Música, por favor
Uma canção desnaturada - Chico Buarco e Elba Ramalho
- É amante da Helena. Confesse.
- Confesso coisa nenhuma.
- Meu amor, por que nega? Eu perdoo.
- Está louca, Elza.
- Faço nada. Só quero saber.
Ângelo deitado de pijama quando ela, tesoura na mão, chegou à porta.
- Sei quem é tua amante.
- Então diga.
- É uma loira.
- Quem te contou?
- A sortista.
- Está brincando, Elza.
- Ela nunca se enganou. Disse que você sustenta essa loira. Por isso chega tarde em casa.
- Mas eu não chego tarde. Sempre juntos à noite.
- O encontro de dia, não é? Mentir não adianta, meu bem.
Investiu contra ele, tesoura em punho. Elza era grande e forte, com dificuldade a desarmou.
- Sei que tem amante. Agora tenho certeza.
- Outra sortista, não é?
- Não me faz carinho. Sem amante não seria tão indiferente.
- Acha que posso te agradar, depois de tudo que me fez? Toda vez que entro em casa é uma cena. Se você me beija, reajo como homem. Mas ir atrás, tenha paciência, isso eu não posso.
- Nunca vi maior mentiroso.
Não o deixava atender o telefone, cheirava-lhe a roupa, revirava o paletó atrás de cabelo loiro. Em sobressalto, Ângelo despertado de sonho pavoroso. A luz acesa a, ao lado da cama, Elza afundava-lhe docemente a barriga com a ponta da tesoura.
- Não vai doer, querido. Nem vai sentir.
Soluçando, atirou-se ao seu peito, faminta de beijos.
Separados de comum acordo. Ela exigiu os filhos, a casa, o carro, uma mesada. Concordou e mudou-se para um hotel. Elza frequentava clube nocturno, procurava-o no escritório para contar do moço muito carinhoso - os outros não eram frios como ele. Ângelo ouvia quieto e calado.
Uma noite em que se dirigia, encolhido à sombra das árvores, do escritório ao hotel, um carro derrapou a seu lado, reconheceu os dois toques da buzina. Era ela, que o convidou a subir. Embriagada, saíu em corrida furiosa.
- Medo de morrer, meu bem?
- Pode me matar, é favor.Mas um de nós tem de cuidar das crianças.
Os faróis acendiam um, dois, três olhos de bicho nocturno.
- Peça perdão do mal que me fez, seu miserável.
- Tudo que quiser. Agora dirija como pessoa sensata.
- Você me dá pena, querido.
Com a violenta freada o carro quase capotou, ela o mandou descer. Obedeceu e, erguendo a gola do paletó, perdeu-se na estrada deserta. Os faróis assassinos a persegui-lo, mas não se afastou, disposto a morrer com dignidade.
- Suba, seu porco.
Sem discutir, subiu. Aquela noite dormiram juntos. Dia seguinte, escondido dos vizinhos, saíu bem cedo.
Para não pensar esqueceu-se no vício. Jogava noite inteira, bocejava no escritório. Caso discreto com uma viúva, a única mulher desde a separação.
Nos braços do amiguinho, Elza encontrou-o na boate. Aos gritos, rasgou o vestido da viúva, sacudiu-a pelo cabelo. Sem piedade os atormentava, jurando arrancar com as unhas o olho azul da outra.
Mão arranhada no bolso, Ângelo voltou a ficar só.
*
Música, uma vez mais, por favor
A vizinha do lado - Roberta de Sá
Um inferninho anunciou com estardalhaço a próxima atracção:
TÂNIA
BAILARINA FANTASISTA
No cartaz a fotografia colorida de Elza, quase nua: Estrela do bailado afro-brasileiro!
Ao batuque do tambor, entre as piadinhas cruéis da canalha, saracoteava pobre imitação de hula-hula.
Desonrado, em desespero, Ângelo decidiu matá-la. Só o pensamento dos filhos o afligia. Foi à procura do sogro:
- O senhor não pode fazer nada? Ela me arruinou, ainda não está satisfeita. Se oferece aos meus amigos e ainda vem me contar.
- Muita dó de você, Ângelo.
- Pedir à sua filha que me deixe em paz? Não viu no jornal o retrato nudista? Assim que recebe os amiguinhos.
- Eu não tenho filha. Para mim é morta.
Abriu a gaveta da escrivaninha:
- Tome este revólver e seja homem!
Ângelo apanhou a arma, foi até à morta.
- Meu filho.
Virou-se em silêncio.
- Se não matar aquela perdida... Quem te mata sou eu!
O revólver pesava-lhe no bolso, nunca dera um tiro. E gemia: Meu Deus, que será de mim? Rondou os clubes suspeitos, escondido atrás dos carros.
Quando a viu, nos braços de um gordo, agarrou o cabo de madrepérola. Queria matar e queria morrer, mas não tinha coragem. Cabeça baixa, voltou lentamente ao hotel: era um manso.
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Este conto chama-se 'Bailarina Fantasista' e é da autoria de Dalton Trevisan.
Pertence ao livro 'Cemitério de Elefantes'.
Pertence ao livro 'Cemitério de Elefantes'.
Como é sabido, Dalton Trevisan, 86 anos, é o Prémio Camões 2012 e este livro é, até agora, segundo creio, o único publicado em Portugal.
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Otto Lara Resende diz que 'ninguém sabe quem é Dalton Trevisan. Deus mesmo não sabe e nem por isso se impacienta'. Ele faz vida de 'severo anacoreta' na Rua Emiliano Perneta, em Curitiba, de onde regularmente envia ao seu editor algum novo original.
Foi para escrever como escreve, 'cada vez mais embutido, no plano ínfimo, do seu território' (Otto Lara Resende), tratando o 'forte veio do erotismo' (Thomas Lask), intensificando 'o clima de humor negro e o grotesco da realidade' (Barbara A. Bannon), ávido de 'laconismo' narrativo e usando como mais ninguém o 'andamento em stacatto' (José Paulo Paes), 'meticuloso, um tanto obsessivo' (Emir Rodriguez Monegal), que Dalton Trevisan se refugiou no fundo da casa, portas fechadas à curiosidade dos caçadores do privado, sentado à secretária pelo menos cinco horas nos sete dias da semana. Entrevistas, deu duas ou três em toda a sua vida literária. Numa delas explicou que prosseguia um objectivo invulgar, o de fazer prosa como os japoneses faziam haikais.
Dalton Trevisan foi-se à eloquência e cravou-lhe a faca. Ironia, elipse, nenhuma cedência ao romantismo nem ao realismo mágico, aí estão outras armas brancas do escritor, afiadas à secretária-mesa-de-cela-monacal. Uma busca pela vivissecção?
Deus, na sua infinita misericórdia, desvia os olhos.
(Excertos do prefácio, intitulado 'Onde Deus volta a cara', da autoria de Fernando Assis Pacheco)
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Tenham, meus Caros leitores, um belíssimo domingo!
Este conto é muito, muito bom. Nunca tinha lido nada de Dalton Trevisan, mas vou à procura.
ResponderEliminarCompreendi melhor agora as observações que faz em relação às mulheres ciumentas em excesso. Como não o sou muito, ou pelo menos tenho a noção do decoro e do respeito pelo outro e por mim, e sempre lidei com pessoas também dadas ao autocontrolo e ao sentido da dignidade, não tinha percebido bem. Estas pessoas existem mesmo ou são uma caricatura ficcional?
Um beijinho
Bom domingo
Olá cara UJM:
ResponderEliminarO que é bom acaba…. a estadia no Reino Maravilhoso terminou . E como apetecia ficar lá, sem horas nem tecnologias, a colher cerejas, tentação da primavera e recordação de romances e beijos que não se esquecem, e a ouvir o cantar dos melros (boa vida, no fundo).
Gostaria muito de lhe mandar as mais vermelhas, carnudas e saborosas cerejas, mas infelizmente, via virtual, não é possível.
Estou de volta ao quotidiano citadino, a cumprir horários que aprisionam, mas confesso que senti falta de visitar o seu sítio que se tornou, já, uma rotina boa. E quanta matéria para ler...
No dia 10 de junho apresenta-nos o prémio Camões 2012 o escritor que “ninguém sabe quem é “ e o conto da “Bailarina Fantasista” ou retrato de um quotidiano realista, de perseveras e cruéis relações conjugais?
Não conheço os contos do ”Cemitério de Elefantes”, mas achei curiosa a sua escolha. Elza, a mulher que se torna bailarina…, a heroína da tragédia da vida de Ângelo "um manso". Puro acaso ou escolha deliberada? Gostei!
Tenha um belo e feliz domingo
Abraço amigo
da Leanor formosa e segura
Não conheço o autor, e se ouvi (devo ter ouvido) algo sobre o prémio, não fixei o nome.
ResponderEliminarMas gente assim, já é mais que ciúme, é obcessão, doença...
Deus nos livre!
Gostei muito da voz de Roberta Sá (é o nome não é?). Não conhecia. Tem uma voz clara, límpida. Bonita.
Um beijinho
Olá Leitora de A Matéria dos Livros,
ResponderEliminarApenas conheço este pequeno livro de Dalton Trevisan e é assim, um gosto de leitura, contos curtos e 'populares'.
Li que vão agora publicar outros livros e tomara que sim.
Ontem, por causa da 'conversa' aqui no UJM sobre ciúmes, sobre insegurança e, também, sobre a traição, sobre a ambiguidade nas relações, lembrei-me deste conto. Acresce que, sendo ele Prémio Camões, me apareceu oportuno trazê-lo aqui, justamente no dia de Camões.
Pergunta se pessoas assim existem de verdade. Então não?!
Eu tenho uma amiga médica (que não vejo há anos) que é giríssima e que era casada com um amigo nosso que não é especialmente bonito. Ela passava a vida a dizer que gostava que ele fosse feio para não despertar interesse noutra mulher. E dizia isto à frente dele e de toda a gente, deixando toda a gente a rir com um sorriso meio atrapalhado e ele sempre um bocado sem jeito. Pois bem, sendo ela uma giraça e ele assim, ela fazia-lhe a vida negra com ciúmes, o pobre não podia dizer ou fazer nada que ela não ficasse logo em 'red alert', sempre achando que ele já não lhe ligava muito, que ele, se estava a desinteressar-se dela, algum motivo haveria de haver. Assisti a cenas de que não há memória. Por mais que toda a gente lhe dissesse que era maluca, que deixasse o pobre do marido respirar em paz, nunca aquela alma conseguiu perceber que tanto ciúme era injustificado e que, era, na prática, a causa da erosão da relação.
Claro que, ao fim de uns anos disto, acabaram por se divorciar (por isso os perdi de vista, uma vez que seguiram rumos totalmente díspares).
Um beijinho, Leitora e um belo domingo!
Olá Leanor, formosa, segura e enfeitada com cerejas,
ResponderEliminarMas olhe que fico mesmo cheia de penas, adoro cerejas fresquinhas, especialmente daquelas carnudas e vermelhas... Daqui por uns anos já deve ser possível desmaterializar objectos e enviá-los pelo ar. Pelo sim, pelo não, vou deixar aqui uma cestinha ao meu lado, não vá isso acontecer mais cedo do que desejo.
Deve estar rejuvenescida e com os olhos lavados pela vista do Douro, depois destes dias no Reino Maravilhoso. Só de pensar nisso, já me dá vontade de me pôr outra vez a caminho.
Como expliquei acima, à Leitora de A Matéria dos Livros, nos últimos dias a conversa por aqui esteve animada em volta de ciúmes, traições, casamentos mais ou menos 'abertos' e, por isso, lembrei-me deste conto que, em minha opinião, é delicioso.
Além disso, queria referir, sem ser de forma excessivamente explícita, que hoje é o dia da língua portuguesa, de Camões. (Claro que também de Portugal mas, também, das comunidades) e, assim, trazer aqui o Prémio Camões deste ano pareceu-me oportuno.
Quanto à controvérsia que animou a tertúlia, senti a falta das suas opiniões mas, um dia destes, voltarei ao assunto pois tenho em mente escrever sobre Vita Sackville-West (tal como referi num post de há uns dias).
Um abraço e um domingo feliz, Leanor.
Olá Isabel,
ResponderEliminarDalton Trevisan é um nome muito pouco conhecido entre nós. Penso que, quando foi atribuído o Prémio Camões deste ano, foi uma surpresa para quase toda a gente.
Só o conheço deste livro mas são uns contos assim como este, breves e saborosos.
Quanto a obsessões assim, olhe, Isabel, que não são apenas ficção, não senhora. Há muita gente assim, homens e mulheres. Claro que, apesar de tudo, são uma minoria mas estão longe de ser raros.
É Roberta Sá, sim e tem uma voz limpa e alegre. E esta canção é uma graça, não é? Eu gosto imenso, acho divertidíssima.
Um beijinho, Isabel e um belo domingo!
parecia-me um autor bastante esquecido, que já deu o que tinha a dar. Por vezes o premio camões como que é atribuido a figuras desconhecidas ou quase, pouco relevantes, não percebo, será defeito meu.
ResponderEliminarhá anos deram o premio a armenio vieira e digo sem reservas que os raros livros que encontrei dele os folheei e decidi que não ia comprar,. Dalton trevisan parece me um caso semelhante, contos curiosos que se distinguem pela brevidade à maneira de jacques sternberg (200 contos num livro de 150 paginas mas serão assim tão bons no seu conjunto esses haikus da prosa brasileira?
Caro Patrício,
ResponderEliminarTambém folheei o livro de Arménio Vieira e também não comprei. Não sei se fui injusta mas guio-me muito pela impressão que tenho ao folhear os livros na livraria.
Do Dalton Trevisan apenas conheço este livro e gosto. Contos breves e muito este género. A voz das pessoas em discurso directo, sem grandes juízos de valor. Gente assim, da rua, do povo, de todos os dias.
Sobre esse autor que refere, Jacques Sternberg, não conheço pelo que se confirma que não há dia que aqui venha que eu não aprenda alguma coisa consigo. haverei de ir à procura que deve ser interessante.
Obrigada!
Ontem escrevi mal "obsessão". Sendo professora, fico aborrecida quando me acontece.Não costumo dar erros ortográficos.
ResponderEliminarEnfim...
Isabel,
ResponderEliminarQuando se escreve à pressa e aqui condicionados ao espaço minúsculo em que escrevemos os comentários, isso acontece.
Ainda hoje escrevi um comentário num blogue e quando reli até fiquei parva. Numa frase pequena consegui repetir duas palavras. Paciência.
Há quem ache que não se deve publicar comentários com erros mas eu acho isso um disparate pois, se não se publica, como é que quem os publicou vai saber a razão de não se publicar?
Além disso, um deslize de mão quem o não tem?
Eu, que escrevo à pressa e não tenho grande paciência para rever, estou sempre a fazer figas para as coisas não saírem com erros... mas, se calhar, às vezes saem...
Não se preocupe, Isabel, e de qualquer forma já aqui fica a sua correcção.
Um beijinho!