Passa das duas da manhã, chove vertiginosamente, a chuva enche de brilhos a vista nocturna a partir da minha janela, mas - vendo bem - as luzes que avisto são as luzes da sala misturadas com as da cidade adormecida. Mundos misturados. Estou aqui sozinha na minha sala, escolho as imagens e as palavras que vos vou mostrar e o meu pensamento mistura-se com o pensamento de quem escreveu as palavras que estou a ouvir..
Estas são as horas mais íntimas, as horas cheias de noite, silêncio, as horas em que as ideias e as palavras voam sem obstáculos, sem lógica, estas são as horas de todas as liberdades.
Estas são as horas mais íntimas, as horas cheias de noite, silêncio, as horas em que as ideias e as palavras voam sem obstáculos, sem lógica, estas são as horas de todas as liberdades.
Não tenho motivo nem pretensão, nem explicação. Nem propósito. Nem malícia ou pudor. Nada.
Só tenho palavras soltas, perdidas. Pura vagabundagem nocturna.
Só tenho palavras soltas, perdidas. Pura vagabundagem nocturna.
E, depois, as palavras de amor, o som das palavras, palavras caindo como água numa janela iluminada. Os pássaros ausentes, os sorrisos adormecidos, os barcos recolhidos, apenas silêncio. E eu, aqui, delirando numa sala embalada pela chuva forte na janela, o rio enegrecido, o farol sem luz, a cidade longínqua, dormente. E eu aqui.
Chamaram-me Artemes. Artemisa. Escreveu-me o poeta poemas de amor em que eu era Artemes. Deusa eu, inacessível.
Natália também escreveu sobre ela, assim.
Quando a lua se envolve em túnica ligeira
e um alado segredo no ar fragrante ondeia,
de Artemisa é a noite virgem e alta. Suave.
serenamente cheia de intacta novidade.
...
Alta e branca Artemisa entra no mar e desata
a trança. Boiam na água seus cabelos de prata;
e a sombra num odor branco por jasmins a brotar
escorre para os brilhos silenciosos do mar.
Mergulho, pois, na noite, nesta noite que escorre doida de chuva. O silêncio que me envolve escorre na janela. E uma pequena luz aqui ao meu lado, companhia suave, um calor muito doce. E vocês aí.
E eu, meus Caros Leitores - nesta noite sonhada e leve, cheia de chuva, a alma lavada, as flores esmagadas que perfumam o ar que respiro - penso em vós, aí desse lado sem que eu vos possa ver os olhos ou sentir o calor das vossas mãos. E eu aqui, secreta, nocturna, escrevendo-vos palavras soltas, sem tino ou preceito, tão perto de vós, quase vos tocando com a minha respiração, com os meus dedos vadios que escrevem palavras que voam sem dono, que vão sair daqui voando até vós.
*
As fotografias a preto e branco são de Jeanloup Sieff.
O poema de Jacques Prévert Cet Amour é dito por Jeanne Moreau.
O poema Pour Toi mon amour, também de Jacques Prévert, é dito por Gilles-Claude Thériault, ouvindo-se Chopin interpretado por John Michel, violoncelista, e Lisa Bergman, pianista.
*
E penso em vós, agora, para vos desejar, meus Caros leitores, um domingo muito bom.
Saúde, afecto e alguma loucura é o que hoje vos desejo.
Oh miga Jeitinho, como senti o seu sentir nesta que foi uma noite lavada, encharcada.
ResponderEliminarPorque será que a noite também me trás além de paz, um fluir de sentimentos e recordações que o dia faz desaparecer envolvendo o conteúdo do pensamento?
Já estou quase bem da minha odisseia dentária. Só vou tirar os pontos na 4ª feira mas felizmente nunca mais tive dores. Obrigada pelo cuidado.
Vamo-nos encontrando.
Muitos beijinhos
Amiga:
ResponderEliminarTão bom ouvir Prévert, com a chuva a cair! Tão bom ler Natália, quentinha, quieta! ler as suas palavras e sentir o que diz. Tudo isto me limpa a cabeça de ideias tristes.
Um resto de bom domingo.
Abraço
Mary
Olá Teresa-teté,
ResponderEliminaré um pouco contraditório que gostando tanto eu de luz, goste também tanto da noite. É na noite, sossegada, a casa já em silêncio que mais gosto de ler ou escrever. Mas, como tenho que me levantar cedo para ir trabalhar, durante a semana tenho que me disciplinar um pouco (o que geralmente não consigo, como é sabido...). Mas, ao fim de semana desforro-me.
E, em noites assim, gosto de escrever coisas que não têm grande propósito ou objectivo. São apenas palavras.
Obrigada pelas suas palavras.
Um beijinho, Teresa-Teté.
Olá Mary,
ResponderEliminarGosto cada vez mais de ouvir dizer poesia. Seja em que língua for, há uma toada que parece universal, intemporal. A poesia, lida, ouvida, é, também para mim, a pureza. E a pureza limpa, sim.
E nada de ideias tristes, que este mundo está cheio de coisas boas.
Um abraço, Mary!
Olá,
ResponderEliminarNuma noite de chuva e de mau tempo é bom saber que algures, alguém se preocupa com os seus Leitores e lhes dedica poemas de amor, Jacques Prévert e tantas palavras bonitas e reconfortantes, que não há tempo nem motivo para nos sentirmos tristes e deprimidas, pois está sempre alguém do lado de lá a pensar em nós!...
Um grande beijinho e obrigada pelas suas palavras tão doces e sensíveis..
ME
Olá Maria Eduardo,
ResponderEliminarGostei muito de ler o que escreveu. É bom saber que quem nos lê gosta do que escrevemos e que gosta de saber que, quem escreve, pensa nos seus leitores. Eu penso com muito carinho, sempre muito agradecida.
Mesmo que não nos vejamos, não nos conheçamos, estamos cá, eu aqui e vocês aí, unidos pelas palavras.
muito obrigada.
Um beijinho, Maria Eduardo.