como se estivesse a olhar para um meteorito caído sabe-se lá de onde. Perguntei-lhe 'Mas então não te lembras do rádio grande do avô...?'. Lembrou-se, 'Ah, pois é. Já nem me lembrava de tal coisa', sorriu e seguiu com a conversa, sem emoção. É natural: é médica, mal estaria se fosse de emoção fácil, estava sempre num pranto.

Aquele movelzinho ali em cima também estava mais escuro, mais baço. Foi todo raspado e levado à sua cor original. Depois foi tratado com cera virgem. Está macio como seda.

Quem tratou destes móveis foi um senhor que trabalha numa aldeia perto da nossa casa. Inspirei-me neste homem quando escrevi uma história (a história de Ana que afinal era Eva) com um marceneiro a que dei o nome de Tomás. Este, de verdade, também é alto, magro, muito digno, um senhor. Era carpinteiro e há pouco tempo fez um curso de restauro na Câmara. E, com arte, carinho e vagar, agora recupera móveis numa ínfima oficina, com instrumentos ancestrais. Podem imaginar o que aquilo me encanta. Se eu pudesse, tinha sempre móveis a arranjar só para ver como ele passa as mãos pela madeira, como estuda o veio, como fala dos cuidados a ter, para ver as misturas que ele faz, os frascos de cera.

A última vez que lá fomos, estava a restaurar um piano antigo (de umas pessoas de Lisboa que têm aqui uma casa - dizia ele, com ar grave, como se o facto de serem de Lisboa introduzisse uma responsabilidade acrescida ao trabalho), e o piano estava meio desmanchado e ele, pessoa sensível, contou que andava até enervado, a dormir mal, que era trabalho de grande complexidade e que ali não tem as melhores condições para trabalhos tão exigentes. Quase me ofereci para ficar ali, de ajudante.

O cuidado com que ele raspou a madeira no interior dos meus móveis para descobrir a cor original, a forma como lixou com muito cuidado para não ferir o veio, a perícia com que efectuou alguns enxertos que foram necessários nos sítios em que a madeira já estava fraca e que o obrigaram a vários ensaios para arranjar madeira com veio e cor compatível - eu bebia, maravilhada, a sua voz grave, séria, competente (escuso de vos dizer como o meu marido ficava impaciente, não tem paciência para conversas que envolvam muitos pormenores, punha-se a fazer-me sinais ópticos para eu me vir embora, e avançava para a porta, para ver se eu tinha medo que ele se fosse embora e me deixasse apeada... Debalde).

E, por saber como estes móveis - que já têm tantos anos, tantas histórias, e que foram usados por pessoas que me foram tão queridas, e que, mesmo agora, têm sido tratados com tantos cuidados - olho para eles com muito carinho.

Neste pequeno móvel tinha um ferro de engomar de uma das minhas avós, daqueles que levavam carvão lá dentro. Tinha também um pequenino, de ferro, muito pesado, dos que se punham a aquecer em cima das brasas. Mas isso para os pimentinhas era um desafio e estávamos sempre com medo que se magoassem. E tinha uns pequenos castiçais que, mal dava por eles, já andavam misturados com os brinquedos. E havia umas peças de vidro que eu estava sempre a ver a hora em que iam partir tudo. Agora está tudo encafuado no antigo guarda-fatos. Daqui por uns anitos poderei voltar a pôr as coisas onde ficam melhor. O mais novo já está com nove meses. Daqui por uns três anos já deve ser atilado. Terá então quase quatro anos, a irmã terá quase seis, o ex-bebé terá cinco e o primo mais velho terá quase oito. Isto se não nascer, entretanto, mais algum - coisa de que não estou certa.


*

Coisas
sombras de vida
pousadas nos móveis
ocupando paredes
guardadas
nas gavetas do tempo
coisas
memórias tácteis
feitas nossas
nós mesmo
pedaços de naturezas mortas
vivas
em nós



[Poema de Joaquim Castilho - a quem muito agradeço - num comentário a um post mais abaixo]


*****

PS: Se descerem um pouco mais, até ao post seguinte, poderão juntar-se à festa: Mia Couto é o Prémio Camões 2013.

Hoje vinha para falar do Servidões do Herberto Helder, e da Granta, nº1, e até tirei uma fotografia ao livro junto à minha blusinha primaveril e à revista junto aos meus sapatinhos encarnados (os que me conhecem já sabem que devem dar-me algum desconto: não sou lá muito boa da cabeça). Mas isto do Prémio Camões alterou-me os planos. Fica para amanhã (isto se não houver outro hapenning, que estes dias andam recheados que nem ovos).

Mas gostava de vos convidar ainda a virem comigo até ao meu Ginjal e Lisboa, a love affair. Hoje, por lá, é também dia de Mia Couto, dia grande, dia de festejar o prémio dado a este escritor de sorriso suave que reinventa - como quem brinca - a língua de Camões. A música que se lhe segue é, naturalmente, música de Moçambique.


*****

Fico-me por aqui. 
Tenham, meus Caros Leitores, um dia muito feliz. Eu hoje também estou muito feliz. 
Os prémios este ano, todos eles, enchem-me de alegria. 
Este ano toda a gente anda a fazer boas escolhas (e agora até me vieram à cabeça as escolhas da Igreja, que também estão a ser escolhas felizes - eu sei que uma coisa não tem nada a ver com a outra mas ocorreu-me. Tomara que houvesse agora eleições legislativas; quem sabe não ia acontecer uma feliz surpresa?)



segunda-feira, maio 27, 2013

Mia Couto vence o Prémio Camões 2013 - um prémio para a reinvenção da língua portuguesa. A mestiçagem e a poesia da língua de Camões em festa! Grande prémio para o abensonhador de estórias!



Mia Couto, quase a fazer 58 anos, moçambicano, biólogo e escritor
- e giro todos os dias!






Aurorava. O sol dava as cinco. As sombras, neblinubladas, iam espertando na ensonação geral. No topo das árvores, frutificavam os pássaros. Toda madrugada confirma: nada, neste mundo, acontece num súbito. A claridade já muito espontava, como lagarta luzinhenta roendo o miolo da escuridão. As criaturas se vão recortando sob o fundo da inexistência. Neste tempo uterino o mundo uterino. O céu se vai azulando, permeolhável. Abril: sim, deve ser demasiado abril. Agora, que a aurora já entrou neste escrito, entremos nós no assunto.




Toda a estória se quer fingir verdade. Mas a palavra é um fumo, leve de mais para se prender na vigente realidade. Toda a verdade aspira ser estória. Os factos sonham ser palavra, perfumes fugindo do mundo. Se verá neste caso que só na mentira do encantamento a verdade se casa à estória. O que aqui vou relatar se passou em terra sossegada, dessa que recebe mais domingos que dias de semana.




Não sou homem de igreja. Não creio e isso me dá uma tristeza. Porque, afinal, tenho em mim a religiosidade exequível a qualquer crente. Sou religioso sem religião. Sofro, afinal, a doença da poesia: sonho lugares em que nunca estive, acredito só no que não se pode provar. E, mesmo se eu hoje rezasse, não saberia o que pedir a Deus. Ou não se dará o caso de Deus ter perdido fé nos homens? Enfim, meu gosto de visitar as igrejas vem apenas da tranquilidade desses lugarinhos côncavos, cheios de sombras sossegadas. Lá eu sei respirar. Fora fica o mundo e suas desacudidas misérias.




*

Os textos foram escolhidos ao acaso e são o início de três 'estórias abensonhadas', a saber 'O poente da bandeira', ' O cachimbo de Felizbento' e 'A velha engolida pela pedra' - um dos muitos livros abensonhados de Mia Couto.

As imagens são pinturas de Miguel Barceló, pintor espanhol que muito tem pintado África.

Referências anteriores no UJM ao novo Prémio Camões podem ser vistas aqui.

*

(Ainda cá volto)

Herança de família, dizem as revistas de decoração. Objectos do coração, digo eu. Sejam bem vindos a minha casa, in heaven: mostro-vos algumas peças que nasceram antes de mim e que, espero eu, viverão para além de mim


Depois de um fim de semana tranquilo, a respirar os ares do campo, no meio de flores e frutos, contemplando árvores e longas paisagens, não tenho vontade nenhuma de voltar à dura realidade.

Claro que, dando uma volta pela net, vejo coisas de bradar aos céus, nomeadamente aquelas coisas que tanto abalam a minha estabilidade emocional, que me revoltam. Aliás até já escrevi sobre isso - mas apaguei tudo. 

Deixo para amanhã a volta aos tristes tempos que nos envolvem. Hoje, se me permitem, vou deixar-me estar entre aquilo de que tanto gosto. 

Como ontem falei nas coisas que tenho comigo e que guardam memórias que me são queridas, este domingo fotografei algumas para partilhar convosco. Não garanto que nunca antes aqui tenha mostrado alguns destes objectos. Se isso aconteceu, desculpem-me.

Já aqui uma vez escrevi que os átomos são eternos e, por isso, tenho a ideia (ideia talvez um pouco peregrina), de que talvez uma parte dos seres que foram especiais na minha vida ainda ainda habite nos objectos em que, em tempos, tanto tocaram. Ou, se isso não acontecer, que é o mais provável, pelo menos gosto de pensar que eles ficariam contentes se soubessem que os seus objectos continuam a ser estimados.



Máquina de costura e ex-guarda fatos de uma Tia do meu marido


Este era o guarda fatos da Tia Nena. 

A Tia Nena era solteira, era tia do meu marido, a mais velha de quatro irmãos. Tinha um gosto apurado, clássico, muito exigente a nível de comportamentos. Os mais novos da família brincavam com ela, tentavam chocá-la, mas ela já estava habituada, não afinava, sorria condescendente - mas não abrandava na exigência. E era muito generosa. Gostava de oferecer pequenos objectos: umas vezes chegava com um embrulhinho feito em casa e eram umas colherzinhas de prata, outras vezes era uma caixinha especial que trazia protegida com um papelinho lá de casa. Tinha muito gosto na sua casa. Era uma casa muito clássica, numa das avenidas mais conhecidas de Lisboa, no último andar, com uma vista fantástica sobre a cidade. Quando morreu tive muita pena de ver como uma vida inteira a rodear-se de objectos escolhidos com tanto cuidado se torna, num instante, numa casa que os sobrinhos devem desfazer, distribuir entre si (como ela queria) e, às tantas, os sobrinhos têm mais que fazer, e já ninguém tem paciência para passar vários fins de semana a abrir gavetas, armários, arcas, e sem saberem onde vão guardar aquilo, e um não quer, outro também não, e são sacos e mais sacos, e mais sacos, e já querem é dar, oferecer, já querem é que aquilo chegue ao fim.

Abríamos as gavetas da cómoda e eram aquelas camisas de dormir tão bonitas, de rendas, bordadas, e um espartilho e, vá lá..., aparecia um motivo para fazer graçolas e todos se riam, e depois eram lençóis e lençóis, uns bordados, outros de renda, lindos, mas a maior parte eram estreitos, quem é que precisa de lençóis estreitos cheios de bordados?, e a ninguém servem aquelas camisinhas e combinações, ela era baixinha, só se for para meninas pequenas mas em que circunstâncias é que miúdas pequenas iam agora querer vestir aquelas roupas delicadas e bordadas?, e depois eram carteiras e mais carteiras, e nunca mais acabava...

Contra a vontade do meu marido, que é impaciente por natureza e que, ainda por cima, sendo o que era, não queria nada, fiquei com algumas coisas. Era como se, desta forma, estivesse a mostrar-lhe a ela que valeu a pena ter cuidado e tanto carinho pelas suas coisas pois, assim, estimadas, elas chegaram até nós e assim, entre nós, vão continuar.

Aquele, na fotografia ali em cima, era o guarda-fatos do seu quarto. Mas não era assim. Estava preto, tinha sido tingido com vieux-chêne. E tinha uma porta de madeira com espelho por dentro. Mandei-o limpar, eliminar o vieux-chêne e recuperar a sua cor original. Ao espelho, com a madeira da porta por trás, mandei pôr uma moldura em talha dourada e está agora sobre o sofá da sala. E, no lugar da porta, mandei pôr um vidro, transformando-o numa vitrine. E mandei pôr duas prateleiras de madeira.

Agora está cheio de coisas lá dentro, mais do que devia. Tudo a que os pimentinhas deitem a mão pondo em risco a integridade, são encafuadas lá dentro. 

Ao lado do guarda-fatos, agora vitrine, está a máquina de costura também da Tia Nena. Por cima está um retrato da minha filha pintado por mim.



Mesa que era dos meus avós


Esta mesa alta, na fotografia acima, mesa que quase parece um banco, era dos meus avós. Tenho esta alta e mais duas pequenas, iguais. Esta mesa estava num recanto protegido para que ninguém a fizesse cair pois tinha em cima uma floreira que tinha lá dentro um feto enorme. A minha avó borrifava o feto e mantinha a terra sempre molhada. O feto era imenso, não parava de crescer, as guias imensas, verdes, rendilhadas. A minha avó tinha muito orgulho neste feto. Era o feto e a avenca que estava no parapeito. Quase não podia entrar a luz por aquela janela. O meu avô às vezes queixava-se que quase não via quando queria ler no seu cadeirão, mas a minha avó era irredutível, a avenca não gosta de muita luz.



Mesa de apoio de sofá (ex-mesa de cabeceira da Tia Nena) e cadeirão do meu avô


O cadeirão do meu avô é o que se vê na fotografia acima, de madeira, ergonómico, confortável. Nem sei quantos anos terá. Sempre me lembro de o ver e, do que sei, já antes de mim ele existia. Está agora aqui neste espaço a que chamamos estúdio, na zona que é misto de sala e de quarto onde os jovens se instalam quando cá ficam. 

Em primeiro plano na fotografia, está esta pequena cómoda que era mesa de cabeceira do quarto da Tia Nena. Foi posta também na sua cor natural e agora está ao lado do sofá, como mesinha de apoio.



Lavatório da minha bisavó


A minha outra avó tinha no jardim à porta de casa um lavatório antigo. Já não tinha a bacia nem o jarro, apenas a armação. Usava-o como um suporte onde punha um vaso com flores. Sempre o achei muito bonito e dizia-lhe que era mal empregado, assim, no jardim, com um vaso. A minha avó, mulher de grande sentido prático, dizia que, como lavatório, já não tinha serventia e que ali no jardim era onde estorvava menos. Ela contava que já tinha sido da mãe dela e, por isso, ainda mais me encantava. 

Quando arranjei o meu quarto in heaven, pedi-lho logo. Foi pintado e mandei fazer um espelho com uma moldurinha simples. Depois vi-me aflita para arranjar um lavatório de louça e um jarro que servissem ali. Até que descobri os que aqui estão agora e que têm umas flores pintadas muito no tom das cores das cortinas e da colcha. As toalhas, de linho bordado com rendas, foram feitas pela minha mãe. A minha avó ficou toda contente quando o viu, reabilitado, acarinhado, aqui no meu quarto.

Estes são apenas alguns dos objectos que têm mais anos que eu e que, depois de terem sido usados por pessoas que me foram queridos, agora continuam a sua vida junto a mim.


**

Espero que isto, para vocês, não tinha sido uma grande seca. Estas coisas são especiais para nós mas, para quem não tenha ligação afectiva, são apenas objectos...

Resta-me desejar-vos, meus Caros Leitores, uma bela semana a começar já por esta segunda feira.

domingo, maio 26, 2013

E, por falar dos figos lampos que aí vêm, as nêsperas doces e o meu avô... E, por falar numa bela flor que renasceu num lugar imprevisto, a vida que é imprevista e breve (breve ou eterna?). E, por falar em doideiras, a antologia do Henri Michaux. E, por falar em palhaços, ...


E, por falar em figos lampos... Rebentam com uma vitalidade maravilhosa, uns já estão grandinhos, rijos, um compacto de vida verde, luzindo por entre as folhas que quase ficam douradas em contra-luz.




Não tarda estarão maduros, a pele mais clara, brandinhos, um pingo de mel escorrendo, doces, carnudos. Irei apanhá-los e, sem resistir, comê-los logo, tentadores.

As nespereiras estão carregadas de nêsperas doces, carnudas. Vou à árvore e como-as directamente. Algumas começam a estar debicadas. Os pássaros também não lhes resistem. 

O meu avô tinha no quintal uma nespereira enorme. Ele subia por ela para ir buscá-las lá muito em cima e eu ficava orgulhosa por ter um avô que fazia arriscadas acrobacias para ir buscar nêsperas para a neta. Por vezes ele tinha que recorrer a um pau muito grande que tinha um gancho metálico na ponta e com o qual fazia vergar os ramos. Quando estava lá em cima, empoleirado na nespereira, pedia-me o pau e eu passava-lho. Depois dava-mo de volta. Sentia-me a sua ajudante e isso fazia sentir-me importante. Muitas vezes eu tentava manejar aquele gancho telescópico mas não tinha força para suster os ramos.

Esse pau está agora aqui in heaven. É com ele que apanhamos a fruta que está mais alta. Pode parecer estranho que eu tenha querido ficar com ele mas não é. Quis ficar com os objectos que os meus avós mais usavam. Também tenho o cadeirão onde o meu avô se sentava a ler ou a ouvir rádio ou a ver televisão. E também a enxada e a pá que o meu avô usava para tratar a sua horta. À volta da sua casa havia uma horta e um jardim. Ele gostava mais da horta. A minha avó recriminava-o por isso mas ele não ligava. Por isso, era ela que acabava por ter que se ocupar do jardim. Na horta, ele tinha cebolas, alhos, tomates, feijão verde, favas, couves, batatas. E eu andava atrás dele, perguntando tudo, querendo perceber cada pormenor, querendo ajudar. 

Ele trabalhava numa empresa e, no tempo livre, ia à pesca e tratava da horta. Depois, quando se reformou, esses passaram a ser as duas actividades principais. Sempre feliz, sempre tranquilo. 




Não sei como se chama esta flor. Há muitos anos o meu pai trouxe umas sementes e plantou num canteiro à porta de casa. Cresceram umas flores grandes. Aos poucos essas flores foram desaparecendo mas, tempos depois, muito longe desse sítio, renasceram e agora, ano após ano, voltam a nascer, vigorosas, dentro dum canteiro onde um cedro está a ver se vinga.

As pétalas são largas, macias, formam umas campânulas em bordeaux profundo, e vão abrindo ao longo do pé até que fica a haste inteira cheia de flores. Mas são efémeras. Quando ficam assim, no apogeu, já sei que é sinal que o fim está para breve.

Mas já sei também que, ali ou noutro lugar, renascerão para o ano que vem. Ou se não nesse, noutro qualquer.

**



Estou a ler a correspondência entre o António Ramos Rosa e o Jorge de Sena. Gente de bem. Gente do bem. Dois seres delicados na sua amizade, muito sérios, muito genuínos. Uns cavalheiros nas letras e na vida.

E comecei a ler mais um livro de doideiras, a Antologia de Henri Michaux, numa tradução de Margarida Vale de Gato para a Relógio d'Água. 

Gosto, claro. Mostro-vos a seguir do que estou a falar quando falo de doideiras. 

Ultimamente é disto que mais me interessa. Ou isto ou cartas ou memórias. Historiazinhas previsíveis, personagens e mais personagens com pouca textura, diálogos postiços ou armados, isso pouco me diz, falta-me paciência. Mas dêem-me uma coisa maluca, conversas inesperadas, conclusões que não são conclusões, observações doidas - e, aí, já eu fico agarrada.

Vejam.


A simplicidade

O que sobretudo tem faltado à minha vida até agora é a simplicidade. Começo a mudar a pouco e pouco.

Por exemplo, actualmente saio sempre de casa com a minha cama e, quando uma mulher me apetece, agarro nela e deito-me com ela imediatamente.

Se tem as orelhas ou o nariz grandes e feios, tiro-lhos juntamente com as roupas e meto-os debaixo da cama, para ela os poder recuperar à saída; só conservo o que me apetece.

Se a sua roupa interior está a precisar de ser mudada, mudo-a imediatamente. Será a minha prenda. No entanto, se vejo uma outra mulher mais apetecível a passar, peço desculpas à primeira e suprimo-a imediatamente.

As pessoas que me conhecem garantem que eu não sou capaz de fazer o que estou a dizer, que não tenho temperamento para isso. Eu também achava que não, mas isso era porque eu não fazia tudo como me apetecia.

Agora, tenho sempre belas tardes. (De manhã, trabalho)

¨¨¨¨¨

E, por falar num certo Palhaço:



...
PALHAÇO, arrasando à gargalhada, pelo grotesco, por uma barrigada de riso, o sentido que, contra todas as evidências, atribuíra à minha importância.
Hei-de afundar-me.
Sem rede no infinito-espírito sub-jacente aberto a todos, eu próprio aberto a um novo orvalho inacreditável
à força de ser nulo
e raso...
e risível....

**

Os textos em itálico, são contos (contos? apontamentos? 'cenas'?) de Henri Michaux.

**

E, por hoje, é isto.

Tenham, meus Caros Leitores, um belo domingo!



sábado, maio 25, 2013

Lydia Davis, Man Booker International Prize 2013: o reconhecimento da diferença, do desconcertante, da não linearidade da escrita



Lydia Davis quando era mais jovem e tinha uns olhos claros muito invasivos


Lydia Davis nasceu nos Estados Unidos em 1947. Está quase a fazer 66 anos e vive em Nova Iorque. É tradutora, ensaista e, sobretudo, novelista. Isto de dizer que é sobretudo novelista deve-se a ter sido por esta sua faceta, pelos seus peculiares pequenos contos, que ganhou o Man Booker International Prize 2013.

Devo dizer que acho o que ela escreve muito desconcertante. Por vezes são pequenas histórias mas, a maioria, são apontamentos, aforismos, ou coisas meio poéticas, ou piadas, ou, simplesmente, doideiras. É a anti-erudita por excelência. Ou melhor, até pode ser que seja erudita mas disfarça muito bem. Não sei definir melhor. Acho que nem faz sentido tentar definir. Só estou aqui a puxar pela cabeça para escrever isto para tentar que, quem nunca tenha lido nada dela, possa ficar com uma ideia.

O livro que tenho aqui comigo e que tem mais de 600 páginas é daqueles livros que abro, leio umas páginas, salteio, aterro onde aterrar, leio um pouco mais. Fecho. Tempo depois repito. Tenho sempre curiosidade em perceber o que vai sair dali. Talvez seja esse o seu maior mérito: a imprevisibilidade. Escuso de dizer que gosto pois a mim atrai-me sempre o que é assim, diferente, inesperado - e bem escrito.

Na juventude, Lydia foi casada durante quatro anos com Paul Auster, de quem tem um filho. Não foi coisa que tivesse corrido bem. Passaram a dar-se melhor depois de terem acabado a relação. Ambos partiram para outra, vieram novos filhos, a vida seguiu e seguiu bem.

Paul Auster fala do conturbado breve período em que foram casados no seu livro de memórias, Diário de Inverno. Transcrevo um pouco. Não se espantem com a forma como Auster se exprime - como o Jorge Jesus ou o Ronaldo também se exprimem (hi.... a heresia que estou a escrever...), quando falando deles próprios, dizem 'tu foste' em vez de dizerem 'eu fui'. Enfim. Conhecessem eles este livro e já poderiam dizer, todos armados em eruditos, que, ao falarem, adoptam 'o estilo Paul Auster' - a ver se mais alguém gozava com eles...:).



Paul Auster quando era mais novo
(e quase gémeo separado à nascença do Cunhal em novo, especialmente nos olhos)


No dia 6 de Outubro de 1974, cerca de dois meses do teu regresso, casaste-te com a tua namorada. Uma pequena cerimónia realizada no teu apartamento, seguida de uma festa oferecida por um amigo que vivia perto de ti, um apartamento muito maior do que o teu. Considerando as frequentes mudanças de opinião que desde o início vos afligiram, as constantes vindas e idas, os casos com outras pessoas, os rompimentos e reatamentos que se sucediam com a regularidade das mudanças de estação, a ideia de que qualquer de vocês tenha admitido casar-se parece-te agora fruto de um capricho delirante. No mínimo estavam a correr um risco enorme, pondo em jogo a vossa amizade e as vossas ambições literárias, para transformar o casamento em algo diferente do que já tinham experimentado juntos, mas perderam a aposta, ambos a perderam porque estavam condenados a perdê-la, e por isso só conseguiram que durasse quatro anos, casando em outubro de 1974 e separando-se em novembro de 1978. Ambos tinham vinte e sete anos quando deram o nó, idade suficiente para saberem o que vos esperava, mas ao mesmo tempo nenhum de vocês era nada que se parecesse com um adulto, no fundo continuavam a ser dois adolescentes, e a verdade nua e crua era que não tinham a mínima hipóteses.



Pintura de Edward Hopper -
que retrata bem o ambiente descrito acima, no texto de Auster, e em alguns  textos de Lydia Davis


A palavra escrita, então, a Lydia Davis:

O Outro

Ela muda qualquer em casa para aborrecer o outro, e o outro aborrece-se e torna a mudá-la, e ela muda outra coisa da casa para aborrecer o outro, e o outro aborrece-se e torna a mudá-la, e então ela conta a outras pessoas o que se passa, e as outras pessoas acham graça, mas o outro também ouve e não acha graça nenhuma, mas nada pode fazer para o mudar.



Mulher olhando a rua pela janela - ainda a pintura de Edward Hopper


Um estranho impulso


Olhei da minha janela lá para baixo, para a rua. O sol brilhava e os lojistas tinham saído para apanhar sol e ficarem a ver as pessoas a passar. Mas porque é que os lojistas tapavam os ouvidos? E porque é que as pessoas lá na rua corriam como se fossem perseguidas por um terrível espectro? Logo tudo voltou ao normal: o incidente não fora mais do que um momento de loucura durante o qual as pessoas não conseguiam suportar a frustração das suas vidas e cederam a um impulso estranho.


E, agora, a palavra dita por Lydia Davis que, para além de escrever, é também professora de escrita criativa (e que é Membro da American Academy of Arts and Sciences e que, para além deste prémio, já recebeu inúmeros outros).




***

Ambos os pequenos contos de Lydia Davis acima transcritos fazem parte do livro 'Contos Completos' da Relógio d'Água numa tradução de Miguel Serras Pereira e Manuel Resende.

Abaixo, no post a seguir a este, há um vídeo muito divertido e, não é para assustar, mas deve merecer alguma reflexão por parte de quem se prepara para dar uma facadinha no matrimónio, que o que aconteceu àquele pode acontecer a qualquer um. Imagine que a coisa se passa num 9º andar, por exemplo...


***

E, por hoje, nada mais. tenham, meus Caros Leitores, um belo fim de semana!