[Vida tão estranha de Rodrigo Leão]
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Há escritores, geralmente mulheres escritoras, que têm uma escrita que lhes vem do útero (só podiam ser mulheres, portanto), ou lhes vem do sangue, ou do coração, ou da carne das mãos, ou da terra onde mergulham as mãos, não sei dizer.
São mulheres cujas palavras respiram, respiram como gente.
Uma dessas mulheres é Maria Gabriela Llansol.
A semana passada comprei um livro que se chama 'Llansol: a luminosa vida dos objectos' e que é organizado por João Barrento e Maria Etelvina Santos. É mais uma bela e cuidada edição Mariposa Azual.
O belo 'Llansol: a luminosa vida dos objectos' no meio das minhas videiras, junto a um painel de azulejos in heaven |
Transcrevo aqui alguns excertos de um texto deste livro escrito por uma outra mulher cuja escrita também provém do centro da terra ou do centro do corpo, Hélia Correia.
Porque também eu gosto de me rodear de objectos, em particular objectos ligados a pessoas, ou objectos com história (e, por história, refiro-me a recordações, doces recordações de familiares ou amigos), vou ilustrar o texto ou com imagens do livro (que pousei nas videiras, num banco coberto de líquen ou numa grande pedra) ou, então, com imagens de objectos meus (objectos que retirei do seu habitat natural para os colocar à porta, cheios de luz, esta luz suave de outono).
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A minha natureza epimetaica, que não sofreu educação contrária, consternava a Maria Gabriela. 'Caute', dizia-me ela que tomara para si a divisa de Spinoza.
Mas eu corria sem antevisão, na pura exaltação do movimento, depois caía e enchia as tardes de desastre.
A leiteira de M. G. Llansol, escolha de Helena Vieira e Escrita e imagem na Escola da Rua de Namur, escolha de Albertina Pena |
Tudo o que é vivo aprende com a experiência: a ramaria sabe contorcer-se para escapar às opressões sombrias, os animais traçam a sua cartografia que assinala os perigos, mesmo os fantasiosos, e não tornam àquele lugar de onde uma vez fugiram. Os humanos registam os seus traumas de variadas maneiras, tendo em vista fornecer um catálogo aos vindouros para os informar das velhas armadilhas. Porém, eu corro sem antevisão e embato contra a sensatez, aleijando ambas: sensatez e eu.
'Caute', dizia-me a Maria Gabriela. E a bondade da recomendação, que dava um tom paciente à sua voz, não me educava: só enchia a sala de uma beleza que me emudecia porque era alguém a ensinar a ler quem não queria inclinar-se para o livro.
(..)
Porque esta obra não suporta manuais. E, no entanto, escreve-se infinitamente a partir dela. E infinitamente se escreverá. Seja qual for o mote, o texto abriga tantas facetas e cintilações que mais parece ter adivinhado a multiplicidade de abordagens que haviam de fazer-se no futuro e ter-se preparado para elas, enganando-as e sendo-lhes leal, sem que nisso haja uma contradição.
A Senhora decepada e Ana ensinando a ler a Myriam escolhas respectivamente de João Barrento e Maria de Lourdes Soares |
Na verdade, a Maria Gabriela nunca se me mostrou surpreendida com o teor dos muitos trabalhos que surgiam, com tão diversas sensibilidades e tão diversos modos de saber. Porque ela não era uma inspirada, ignorante da sua criatura. Acreditava em dons mas, sobretudo, na competência e na autoridade que eram a chave para o seu bom uso. Obedecia à escrita nas rotinas que esse serviço impunha, mas tudo se passava dentro dela e, de algum modo, sob o seu controlo. Frequentava os místicos, mas não para os seguir no êxtase. eram eles, afinal, quem a seguia para se sujeitarem à palavra do génio humano que é o génio de Llansol.
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Porque as coisas da Casa, recebidas e animadas no texto, irradiadas nas mais imprevisíveis direcções, orientadoras, muito vezes, do caminho, com a luz própria aos seres das profundezas, continuam assentes sobre o peso assustador da sua intensidade e, ao mesmo, tempo levantadas na leveza de quem tantas páginas viajou.
(...)
Essa mobilidade das partículas que são a fala, e o silêncio, e a memória daquilo que tomamos por objectos, esse 'reverso' que se oculta ferozmente ao vulgo, requer especial aparelhagem da percepção humana para ser detectado. 'Dilatação de ver', chama-lhe Llansol. É um processo raro da inteligência, no que ela tem de prospecção e escolha, de penetração e até mesmo, se atendermos à etimologia remota, de capacidade de tecer, de criar texto.
(...)
Candeeiros que eram da uma Tia sobre pano bordado a ponto Richelieu também dessa tia in heaven |
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Só então compreendi como a escrita que sempre haveria de procurar
seria a prova de que o que existia, vindo de Témia, era ternura, não ressentimento,
todos os corpos de cristal
tilintavam, e a luz imensa
de que dispunha a sala concentrou-se na janela, e abriu-a.
(Palavras de M. G. Llansol)
Copos de vidro colorido de uma das minhas Avós in heaven e caixinha de fósforos |
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Caso queiram ler a minha opinião sobre os recados de Cavaco Silva no facebook e, também, sobre a sacrossanta questão da dívida, convido-vos a seguirem até ao post abaixo que escrevi antes deste.
Mas se quiserem ler palavras diferentes, palavras de uma mulher que olha o rio em espera e certeza, então convido-vos a irem até ao meu outro blogue, o Ginjal e Lisboa, onde elas se detêm junto a um belo poema do blogue Homo Viator. A música é de Franz Biber, compositor que descobri pela mão de um Leitor a quem muito agradeço.
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E é isto. Tenham, meus Caros Leitores, um belo dia!
Olá, UJM!
ResponderEliminarEssa menina (aí em cima) tem um ar tão mauzinho. :) Gosto do novo visual. Também, tenho copos de vidrinhos coloridos, aliás as coisas que tenho cá por casa, entenda-se decoração, são pedaços de histórias e memórias.
Boa semana.
Um abraço.
Gostei das suas fotos.
ResponderEliminarTenho uns copos iguais a um que aí tem.
Também sou muito ligada aos objectos, que têm histórias - as minhas histórias. Por isso guardo tudo e nunca deito nada fora.
Da mesma forma que gosto deles, sei que me prendem. As coisas prendem-nos. Somos demasiado agarrados a elas. Se não tivessemos nada seriamos mais livres.
Gosto das novas cores do novo visual.
Um beijinho
Olá,
ResponderEliminarGostei muito deste texto e dos excertos do livro de Llansol, a luminosa vida dos objectos, e adorei ainda mais a sua imaginação e criatividade ao ilustrar este post com algumas páginas do livro expostas no meio das suas videiras, a reflectirem a luz de entre os ramos, no seu in heaven. E ainda, os seus belos objectos com história e recordações familiares que partilhou connosco, a exibirem a sua própria luminosidade, ideia que achei também muito criativa.
Gostei muito e abriu-me o apetite para ler este livro, que deve ser muito interessante.
Um beijinho
Amiga:
ResponderEliminarComo já sabe, a minha casa está cheia de pequenos objectos, móveis, fotografias, livros, que lembram a minha vida e a dos que amei.
A mesa de chá de minha mãe, a chávena delicada, do chá da avó, toalhas de linho antigo, copos de cristal da minha sogra, os meus brinquedos de menina. Quando morrer, que será deles?
Mas espero morrer no meio deles.
As melhoras.
Abraço grande
Mary
A todos,
ResponderEliminarComo sabem, o facto de não ter respondido a comentários durante dois dias fez com que se juntassem tantos que não consegui mesmo arranjar tempo para responder individualmente. Claro que os li a todos e claro que, cada um, me suscitou a vontade de falar com cada uma das pessoas que tão gentilmente aqui quis deixar o seu testemunho.
Por isso, é com pena que aqui vos agradeço desta forma, pedindo que não levem a mal por desta vez ser assim.
Muito obrigada.