domingo, abril 28, 2013

A poesia salva vidas? Na Revista do Expresso desta semana, Mia Couto conta como, a ele, salvou. E uma rara entrevista dele sobre as suas influências familiares e os seus métodos de escrita. (E eu aproveito a boleia e conto como a poesia também 'salvou a vida' a um colega meu, ou melhor, a dois)




Uma vez eu tinha um colega que estava a ser muito atacado pelo que se passava na área pela qual era responsável. Eu ouvia já falar na inevitabilidade de o afastar. Dali só vinham problemas, problemas, e as soluções tardavam. E, no entanto, muito amiga desse meu colega, eu conhecia bem as dificuldades pelas quais ele passava. Com uma equipa de segunda linha muito fraca, gente sem grande perfil para as funções, ele debatia-se: por um lado não queria desculpar-se com eles, não queria correr o risco de se ver confrontado com a necessidade de os afastar, tentava tirar deles o que eles não conseguiam dar, por outro levava tareia todos os dias. 

Uma reorganização mais ampla que retirasse alguns desses elementos para outras funções, talvez até para fora da sua área, seria o ideal mas a lealdade dele para com os subordinados, levava-o a desdobrar-se até ao limite do possível e a esconder a inadaptabilidade deles para a função. De facto, estavam em causa sobretudo dois, sendo que, de cada um desses dois, dependiam muitas pessoas que, estando a ser deficientemente conduzidas, causavam sistemáticos problemas à organização.

Um dia, estando eu em conversa com o presidente da altura, em que ele me dizia que, por muito que lhe custasse, alguma coisa teria que fazer pois não era possível fingir que as coisas estavam a correr bem, quando o não estavam mesmo nada. Alertei-o, então, que seria errado afastar esse meu colega, pois o grande problema não era ele mas sim que que ele estava sozinho à frente daquele grande 'barco'. Dos dois que deveriam ser os seus braços direitos, um estava a pouco tempo de se reformar e já não estava para se ralar; o outro não tinha o mínimo de jeito para chefiar pessoas, perdia-se em raciocínios muito elaborados e teóricos, sem sentido prático.

Esse presidente ficou surpreendido pois o meu colega nunca lhe tinha dado sequer a entender que se debatia com problemas desse género, muito pelo contrário, defendia sempre intransigentemente os seus colaboradores. Estava mesmo admirado, esse presidente, e interrogou-se como, tendo sabido por mim, poderia abordar o assunto sem quebrar a confiança dos outros em mim. Sugeri que não fizesse muita fé nas minhas palavras e que arranjasse maneira de ir ele mesmo avaliar a situação, in loco, vendo com os seus próprios olhos.

Pessoa muito experiente, com uma forte costela política, e com vários cargos em governos anteriores, sabia fazer as coisas como deve ser.

Assim, foi sem surpresa que, na reunião seguinte da equipa de gestão, o vi, com o ar mais natural do mundo, a dirigir-se a esse meu colega e a outros com funções equivalentes, dizendo-lhes que queria reunir com as equipas directas deles para trocarem opiniões sobre a actividade, problemas, projectos, etc. Toda a gente achou natural. Logo ali marcou as reuniões. 

Passados uns dias entrou-me no gabinete, decidido como sempre, dizendo-me. Tem razão. Já lá estive. Fizemos uma reunião com ele e com a primeira linha toda, cada um fez uma apresentação, fiz perguntas. Fiquei a topá-los. Tem razão. Coitado. Como não haverá ele de ser ver aflito, com uma malta daquelas...? Mas já estamos a negociar a saída do mais velho, do que estava para sair. Perguntámos-lhe se queria acelerar a saída com indemnização e ele esfregou as mãos de contente, era mesmo isso que queria. Já está em marcha a admissão de alguém para o lugar dele. Quanto ao outro, que coisa... como é que é possível...? É pá...! Ri-me e perguntei-lhe o que tinha achado dele. Um poeta! respondeu-me.

Daí para a frente, quando se referia a esse, dizia-me sempre, aquele tipo, o poeta.




Claro que de poeta não tinha nada. Era um chato, um maçador que não se aguentava, para cada coisa aparecia com teorias do além e expunha-as como se estivesse a fazer o discurso da vida dele, um palavreado rebuscado completamente a despropósito. 

Foi mudado de funções. Por consideração para com ele, foi-lhe dado um lugar onde aquela maneira de ser improdutiva não fazia mossa. Na verdade, aproveitou esse pousio para escrever um livro sobre história, não me lembro se história do local onde vivia ou de onde tinha nascido. Penso que nunca foi tão feliz na sua vida profissional como naquela altura em que ninguém o maçava, nem ele maçava ninguém. Entretanto, já se reformou (e é pai de uma combativa deputada da nossa praça, da qual tem razões para se orgulhar).

E o meu colega e amigo viu reforçada a sua equipa e pôde, finalmente, mostrar resultados e viver mais tranquilamente.

Salvou-os a 'poesia'.


Mas vem isto a propósito de quê? Vem a propósito da ideia, por vezes pouco apreciativa, como as pessoas se referem aos poetas. Eu própria, quando estou na minha vertente profissional, quando ouço argumentos pouco sólidos, elaborados mas pouco pragmáticos, é vulgar sair-me qualquer coisa como 'Vamos a coisas concretas, deixemo-nos de poesias'. Por dentro fico a rir-me (ouvindo-me, quem ali diria que sou apaixonada por poesia?)




Ocorreu-me escrever isto depois de ler a entrevista de Mia Couto ao Expresso, publicada na Revista deste sábado dedicada a Moçambique.

(Já agora, deixem-me que vos diga que gosto muito dos moçambicanos. Na faculdade havia muitos estudantes de Moçambique, negros retintos, alguns com um físico espectacular, todos simpatiquíssimos. Habia um que tinha um xodó por mim e que, vá lá saber porquê, tinha sempre iogurtes para me oferecer. Nunca os aceitei embora ficasse com pena por não saber retribuir a simpatia dele. Devia achar que oferecer-me um iogurte era um gesto especial. 

Eu usava o cabelo comprido e o meu cabelo é forte, espesso, caía pesado e, ao cair, era levemente ondulado. Ele gostava muito do meu cabelo. Às vezes sentava-se ao pé de mim e ficava, calado, a olhar para mim e, em especial, para o meu cabelo. Um dia resolvi cortá-lo. Quando me viu assim, teve um sobressalto e ficou numa desolação que só vista. Nem queria acreditar que eu o tivesse feito, triste, triste.  Porquê? Porquê? Não lhe expliquei que tinha mudado de namorado e que o meu novo namorado preferia ver-me assim, talvez por ter sabido que o anterior gostava muito dos meus cabelos compridos.

Depois, quando dei aulas, tive um aluno moçambicano, alto, magro, sempre sorridente, muito bonito. Inteligentíssimo. Dei-lhe notas muito altas. Nunca mostrou vaidade, apenas um orgulho muito digno.)




Mas divergi. Estava a falar de poesia.

Volto a Mia Couto e transcrevo:




E foram tantos os momentos de aventura nos tempos de oposição.

Como aquele em que se ofereceu para ser membro da Frelimo, e foi aceite numa cerimónia secreta. 

"Fui para uma casa à noite, nem pude ver qual era o caminho para não saber onde ficava. Quando cheguei lá, os candidatos tinham que contar uma história que era a 'narração do sofrimento'. Cada um tinha de mostrar quanto sofreu para merecer a honra de estar ali. E todos tinham razões profundas, e eu, que fui o último a falar, não tinha nada. Era um privilegiado, uma pessoa feliz. estava aflito, comecei a pensar 'tenho de inventar um sofrimento instantâneo'. Mas quando me pus em frente da assembleia, o fulano reconheceu-me e perguntou 'você é aquele que publica aqueles poemas no jornal! Ah, você é poeta! Precisamos de vocês!' E não tive de contar história nenhuma. A poesia afinal tinha algum serviço. A mim salvou-me!"



Vida, amor, poesia - Pablo Neruda
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Poema da Despedida (muito bem) dito por Elisabete Luís





Transcrito do YouTube: 
Entrevista rara com um dos escritores contemporâneos mais notáveis da actualidade.
Mia Couto partilha com o jornalista António Mateus uma viagem ao interior do imaginário e a intimidade familiar de quem redesenha o escrever do sentir em português.
(Um trabalho assinado em Joanesburgo em 2003)



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Caso queiram continuar comigo e, sobretudo, com poesia, convido-vos a virem até ao meu Ginjal e Lisboa onde hoje há poesia dita e cantada. Eugénio diz o seu Sorriso, Natália diz o Romance da Paloma e Filipa Pais canta Em todas as ruas te encontro de Mário Cesariny. Dia grande por lá.

E, no post a seguir a este, poderão, ainda, ler a minha opinião sobre os desaguisados entre Paulo Portas e Vítor Gaspar e o seu adjunto, Passos Coelho. Estará para breve o fim deste pesadelo? A seguir.

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E por hoje fico-me por aqui. Tenham, meus Caros Leitores um belo domingo.
Be happy! Enjoy! Smile!

2 comentários:

  1. A sua escrita, mesmo quando em prosa, é sempre poética!! É um prazer ler, tanto a realidade como a ficção!!
    Bom domingo e uma óptima semana.
    Beijinhos.

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  2. O que por aí mais há, são "quadros" intermédios (e não só)que nada têm de poetas, são apenas uns fingidores...
    Mas falando a sério, parabéns pelo excelente poste.
    Abraço

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