Este sábado de manhã caminhei à beira do rio. Estava muito frio, um frio cortante. E cheirava muito a maresia. O rio estava picado. Aqui, o rio já está muito perto do oceano, já perdeu a mansidão dos rios. Com o tempo assim, fica picado, rijo.
Os gatos estavam abrigados, apenas vi um e foi de fugida. Recolhem-se em dias de muito frio. Havia poucos pescadores, quase nenhuns. Só eu e as gaivotas gostamos de tempo assim. Por estas manhãs de vento antárctico o Ginjal fica quase deserto.
Hoje a água do rio devia estar gelada e elas passeavam-se como cisnes num lago. Outras deixavam-se ficar nos cais a olhar os veleiros. Depois, de vez em quando elevam-se aos gritos pelos ares. Loucas.
Também gosto muito de ver os barcos à vela. Hoje havia alguns de velas muito brancas mas, por momentos, passaram lá ao fundo quatro de velas escuras. Qualquer coisa de mágico, cavaleiros negros, contra a alvura dos cavaleiros brancos. E não sei se devo comparar estes veleiros a cavaleiros ou a cavalos. São tão bonitos.
Um pouco mais à frente há o grande radar e as gaivotas rodopiam e vão pousar nos altos candeeiros ao sol.
Fico a vê-las.
As suas longas asas quase parecem as asas da antena do radar. Há uma perfeição e uma precisão nos seus movimentos difíceis de descrever.
Mas no outro dia vi uma coisa terrível. Na altura nem consegui falar nisso. Vi uma gaivota em terra que andava muito devagar, mal andava, e tinha, agarrado a ela, alguma coisa grande e estranha. Aproximei-me para ver o que era. Fiquei aflita. Era a asa, tinha a asa partida. E a asa ficava aberta, enorme, a arrastar. A gaivota olhou para mim com uns olhos muito tristes. Ia morrer pois já mal andava, não tinha força para arrastar uma asa tão grande. Fotografei enquanto não percebi bem o que era aquilo, depois não consegui, era trágico demais. Não o mostro aqui porque é doloroso.
Mas não quero falar disto, entristece-me.
Prefiro pensar que as gaivotas são invencíveis, eternas.
Agora estou in heaven. Noite descansada, a lenha arde lentamente na salamandra. Li o Expresso, vi o Downton Abbey de que muito gosto. Faz-me muita impressão as pessoas que, por não conseguirem ser explícitas, não manifestam os seus sentimentos de forma inequívoca, deixando que a vida lhes passe ao lado - aquela Mary enerva-me. Mas a avó é o máximo, a mãe é um modelo de contenção, o pai é um modelo de bom pai de família, o Matthew é um amor e os empregados são personagens extraordinários, todos eles.
Antes, de tarde, passeei, deliciada, agradecida. Esta é a terra que me acolhe com gentileza, com mimo, como se eu fosse um dos seus produtos.
Está coberta de musgo, a terra, tudo muito verde e macio. Até nas pedras nasce musgo.
Passo a mão, gosto de sentir a macieza fresca da natureza. Emociono-me vendo isto. Que generosidade a da pedra que assim acolhe, maternalmente, este musgo macio.
À tarde o sol fica muito suave, dourado, as pedras reflectem a luz, e eu gostava de me poder deixar ficar assim, aqui, recebendo esta luz, eu impressa da rocha que reflecte o sol, eu ao lado do pinheiro banhado de luz.
Olho-me aqui. O cabelo apanhado, os óculos escuros na cabeça, encasacada, estava tanto frio, segurando a máquina que fixa esta imagem. Gostava de pensar que um pouco de mim está ali impresso na rocha. Para sempre.
Quando ali estava, estava a lembrar-me de um dia, há muito tempo. Eu tinha repreendido a minha filha e ela tinha ficado toda amuada. Depois deixei de a ver. Chamei-a e não aparecia. Fiquei preocupada. Andei à procura dela e não a encontrava. Fui dar com ela sentada naquele ressalto que aqui se vê. A pedra forma um banco natural, abrigado, e ela tinha-se vindo sentar aqui, encolhida. Este recanto passou a ser, na minha cabeça, o refúgio da minha filha.
O tempo passa a correr. Ou então somos nós que andamos a correr e não sabemos agarrar o tempo.
Um dia resolvi inscrever a expressão Carpe Diem numa parede. Para enquadrar, lembrei-me de usar um motivo de uma caixa da Vista Alegre. Mandei fazer um painel de azulejos onde apareciam essas duas palavras, para nunca me esquecer de agarrar cada dia.
A parede está a precisar de pintura mas eu gosto tanto de ver o efeito do tempo nas coisas, gosto de o ver inscrito nas paredes, nas pedras.
E nas árvores.
O meu grande pinheiro, a que uma atenta leitora chamou o meu alter-ego, tem o tempo orgulhosamente impresso na sua pele e eu acha-o lindo.
Passo a mão pela casca rugosa, sinto a textura que parece áspera mas que, acariciando com cuidado, se torna macia, sinto a resina que escorre doce e perfumada e sinto uma ternura tão grande. É tão bonito.
O pinheiro é majestoso, sereno. Não corre. Está sabiamente a viver cada instante, deixando que o tempo se detenha sobre a sua pele. Assim fosse eu.
*
Apeteceu-me escrever isto antes de me ir deitar. Antes tinha escrito uns fait-divers, um sobre o traje deste sábado da Judite de Sousa e outro sobre a gravidez da ministra e já não tencionava escrever mais nada, a ver se me ia deitar mais cedo. Mas estava a faltar-me escrever isto. Parece que só agora é que vou poder ir dormir descansada.
*
Tenham, meus Caros Leitores um belo domingo.
Olá UJM!
ResponderEliminarUma atitude que eu gosto de "ler" nos seus textos, para além de uma bela escrita " mozarteana" ( um dia explico!), é o seu ver para além do ver : as coisas, as gaivotas, as pessoas e não apenas olhar e fotografar!
Ver assim é o viver e ainda por cima, no seu blog,oferece as suas vivências aos seus leitores.
Gosto e...muito!
Um abraço
A Jeitinho já sabe que eu não resisto aos seus passeios no Ginjal e também no in heaven, tenho sempre que dizer/escrever qualquer coisinha!
ResponderEliminarGostei de saber que conseguiu uns momentos para descansar de toda a azáfama do Natal/Ano Novo, para ler o expresso com calma e para dar os seus revigorantes passeios.
Fiquei triste com a gaivotinha doente, mas vi com alegria que já tem uma toda bonita e saudável no Ginjal.
Os veleiros negros fizeram-me lembrar os nómadas cavalgando as ondas/dunas do deserto, assim estilo Omar Shariff no inesquecível Lawrence da Arábia...
Eu também estive a ver o Downton Abbey. Todo aquele ambiente me faz lembrar o universo Jane Austen (Miss Bennett, Mr. Darcy) que muito aprecio.
A literatura inglesa sempre me fascinou.
Eles são tão diferentes de nós, tão contidos mas também tão ousados!
Tão conservadores mas também tão inovadores!
Eu gosto da Mary e estou a torcer para que ela fique com o Matthew!
Mas a minha preferida é mesmo a avó, a grande Maggie Smith, embora eles sejam todos fantásticos!
Adorei o Carpe Diem!
Eu devia gravá-lo na testa, para olhar para ele todos os dias, logo de manhã ao lavar a cara.
É que a minha inteligencia emocional (se calhar a outra tbém) está mesmo de rastos.
Parece que tomo sempre a decisão errada no momento errado!
Mas como diz a Jeitinho, estamos sempre a tempo de mudar, não é?
Para já, hoje vou comer uma romã. Dizem que dá sorte...
Beijinho
Antonieta
Olá Tazinha!
ResponderEliminarEstou de volta neste domingo frio e cinzento.
Fiquei feliz com a sua felicidade em família nesta época festiva. Também estivemos todos juntos, mais novos, mais velhos e é sempre um enlevo para o espírito poder ver as várias idades juntas nestas alturas. Tudo se comporta como se não existissem problemas face ao ambiente aconchegante.
Já uma vez lhe disse da minha ternura pelas gaivotas e de uma que até me visitava no escritório à janela junto da qual tinha a minha secretária e o computador quando ainda trabalhava junto ao Marquês de Pombal.
Acho que somos mais felizes quando conseguimos tirar prazer por momentos das pequenas coisas que amamos.
Grande abraço e mais uma vez um Feliz 2013 para si, marido, filhos e "benjamins".
Cara UJM:
ResponderEliminarSei (creio) o que significa para si esse seu "céu", pelo que diz, pelo que dele sempre diz.
Permita-me que partilhe consigo e com os seus Leitores um texto-poema que acabei de escrever e publicar no meu blog (um outro lado do "céu"...):
Deixaram de dedilhar as ondas
Estava escrito que aqueles pinheiros não se abatiam
Porque mesmo estando no que era nosso
Nossos não eram…
Eram sagrados,
Da terra toda,
Daquela ali e da que ouviam
Nas ondas do vento que captavam
Nas suas esguias antenas de múltiplos dipolos,
Sorrindo e gemendo como se fosse a própria terra,
Terra-mãe dos homens todos, mesmo ingratos,
Todos seus legítimos herdeiros…
E depois aqueles pinheiros que não se abatiam
Acalmavam os ventos mais irados
Nas insónias das noites de invernia
Quando a luz e o calor já se foram em cinzas
E nós ficávamos sós…
E depois faziam rendas nunca repetidas
De luz e sombras suavíssimas entrelaçadas
Como cantigas de embalar o sono
Dulcíssimas
Em baloiço de estio…
E depois eram ninhos
E eram aqueles cânticos de rolas
Em reminiscências de infância
Nascida em outro ninho…
E eram liberdade
Aqueles pinheiros sempre olhando o alto
Direitos…
Morreram agora aqueles pinheiros
Que não se abatiam porque assim estava escrito,
Porque eram sagrados, de todos que eram…
Que mão os adoeceu?
Que mão os tolheu?
Deixaram de dedilhar as ondas que chegavam
Daquele seu espraiado mar
Como dedos finos que em namoro deleitavam
À noite as estrelas todas à claridade do luar…
José Rodrigues Dias, 2013-01-06
E assim, calmamente, senti-me a passear com a minha Amiga, a usufruir do seu Ginjal, a beber as coisas belas que a vida nos oferece. É que andamos todos tão zangados/preocupados, tão ansiosos com o que vai ser o futuro de jovens e velhos, que parece não restar espaço para mais nada.
ResponderEliminarSó que...?
Só que aqui chegada há qualquer coisa que apazigua. Essa "qualquer coisa" deve-se à forma como vê, como transmite o seu olhar -tão especial! - de ver e estar na Vida.
Por isso, por isto, um grande, grande Obrigada.
Boa semana.
Beijinho.
Nada como aproveitar o momento, nem que seja para recuperar a memória do tempo perdido, antes que nos cortem as asas.
ResponderEliminarBom resto de Domingo
Um abraço
Olá UJM,
ResponderEliminarMuito agradáveis os seus passeios pelo Ginjal, sempre renováveis, hoje sem gatinhos mas com as fiéis gaivotas e ao longe os veleiros a embelezarem esse espaço de magia, tão bem descrito através do seu olhar e sentido pelo seu coração. E também e ainda, o seu acolhedor in heaven, esse lugar do qual já fazemos parte,em pensamento... Não resisto e tenho que lhe dizer que gostei muito de voltar aqui hoje.
Um beijinho grande e obrigada pela boa partilha.
maria eduardo
Olá Joaquim,
ResponderEliminarMas agora vai ter mesmo que explicar essa do mozarteano, que eu sou muito curiosa... Explica?
Mas, seja lá o que for, tenho que agradecer o que me diz. Fico contente que pense isso. Eu gosto muito de olhar e ver e ver para além do que se vê, ver o fundo das coisas ou das pessoas. Ver ou imaginar, o que é quase o mesmo.
Muito obrigada.
um abraço, Joaquim.
Olá Antonieta,
ResponderEliminarNão conhecia essa da romã e já não fui a tempo pois não tinha em casa. Para o ano vou ver se não me esqueço.
Quanto aos meus passeios: é das melhores coisas para revigorar o corpo e o espírito. Gosto mesmo muito de caminhar. E, de preferência, com uma máquina de fotografar - o que chateia à brava o meu marido pois ele gosta de andar a bom ritmo e eu estou sempre a parar. Mas ele refila mas já se habituou e até colabora pois, por vezes, eu estou entretida a fotografar um gatinho e não reparo numa outra coisa que merece registo e é ele que me avisa.
Mesmo lá in heaven saio com máquina e ando, faço umas quantas voltar ao terreno mas vou sempre de máquina.
Gostei muito dessa imagem dos cavaleiros nómadas no deserto. Era isso mesmo. Não sei se a fotografia transmite isso mas eu estava a fotografar os veleiros brancos e, de repente, reparo lá ao fundo em quatro veleiros de velas pretas. Lindo, lindo.
Eu também torço pelo amor entre o suave Matthew e a orgulhosa Mary e adoro a avó, impagável, irónica, mordaz.
Quanto à inteligência emocional, do que sei, aprende-se a viver melhor com o que se é e, sobretudo, aprende-se a melhorar aquilo em que antes não se reparava. É uma matéria que me seduz. Muitos dos disparates que se fazem na vida resultam de uma deficiente inteligência emocional. E está-se sempre a tempo de melhorar e mudar, sempre, sempre.
Um beijinho, Antonieta!
Olá Teresa-Teté,
ResponderEliminarAcabei há pouco de ler o que escreveu sobre mulheres interessantíssimas com quem teve a sorte de conviver.
Fico contente por saber que também teve umas boas festas, na animação e aconchego familiar. Achei graça ao que escreveu: quando estamos assim, nem nos lembramos da crise, essas coisas chatas ficam do lado de fora da porta. Rimos, conversamos, adoramos as nossas crianças e parece que o mundo é perfeito, não é?
Lembro-me da sua gaivota, que a ia visitar. as gaivotas sabem de quem se devem aproximar...:)
Um beijinho, Teresa-Teté!
Olá José Rodrigues Dias,
ResponderEliminarCompreendemo-nos bem. Ambos gostamos de matemática e de poesia. Ambos tratamos os pinheiros como grandes e dignos seres que merecem ser amados e respeitados.
Gostei muito, muito mesmo do seu poema.
No texto desta mensagem, onde falo do meu pinheiro ('O meu grande pinheiro, a que uma atenta leitora chamou o meu alter-ego'), a palavra 'pinheiro' é agora um link para o poema no seu Traçados sobre Nós.
Muito obrigada.
Cordiais saudações, J. Rodrigues Dias!
Olá GL,
ResponderEliminarPassear, fotografar, escrever são coisas que a mim própria tranquilizam. Eu, já de mim, sou uma pessoa tranquila (excepto quando falo do Relvas, do Gaspar, do Passos e dessa tropa fandanga...) e, por isso, se estou a fazer aquilo de que gosto, ainda mais em estado de harmonia fico.
E fico muito contente que esse estado de espírito transpareça e passe para quem aqui me visita.
Gostava que vir aqui fosse como estar estendido na relva de um jardim à beira mar, um lugar de calma, em que as pessoas conversassem com vagar, ouvissem música, lessem, vissem o mar, os barcos, as gaivotas, e as flores e os gatos. E depois lanchassem belos petiscos ou doces iguarias.
Como não pode ser assim mesmo, ao vivo, que, apesar de virtual, seja agradável na mesma... :)
Um abraço, GL, e muito obrigada pela gentileza das suas palavras. Sabem-me bem...
Olá jrd,
ResponderEliminarEm meia dúzia de palavras captou os pontos chave, escrevendo uma frase certeira, sábia.
Concordo com o que diz. Que saibamos sempre agarrar o dia que temos nas nossas mãos, com vigor, e que não nos cortem ou quebrem as asas.
Um abraço, jrd!
Olá Maria Eduardo,
ResponderEliminarComo todos os caranguejos, sou uma pessoa de 'casas'. E a minha casa não é só esta em que agora estou, pertinho do céu, como o meu pedacinho do céu que é feito de terra e muitas pedras, como as margens deste rio que amo de coração. Conheço os recantos, afeiçoo-me aos pormenores, ao musgo, às paredes que envelhecem, às flores que despontam, aos gatos vadios, às gaivotas.
Não podendo ter-vos comigo nestas 'minhas' casas, trago-as para aqui, para que as percorram, para que se sentem comigo, para que passeiem comigo.
Muito obrigada pelas suas palavras. Fico muito contente que se sinta 'em casa' por aqui. É sempre muito bem vinda, sabe disso.
Um grande abraço, Maria Eduardo!