sexta-feira, outubro 19, 2012

Dizem que hoje morreu o Manuel António Pina mas aqui, no Um Jeito Manso, as suas palavras verticais e puras sempre trarão vida e luz a estas páginas, hoje tão tristes


Há algum tempo, ao fim da tarde, vinha eu de um encontro profissional de dois dias, entro no carro e ouço na rádio que tinha morrido o Bernardo Sassetti. Apeteceu-me parar o carro e ficar ali a tentar perceber o vazio que subitamente se abrira à minha volta. Hoje, vindo identicamente de um segundo dia de reuniões, entro no carro, ligo ao meu marido e, quando lhe pergunto se há novidades, ele diz-me que morreu o Manuel António Pina. Fiquei como na outra vez, triste, espantada, muito desolada. Pessoas assim eu gostava que estivessem sempre perto de nós. São pessoas com uma luz especial, uma luz muito pura que irradia através da sua arte. 

Quem por estas bandas me costuma acompanhar, sabe como Manuel António Pina me é muito querido. Acabei de escrever no Ginjal que gosto que ele me leve pela mão. Gosto mesmo. Abro qualquer um dos seus livros e encontro sempre as palavras que me levam pela mão. Tem uma sabedoria, uma lucidez, uma frontalidade, uma bondade que me tocam. E, se falo no presente e não no passado, é porque pessoas assim, que deixam a sua marca impressa na vida dos outros, não morrem.

Mas, apesar disso, fiquei muito triste. Ele foi-se embora, ouvi que estava doente (e eu não sabia, senão teria feito com que o meu pensamento se ajoelhasse em prece, pedindo por ele). 

Não mais nascerão palavras das suas mãos. Mas a mim e a todos que tanto o admiravam, ele sempre nos vai acompanhar. Tenho-o agora aqui ao meu lado. Passo as minhas mãos tristes pela sua pele onde estão impressas palavras que me fazem companhia.

Hoje a companhia que me fazem é uma companhia silenciosa, as palavras vêm com véus de luto, mãos frias, vazias, e trazem lágrimas muito sentidas.


Uma infinita estrada de luz



                                             Por onde quer que tenha começado,
                                             pelo corpo ou pelo sentido,
                                             ficou tudo por fazer, o feito e o não feito,
                                             como um sono agitado interrompido.

                                             O teu nome tinhas alturas inacessíveis
                                             e lugares mal iluminados onde
                                             se escondiam animais tímidos que só à noite se mostravam
                                             e deveria talvez começado por aí.

                                             Agora é tarde, do que podia
                                             ter sido restam ruínas;
                                             sobre elas construirei a minha igreja
                                             como quem, ao fim do dia, volta a casa.



Uma casa quase em ruínas entra na noite



                                                      A mão que tacteia o papel
                                                      tacteia o próprio tacto,
                                                      como se o papel fosse a pele
                                                      de um corpo menos que corpo, intacto,

                                                      que a mão levemente aflorasse
                                                      acordando paisagens que são
                                                      antes pensamento que imaginação,
                                                      onde, imaginando-se, o pensamento parasse.

                                                      Também a mão é uma árvore
                                                      crescendo para dentro,
                                                      e o desenho o instrumento
                                                      de esclarecimento da paisagem.




Um veleiro que parte, num rio que parte



                                                     Com que palavras ou que lábios
                                                     é possível estar assim tão perto do fogo,
                                                     e tão perto de cada dia, das horas tumultuosas e das serenas,
                                                     tão sem peso em cima do pensamento?

                                                     Pode bem acontecer que exista tudo e isto também,
                                                     e não só uma voz de ninguém.
                                                     Onde, porém? Em que lugares reais,
                                                     tão perto que as palavras são de mais?

                                                     Agora que os deuses partiram,
                                                     e estamos, se possível, ainda mais sós,
                                                     sem forma e vazios, inocentes de nós,
                                                     como diremos ainda margens e como diremos rios?




Olhando o imenso desconhecido

*

Os poemas são da autoria do querido Poeta Manuel António Pina e podem ser lidos no livro 'Todas as Palavras', poesia reunida.

As fotografias foram todas feitas no Ginjal (a primeira, em particular, foi feita sobre o Ginjal, na Boca do Vento, de frente para Lisboa). 

*

Hoje, uma vez mais, não consigo responder aos comentários. Também não vou poder responder aos vossos mails. Li todos, enterneci-me como de costume, gostei muito de os ler, vocês são tão atenciosos, tão generosos; sabem que, por minha vontade, me punha aqui na conversa convosco, respondendo, um por um, a cada comentário, a cada mail. Ao vivo não sou muito tagarela, acho que sou até razoavelmente contida na fala. Mas a escrever é o que sabem, escrevo, escrevo e, então, quando é a conversar convosco, escrevo de gosto, é como se vos tivesse à minha frente, meus amigos, e estivéssemos um bocadinho à conversa. Mas hoje, uma vez mais, não consigo mesmo: é tarde e dentro de menos de quatro horas tenho que estar a pé. Peço-vos que me desculpem.

Não vou ter computador comigo pelo que vou estar longe de vós durante os próximos quatro dias. Talvez na terça feira à noite já consiga vir aqui dar-vos notícias. Senão, na quarta feira estarei de volta.

*

Tão triste e abalada fiquei com a triste notícia do Manuel António Pina que também fiz questão de deixar as minhas palavras emocionadas no Ginjal em Lisboa. Ao meu lado estava o Poeta, tentando animar-me com a sua poesia, mas a sua poesia hoje também estava triste. Se quiserem ir até lá, muito gostaria de vos ter por lá.

Também senti a necessidade por passar por vários dos blogues que costumo ler e que faziam referência à partida do Poeta para deixar uma palavra, como se as pessoas que lamentam a sua partida fossem seus amigos, amigos próximos a quem apresentamos condolências.

Se quiserem ver todos os posts aqui no Um Jeito Manso em que inseri palavras (em prosa ou poesia) de Manuel António Pina poderão clicar aqui.

*

Enquanto estava agora a escrever, estava a ouvir na televisão as palavras duras de Manuela Ferreira Leite. Nem eu digo deste OE e desta gente incompetente o que ela diz.

Também vi o Paulo Portas dizendo banalidades e coisas ocas. Estava com um casaco azulão e gravata cor de rosa vivo e todo ele mais as palavras que dizia me pareceram de plástico. Vai destruir o CDS.

Vi a primeira página do Expresso que diz que escutas a Passos Coelho foram enviadas para investigação. São os bancos, ao que parece. Ah os bancos, que caladinhos que andam... como eu ando a desconfiar dos bancos... (já aqui o disse, há dias, lembram-se...?).

*

Mas, tenho que acabar de escrever. 
Quero desejar-vos que fiquem bem, que tenham saúde, alegria. E, olhem, portem-se mal, está bem? 

Que o meu e o vosso rosto sejam inocentes, com olhar de criança, alegria, irreverência, gosto pela vida - em honra ao Poeta Manuel António Pina, Prémio Pessoa, grande cidadão, português orgulhoso, Homem de bem, para sempre connosco (pelo menos aqui, no Um Jeito Manso, sempre esperarei que as suas palavras apareçam para nos visitar).


6 comentários:

  1. O Poeta deixou-nos e deixou-nos uma poesia imensa.
    Abraco

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  2. Linda e sentida a sua homenagem.
    Gosto muito da poesia de Manuel António Pina.
    Tenha uns bons dias de descanso.
    Um beijinho

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  3. Esqueci-me de dizer que as fotos estão lindíssimas!

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  4. Amiga:
    Já nem as crianças têm olhos inocentes. O olhar delas é duro, desconfiado, triste.
    Só os poetas o têm. Quando são obrigados a ver o mundo, morrem de dor.
    Mary

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  5. Muita saude e que o seu retiro de trabalho dê os frutos maduros e coloridos que deseja.
    Não é o que os nossos governantes nos dão depois de reunirem, mas isso é outra gente.
    Beijinho

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  6. Li esta homenagem e a que fez no seu Ginjal ao escritor e poeta Manuel António Pina e fiquei muito sensibilizada pelas suas palavras tão sentidas!
    A vida é composta de chegadas e partidas e por vezes troca as voltas aos destinos de cada um. Ele partiu cedo de mais mas as suas obras continuarão a dar vida e luz aos que chegam.
    Um post muito bem ilustrado com lindas fotos,como sempre.
    Um beijinho

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