Hoje choveu muito, constantemente. Tive um dia relativamente calmo. Grande parte do tempo estive no meu gabinete que, como anteriormente já aqui o referi, é todo branco e com paredes de vidro. Para introduzir alguma dissonância, junto à mesa de reuniões, tenho um quadro antigo a óleo, com moldura antiga e, num recanto desnivelado, por detrás da minha secretária, tenho uma página do Expresso de há uns anos, que emoldurei. Tem desenhos muito engraçados, a preto e encarnado, e frases sobre a imaginação, a ilusão, a fantasia, a fuga à realidade, o sonho, o brilho, a alegria, a luz – coisas assim.
A escolha da cor e do mobiliário do meu gabinete não foi minha tal como não é de cada pessoa individualmente, uma vez que todos os gabinetes são iguais. Foi um gabinete de arquitectura que desenhou os interiores do edifício e o mobiliário, e que estabeleceu todos os layouts.
É tudo branco e transparente. A zona central é um grande open-space. Ao todo não deve haver mais de uma dezena de gabinetes individuais. Mesmo os coordenadores de área estão no open space. Ao princípio as pessoas temiam a barafunda ou a falta de privacidade mas, afinal, não há barafunda nenhuma e todos se habituaram a gerir a sua forma de estar no meio dos outros.
No open space não há divisórias ou móveis altos. Por isso, parece um enorme espaço arejado, claro, muito luminoso. Poder-se-ia pensar que ficaria com ar de laboratório, tudo branco. Mas não. As pessoas vestem-se da cor que querem e isso, parecendo que não, traz muita cor ao espaço. Uma vez tive uma reunião com alguém que nunca lá tinha estado e, como sempre, a reacção foi de admiração, tão grande, tão bonito, tanta luz. Mas depois perguntou-me: as mulheres aqui têm que se vestir de roxo? Fiquei muito admirada, pensava que estava a brincar comigo. Mas não, estava a falar a sério. De facto, eu tinha uma blusa nesses tons, entre o arroxeado e o violeta. Olhei lá para fora, para o open space, e, curiosamente, nesse dia a maioria das mulheres estava vestida nos mesmos tons. Tinha sido uma curiosa coincidência.
As pessoas que vão lá pela primeira vez ficam agradavelmente impressionadas, tudo tão claro, tão silencioso. É que também não há telefones, pelo que não se houve quase barulho nenhum; e quase não há papel. Ao princípio as pessoas, ao verem que praticamente não há armários, iam tendo um ataque de nervos, onde guardamos as nossas pastas? Mas habituaram-se. Claro que também não há lugar para que cada um ponha vasinhos, jarrinhas, bonecada. Apenas algumas pessoas têm pequenas molduras ou desenhos feitos pelos filhos e arranjam maneira de os ter na sua secretária.
Os vidros são espessos e não se ouve o barulho da rua mas hoje, tal devia ser a força da chuva, ouvia-se bem. O dia esteve muito escuro. Já que não posso respirar o ar da rua (por segurança e eficiência energética, não existem janelas que se possam abrir), ao menos gosto de usar a luz natural. Mas hoje não foi possível, tive que acender a luz logo de manhã.
Se estivesse em casa, com um casaco de malha quente, à lareira, a ler um livro, abençoaria esta chuva que alimenta as terras e lava as almas. Assim, ali, vejo a chuva que cai lá fora como uma mudança de cenário.
Num dia tranquilo, sem muitas reuniões, o tempo passa com leveza: vejo e respondo aos mails, toca o telefone, atendo, faço chamadas, entram-me no gabinete, resolvo assuntos, ou vêm pedir-me opinião ou ajuda, ou vêm contar-me coisas não porque sejam relevantes para o trabalho mas porque têm necessidade de falar, de se fazer ouvir, de ouvir uma palavra de apreço.
No dia a dia do trabalho, mais importante ainda que um ordenado adequado, o que as pessoas mais valorizam é o reconhecimento. E, no entanto, é o que mais escasseia.
Quando em ambiente informal, em que podem conversar à vontade, as pessoas falam nas suas mágoas; e, ouvindo-as, percebemos que as mágoas residem, sobretudo, na falta de valorização que sentem por parte dos outros, fiz aquilo e nem uma palavra, faço aquilo com todo o cuidado e ninguém dá valor, fazer ou não fazer é a mesma coisa. Pelo contrário, se alguém elogia, que alegria, que orgulho. Uma palavra de estímulo e reconhecimento é a medalha que as pessoas ostentam com vaidade, uma vaidade justa e positiva. Ele disse que estava muito bem feito, ele disse que confia no que faço, que nem precisa de conferir. O bem que palavras assim podem fazer. Tão fáceis de dizer e, no entanto, tão raras.
Parece que as pessoas estão mais despertas para a crítica negativa do que para a positiva, pelo menos as pessoas portuguesas. Quando trabalho com pessoas de outras nacionalidades constato como estão mais disponíveis para o elogio, para a demonstração de apreço. Os portugueses, em geral, não valorizam o que têm de bom nem demonstram, por palavras e actos, o reconhecimento pelo bom trabalho ou pela correcta atitude dos outros.
(No entanto, aqui neste meu blogue, não me posso queixar disso. Há leitores que me acarinham muito e a quem muito agradeço o apoio que me transmitem).
Mas, voltando ao dia de hoje na minha gaiola de vidro. Chovia muito e eu ouvia, ainda que com um som vagamente remoto, o som das bátegas de água na minha janela. Gosto de ver a água a escorrer nos vidros, gosto de ver as árvores lá em baixo a dançarem ao som do vento e da chuva.
E então, estando eu a olhar a rua, vi uma gaivota. Não queria acreditar. Uma gaivota ali?
Levantei-me para confirmar mas ela desapareceu. Fiquei à espera, senti que voltaria. Voltou. Um voo largo. Debaixo de um céu carregado e de uma chuva intensa, longe do mar, num local onde só existem edifícios eficientes e assépticos, executivos e técnicos qualificados, uma inesperada gaivota voava, aparecendo e desaparecendo. Voava à volta da torre transparente. Longas asas brancas, peito ligeiramente pintado de mel e cinza, ali andava ela. Queria levar-me com ela, desafiava-me. Pudesse eu abrir uma janela e talvez ela entrasse para me levar ou talvez saísse eu a voar com ela.
Levantei-me para confirmar mas ela desapareceu. Fiquei à espera, senti que voltaria. Voltou. Um voo largo. Debaixo de um céu carregado e de uma chuva intensa, longe do mar, num local onde só existem edifícios eficientes e assépticos, executivos e técnicos qualificados, uma inesperada gaivota voava, aparecendo e desaparecendo. Voava à volta da torre transparente. Longas asas brancas, peito ligeiramente pintado de mel e cinza, ali andava ela. Queria levar-me com ela, desafiava-me. Pudesse eu abrir uma janela e talvez ela entrasse para me levar ou talvez saísse eu a voar com ela.
Estão a ler as minhas palavras e talvez estejam a pensar que é imaginação minha, que até aqui estive a falar a sério e que, ao chegar ao fim do texto, me deu para ficcionar, que resolvi enxertar aqui uma gaivota. Mas não. Estou ainda a falar a sério.
Acho que há uma gaivota que me acompanha, esteja eu onde estiver. Há um pinheiro que é o meu alter-ego, como uma fantástica leitora uma vez me disse, e há esta gaivota que é, talvez, a minha consciência ou a minha alma.
A música lá em cima é All that I wanted de David Fonseca.
Hoje quero dar-vos conta de um anúncio. Isabel Millet, autora de um livro sobre Guilhermina Suggia de que aqui vos falei por ter gostado bastante, enviou-me a seguinte mensagem que vos transmito com o maior gosto:
Venho aqui dizer que o lançamento do meu 3º livro sobre Guilhermina "Rua da Alegria nº 665", será no dia 7 de Dezembro, Sexta-feira, às 18h00, na Escola de Música Vecchi Costa, Rua D. Luís I nº 19 - 1º andar. Fica perto de Santos. Vou passar um CD com gravações históricas de Suggia e duas entrevistas, uma de 1945 e outra de 1949. Espero que apareçam! Um GRANDE ABRAÇO!
*
Ondas de luz
Testei números
E experimentei fórmulas
Que na sombra do mundo imaginei.
Adivinhas no olhar de crianças,
Rastos de deuses,
Magias de loucos,
Restos de dias,
Sonhos de partidas,
Começos de auroras…
Peneiro no entardecer devagar:
Penumbras remotas
Ao fundo do mar
E ondas de luz
Na praia,
Livres as gaivotas…
Évora, 2012-09-24
José Rodrigues Dias
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Ondas de luz
Testei números
E experimentei fórmulas
Que na sombra do mundo imaginei.
Adivinhas no olhar de crianças,
Rastos de deuses,
Magias de loucos,
Restos de dias,
Sonhos de partidas,
Começos de auroras…
Peneiro no entardecer devagar:
Penumbras remotas
Ao fundo do mar
E ondas de luz
Na praia,
Livres as gaivotas…
Évora, 2012-09-24
José Rodrigues Dias
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A música lá em cima é All that I wanted de David Fonseca.
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Hoje quero dar-vos conta de um anúncio. Isabel Millet, autora de um livro sobre Guilhermina Suggia de que aqui vos falei por ter gostado bastante, enviou-me a seguinte mensagem que vos transmito com o maior gosto:
Venho aqui dizer que o lançamento do meu 3º livro sobre Guilhermina "Rua da Alegria nº 665", será no dia 7 de Dezembro, Sexta-feira, às 18h00, na Escola de Música Vecchi Costa, Rua D. Luís I nº 19 - 1º andar. Fica perto de Santos. Vou passar um CD com gravações históricas de Suggia e duas entrevistas, uma de 1945 e outra de 1949. Espero que apareçam! Um GRANDE ABRAÇO!
Aqui fica endereçado o convite que muito agradeço e daqui envio a Isabel Millet os sinceros votos dos maiores sucessos.
*
Antes de me despedir, convido-vos ainda a fazerem uma visita ao meu outro blogue, o Ginjal e Lisboa. Hoje, para assinalar os 77 anos da morte de Fernando Pessoa, tentei partir para abraçar o mundo; mas fiquei. As minhas palavras acompanharam a Mensagem ao som de Froberger que hoje se despediu do Ginjal.
*
E agora é que é. Tenham, meus Caros, um belo fim de semana.
Parece que vai estar frio. Por isso, não se esqueçam, abracem-se se tiverem a quem e/ou agasalhem-se porque o frio é bom quando estamos quentinhos. E tomara que todos se possam agasalhar (nestes dias de inclemência tenho tanta preocupação pelos mais pobres, que vivem em casas degradadas)
Olá UJM!
ResponderEliminarÉ verdade o que diz, sobre o reconhecimento, afinal o que nos alimenta são as emoções. Bastariam pequenos pormenores, que aliás nem custo têm, para que esta cultura de sofrimento fosse derrubada. As teorias da motivação são praticamente inexistentes na nossa cultura, no entanto tanto se poderia fazer se fossem introduzidas no nosso dia a dia, quer no trabalho como em casa ou com os amigos...
Quanto às gaivotas...são animais curiosos, independentes, por vezes aparece uma na escola, vem para comer os restos dos lanches, ouve um dia em que lhe deixei um croissant, chamou-lhe um figo. :)
Um abraço,
bom fim de semana.
Caríssima UJM:
ResponderEliminarPermita-me que aqui transcreva o que um dia escrevi (sobre gaivotas, luz, ...) no meu blog. Obrigado pelos seus "posts" que, bastante calado, sempre sigo.
Saudações cordiais,
J. Rodrigues Dias
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Ondas de luz
Testei números
E experimentei fórmulas
Que na sombra do mundo imaginei.
Adivinhas no olhar de crianças,
Rastos de deuses,
Magias de loucos,
Restos de dias,
Sonhos de partidas,
Começos de auroras…
Peneiro no entardecer devagar:
Penumbras remotas
Ao fundo do mar
E ondas de luz
Na praia,
Livres as gaivotas…
Évora, 2012-09-24
José Rodrigues Dias
Deixei um comentário enorme.
ResponderEliminarSerá que ficou?
É que o portátil (deve ser da chuva) anda pouco estranho.
Para o caso de não ter ficado, só acrescento que foi um prazer ler o seu comentário.
E inveja? Sim, também.
Bom Domingo.
Abraço.
Olá UJM,
ResponderEliminarFaz tempo que também me propuseram uma gaiola de vidro das grandes, em troca da que tinha com pouco vidro e individual. Aceitei com um encolher de ombros...
A propósito da fotografia. Tenho uma parecida:
http://bonstemposhein.blogspot.pt/2007/08/esthtique-de-la-solitude.html
Bom Domingo
Abraço
Olá Alice rodeada de Alfazema,
ResponderEliminarEu, quando me perguntam que formação é que proponho para as pessoas que trabalham comigo, falo sempre em formação comportamental. Saber lidar com as emoções, perceber a maneira de ser dos outros, aprender a motivar ou a contornar ou a vencer a desmotivação, é o mais importante.
E haver bom ambiente, proporcionar a aprendizagem, a superação, e agradecer, e reconhecer - isso é o que conta mais.
Claro que a remuneração deve ser justa mas isso, só por si, não satisfaz quando as pessoas se sentem desapoiadas, descartáveis.
Gostei imenso de saber isso das gaivotas. Saber que vão à escola, procurar restos, e que depois voltam para o mar, acho isso fantástico. Uma gaivota a comer um croissant, isso é o máximo.
Gosto imenso de gaivotas, que ave mais livre, que inveja...!
Gostei de ler as suas palavras, Alice.
Um abraço e um bom domingo!
Caro José Rodrigues Dias,
ResponderEliminarMuito lhe agradeço o envio do poema tão cheio de coisas de que tanto gosto, gaivotas, luz, e, já sabe, também números, fórmulas. Por isso, tomei a liberdade de, com todo o cuidado, pegar nele e colocá-lo no corpo da mensagem. Espero que não se importe.
Fico muito contente que me vá seguindo. É uma presença amiga que está. aí, desse lado.
Muito obrigada.
Saudações cordiais. Um bom domingo.
Olá GL,
ResponderEliminarPois é, o comentário dissolveu-se nos ares, deve estar por aí pairando.
Mas este chegou e muito lhe agradeço que tenha persistido.
Muito obrigada e um bom domingo, GL!
Olá jrd,
ResponderEliminarJá lá fui ver a sua fotografia, a estética da 'solitude', e que belo título. Eu não me canso de as fotografar. Gosto tanto de gaivotas, livres, solitárias.
Hoje, debaixo de um frio cortante, andei a passear à beira rio e fotografia umas que voavam e uma outra, linda, que estava na beira do cais.
Muito obrigada pela gaivota que voa no seu céu.
Um belo domingo para si também, jrd!
Li com gosto a sua entrada e fico a pensar que deve ser bom trabalhar na sua empresa em "open space". Também concordo consigo quanto à importância de cada um ser reconhecido no seu trabalho; na conjuntura actual, quando os ordenados congelam, é mesmo a única fonte de motivação. Mas creio que esse reconhecimento será escasso, parece que há quem goste mais de manter os outros abaixo de si (?). Será uma característica portuguesa, motivada por séculos de culpa e defesa da condição habitual(zinha)? Será pela conhecida inveja?
ResponderEliminarSerá a inveja e a mesquinhez; e a maior parte de nós sem uma gaivota altaneira que nos leve para os longes!
Um beijinho
P.S. Já vi as sua fotografias do frio. Conseguiu transmitir mesmo esta temperatura cortante, a contrastar com o calor de "in Heaven".
Olá Leitora de A Matéria dos Livros,
ResponderEliminarLi o seu comentário e depois, penso que por ter eu escrito um comentário, no seu, na minha cabeça ficou como se tivesse respondido a este.
Mas a minha cabeça é 'uma cabecinha pensadora' e por isso, hoje, pensei que me tinha equivocado e vem cá confirmar. E cá está, não tinha mesmo respondido.
Quanto ao open space. Em termos de organização, numa lógica de gestão pura, é muito melhor. Em termos de conjugar alguma privacidade com o trabalho, já a coisa peca um pouco. Eu trabalho num gabinete mas, mal saio dele, passo forçosamente no open space. Vejo tantas vezes que estão no facebook, com telefonemas pessoais, com conversas que nada têm a ver com trabalho. Sabe o que faço? Tento não ver, não perturbar, não atrapalhar. Acho que toda a gente deve saber gerir os momentos de nada fazer com o que tem que ser feito.
Quanto ao reconhecimento e à motivação, aí, sim, entramos em território complicado. As pessoas que mais pregam contra os chefes, contra os colegas, contra tudo, são geralmente os menos solidários, os menos capazes de trabalhar em equipa. A maledicência e a desmotivação são uma coisa viral numa organização.
Numa escola, ninguém faz sombra a ninguém, não é? Nas empresas não é bem assim. Há sempre os que querem subir e são lambe botas, intriguistas, etc, uma praga.
Não é fácil. E assim, num open space, é também um bom pasto para essas maldedezinhas. Mas depende dos chefes. Se alimentam isso, está tudo estragado. Se se estão nas tintas e não engraçam é com os queixinhas ou engraxadores, então as coisas correm melhor.
E as rivalidades entre o 'mulherio'? Sabe lá. Não há maquilhagem, roupa, sapatos, PT (personal trainer), que não seja discutido, analisado, comparado. Uma coisa insuportável.
Mas, enfim, tem coisas boas.
Um abraço, Leitora!