Love me like a river does
Melody Gardot
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A mulher vira-se de frente, a cabeça coberta por uma espécie de véu, olha nos olhos os que, incrédulos, a olham. Sem maquilhagens, a cara lavada, os olhos bem abertos, é, um rosto talvez carente que ali se mostra.
Por baixo da capa branca que lhe serve de véu está nua e, no entanto, olhando-a, é uma nudez virginal, imaculada, que ninguém se atreve a desejar, de tão ausente parece ser esta mulher.
A mulher tem um rosto de criança mas os lábios revelam que gostará, um dia, de beijar. Bastará apenas que experimente, que saiba como é irresistível o sabor húmido de uma outra boca aberta em desejo.
O olhar da mulher parece puro, descoberto, parece branco como o véu que a cobre. Não terá segredos nem ocultos desejos, nem pensamentos indecentes, nem invejas a esconder. Apenas bondade, inocência.
As outras mulheres têm vontade de a proteger dos perigos desta vida, os homens têm vontade de lhe dizer que tenha cuidado, que se cubra mais, que outros há que não a compreenderão, vai menina, vai para casa enquanto é dia, vai menina cobre o corpo, baixa os olhos, sela os lábios.
E a mulher a todos ouve, com atenção e abandono, olhar puro, toda ela inocência.
Depois roda devagar, retira-se. Vai cautelosa, segue os conselhos.
Os homens e as mulheres sorriem, piedosos, recompensados. Ainda há mulheres capazes. E tão ingénua que esta ainda é, tomara que ninguém a faça sofrer. E acenam com a cabeça, concordam, tomara, tomara, tem ar de ser tão boa moça. Pois é e sorriem, ainda há quem dê ouvidos à voz da experiência. Pois é, e sorriem, superiores, sabedores.
Quando chega a casa, a mulher olha-se ao espelho e tenta perceber a reacção dos outros. Tenta ver-se com os olhos dos outros. O que viram eles? Esforça-se. Semicerra os olhos, olha-se bem de frente. Tenta , tenta perceber. Mas não consegue.
Olha-se nos olhos e vê malícia, olha-se na boca e vê sedução, olha-se nas narinas abertas e vê cio, olha-se na simulação de véu nupcial e vê desafio, olha-se na nudez descarada de tão oculta e vê paixão, mas uma paixão tão ardente, que não percebe o que viram os outros.
Retira a capa de renda branca e fica nua perante si própria.
Esta sou eu.
Mas quem sou eu? A mulher ingénua e carente que os outros vêem ou a predadora que me conheço?
Veste-se, então, com folhos, com jóias, toda ela brilhantes, enfeites, toda ela um excesso, um foco de atenção. Poderia ser uma jovem vestida com um qualquer fato regional ou uma noiva, ou podia estar vestida para uma festa. Incomum.
E volta a sair à rua. Apesar do rosto lavado, sem uma única pintura, apesar do corpo coberto, sente-se provocante, e sabe que o seu olhar é o de um felino e sabe que os lábios se arqueiam prontos para uma qualquer palavra molhada, para um qualquer beijo acidental. E anda como se escolhesse a presa e, enquanto anda, sente o corpo a impacientar-se, na urgência de qualquer coisa.
Mas quem por ela passa não a vê, quem ela olha nem repara no laço que é o seu olhar. Ela avança, lenta nos passos, coração acelerado, olhos em fogo, e todo o corpo num frémito. Mas ninguém se vira para a olhar ou, se o fazem, é com a estranheza de quem vê alguém desrespeitando o dress code.
E, de novo, chega até onde estão as mulheres e os homens e, de novo, os olha de frente. E, de novo, nota neles um contentamento incompreensível. Ah, assim sim, assim já está mais tapadinha, assim está mais bonita. E olham como quem olha uma criança com um lindo vestidinho.
Ela sustém o olhar. Força-se a pensar que entre aquelas pessoas de olhar beatificado está o homem que quer conquistar. Quer que ele a ame com a simplicidade de que gosta: palavras francas, sorriso aberto, boca desperta para os sentidos, olhar descarado, mãos silenciosas e meigas, rápido no gatilho. Mas ele é um dos que a olham sem a verem.
Insiste no olhar que trazia e que viu no espelho antes de sair. Sabe que é um olhar que é um poço de tentações, sabe, sabe.
E, no entanto, as velhas comentam umas com as outras que sai à mãe, é bonita como a mãe e outras, caridosas, acrescentam que tomara que tenha mais sorte que a mãe. E os velhos sorriem matreiros e dizem baixinho a mãe era mais cheia, tinha curvas, um corpo que apetecia ver. E outros, entredentes, ver e mexer... E as mulheres mais novas perguntam-se, agora, onde será que ela arranjou aquele vestido? E as jóias? Serão coisas da mãe? E os homens mais novos, entre os quais aquele que ela queria para si, sorriem, é bonita, mas falta-lhe qualquer coisa, é muito pãozinho sem sal, falta-lhe maldade.
Até que a mulher não consegue manter por mais tempo a expressão e a determinação e, devagar, vencida, volta para casa.
E, de novo, se vê ao espelho. Quem sou eu? Quem sou eu, senhores...?
E, então, despe também esta indumentária, retira-se até ao recanto mais sombrio da sua casa, funde-se com a parede, fecha os olhos, fecha as mãos, baixa os braços, e as lágrimas caem. Sem que ninguém a veja, escondida até de si própria, ela desiste de si própria, sem saber como unir os bocados de que se julgava feita.
Depois, num desespero, vai até ao quarto, vai até ao espelho e pinta-se, pinta-se toda, os olhos, muita sombra à volta dos olhos, as maçãs do rosto cobertas de rouge, os lábios de um encarnado quase negro, e uma cruz na testa e flores e véus negros e veste-se toda de negro, veste-se com uma renda aberta em negro, toda ela sombras, escuridão. Olha-se ao espelho e não se reconhece. Tenta captar o olhar mas o seu próprio olhar foge-lhe. Há um negrume em torno de si que desconhece. Tenta abrir os lábios mas não consegue, estão colados, incapazes de um sorriso. Quem ficar com ela, terá uma mulher desconhecida.
E sai de novo.
Quando vai a chegar perto daqueles homens e daquelas mulheres que antes não a reconheceram tal como ela ela se via, vai aflita, sem saber como se comportar. Sente que perdeu espontaneidade, que perdeu a sua habitual joie de vivre. Já não sabe se quer aquele homem, ou qualquer outro, ou sequer que olhem para ela. E, baixinho, um nó na garganta, interroga-se Quem é esta mulher dentro do meu corpo? Serei ainda eu, esta agora que quer ser vista como antes me sentia?
Mas agora já não se me sente a mesma.
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As fotografias são respectivamente de Mario Sorrenti, Annie Leibovitz e Mert And Marcus e a mulher é sempre Kate Moss.
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E, se ainda tiverem um pouco mais de paciência para me aturar, teria todo o gosto em que me visitassem também no meu Ginjal e Lisboa. Hoje as minhas palavras soltam-se das estátuas feitas de distância e de segredos para voarem em volta de um poema de Natália Correia. A música é de Shostakovich interpretada pelo Quarteto Lopes Graça com Olga Prats.
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Tenham, Caros Leitores, um belo dia (...e, se possível, sem grandes problemas de identidade).
Quem somos de facto, o que nos identifica e nos caracteriza, o que somos... de que somos e... porque somos?
ResponderEliminarEstas questões estão sempre presentes na mente de todos os que "se sentem", de todos os que buscam identificar um propósito que justifique a sua existência, o seu percurso e, sobretudo, a interacção com os seus semelhantes.
Porque gostamos ou detestamos alguém, porque preferimos a companhia de alguém e nos afastamos de outros, porque somos altruístas e abenegados com uns e reservados com outros, porque desejamos, porque rejeitamos?
Porque achamos por vezes feio, o que outros acham bonito? Porque lutamos e defendemos opiniões, posições, pontos de vista e atacamos outros, qual é o critério que preside às nossas opções, aos nossos gostos e nos torna voluntariosos?
Desde as gravuras rupestres, o Homem sente que o seu mundo interior é habitado por dúvidas e por questões, temo que no dia em que obtiver respostas para essas questões, o Homem, deixe de existir.
Entretanto, sugiro que nos deixemos embalar pelo sonzáço dos Metálica que nos aconselham a crer em quem somos e... o resto não importa!
;)))
http://www.youtube.com/watch?v=bAsA00-5KoI
E agora, vou pegar no volante do meu tractor e vou lavrar um bocado de terra, prepara-la para as próximas sementeiras.
;)))
Que belo texto escreveu. Reconheci-me no seu espelho; somos tantas: aquela que os outros nos devolvem, aquelas que o espelho nos revela a cada momento, a que imaginamos, a outra...
ResponderEliminarSó é pena as descontinuidade e os desencontros, também a certeza de que o "eu" definitivo é indizível.
Boa quarta-feira!
Um Jeito Manso, olá!
ResponderEliminar"Sobre a nudez forte da verdade – o manto diáfano da fantasia"
Hoje em dia parece-me que sobre a nudez forte da fantasia está o manto diáfano, não o da verdade, mas o da mentira
Nota: Estou com muitos problemas com a Net móvel e é muito difícil entrar na maioria dos sites, incluindo o meu, por isso quase não consigo postar, nem aceder à caixas de comentários.
Vai ser assim até ao fim do mês, quando regressar a casa.
(Deixei-lhe uma réplica no bth).
Um abraço amigo
Olá Bartolomeu,
ResponderEliminarGrande música a de hoje. Que pontaria a sua, sempre na 'mouche'!. Não conhecia esta versão desta canção de que gosto muito. Obrigada.
Claro que a dúvida de 'quem sou, para onde vou', é intemporal.
Penso nisso muitas vezes não tanto porque na vida 'real' isso me ocorra muito mas, aqui, na blogosfera, sim. Ao escrever aqui, gosto de ficcionar, recordar, imaginar, e numas vezes sou eu, tal e qual, e noutras, é imaginação. Mas a imaginação é também fruto de mim pelo que sou eu também. E qual a mais verdadeira? Ou a mais genuína? A que melhor me representa?
E aqui na internet tenho contactado com tantas pessoas tão diferentes que podem escrever coisas num comprimento de onda e que, afinal, na sua vida real, têm uma vivência tão díspar, tão antagónica.
Mas enfim, são ideias que vão e vêm. Não sou dada a grandes metafísicas pelo que, sobre o assunto, prefiro ficcionar do que teorizar.
Agora curiosa mesmo, fiquei com essa do tractor e de lavrar a terra. Já deve ser para aí a 5ª pessoa aqui que me diz que lavra a terra. É mesmo ou é alguma metáfora? Ou os bloggers, em regra, lavram a terra?
Obrigada, uma vez mais, e um belo dia de amanhã!
Olá Leitora de A Matéria dos Livros,
ResponderEliminarNão sei - a sério - qual a minha versão mais autêntica pois sinto-me, de facto, muitas.
Sou autêntica quando converso com algumas pessoas que acho muito diferentes de mim e que, no entanto, dizem que se identificam comigo. Sou autêntica quando estou no desempenho da minha actividade profissional que é nos antípodas disto que mostro quando escrevo textos como os de ontem ou divagações ou mergulhos até ao fundo do mar (imagino como os meus colegas ficariam em perfeito estado de estupor catatónico se lessem algumas dessas coisas). E no entanto sou sempre eu. Tal como sou eu se estou a brincar na praia com as crianças, elas a chamarem por mim, a rirmos, tal como sou eu quando ando sozinha à beira da água, fotografando. Tal como sou eu quando escrevo coisas que, depois, ao reler, me deixam espantada com o que me ocorreu. E por aí fora. Sou sempre eu - e, no entanto, por vezes, poderia dizer-se que são facetas imiscíveis.
Somos seres em construção, em evolução. Se fossemos um estado químico dir-se-ia que ainda não estabilizámos.
Ah, é verdade: lembrei-me de escrever este texto depois de ler o seu post sobre eo 'eu/tu'.
Obrigada, Leitora, e tenha também um belo dia!
Olá jrd!
ResponderEliminarConcordo com a sua observação quando colocada no plano da actualidade política: muita a fantasia, a tosca fantasia, e pouca a verdade.
Aliás, eu que gosto tanto de me 'atirar a eles', ando tão enjoada com a tremenda falta de qualidade desta gente que quase nem consigo falar deles. É aquela coisa que causa até repulsa, é tudo tão mau, é tanta omissão da verdade, é tudo tão escuso, tão medíocre que vejo o que se passa e nem ganho vontade para me pronunciar.
Mas, num outro plano, o da escrita ou o de qualquer outra forma de expressão, o de ser a fantasia a tapar ao de leve a verdade ou vice-versa, aí a coisa tem mais graça. Só fantasia torna-se chato e só verdade ainda mais. Assim, entremeada, fica a coisa mais saborosa.
Tenha uma boa quinta feira (e encare como um desporto especial esse da navegação a pedal...)