Música, por favor
Stasa Mirkovic Grujic interpreta Clair de Lune de Claude Debussy
Quando eu era pequena, com três anos talvez, morava quase ao lado da minha casa um amigo com quem eu brincava assiduamente. Por essa altura, a mãe dele estava grávida. Eu via-lhe a barriga grande e a minha mãe tinha-me explicado que era um bebé que ia nascer, coisa que achei natural.
Por essa altura, uma minha avó tinha patos que andavam à solta no campo. Uma das brincadeiras era descobrir onde tinham as patas deixados os ovos. Era uma verdadeira caça ao tesouro. Geralmente havia sempre um ovo debaixo de uma sebe que havia junto à entrada do quintal. Mas descobrir os outros era uma aventura. Não me lembro de ver nenhuma pata a chocar os ovos mas isso acontecia certamente pois, de vez em quando, havia patinhos bebés.
A minha outra avó tinha uma capoeira e todos os dias a meio da manhã eu estava autorizada a ir buscar os ovos a um pequeno compartimento pequeno e escuro, onde os adultos tinham que se baixar para entrar, compartimento esse que tinha ligação, através de uma pequena abertura em arco ao nível do chão, com o recinto vedado onde elas estavam de dia. Ia com uma cesta de verga, com muito cuidado não fosse lá estar alguma galinha a pôr um ovo nesse instante, e frequentemente tirava os ovos ainda quentes. Muitas vezes a minha avó fazia depois uma gemada, ovo batido com açúcar, uma coisa óptima que hoje recordo como se fossem ovos moles, especialmente quando ela usava apenas a gema.
Por vezes uma galinha ficava choca. Aqui tudo era visível, não era como com as patas que andavam à solta. A galinha choca não saía de cima dos ovos. Havia um outro compartimento, num outro local, junto à ‘casinha’ onde o meu avô arrumava as ferramentas e onde pendurava as résteas de cebolas ou de tomates em cacho. Nessas alturas, era para aí que a galinha que estava nesse estado interessante era levada. Havia um caixote creio que com palha, como se fosse uma cama, onde estavam os ovos e, em cima deles, ciosa e grave, estava a futura mamã. A minha avó tratava-a com muito cuidado e eu não podia fazer barulho quando lá ia. A partir de certa altura, a minha avó começava a vigiar os ovos.
Até que um dia eles começavam a aparecer partidos. A casca de fora partia-se mas tenho ideia que, por vezes a minha avó tinha que ajudar a romper a película de dentro. Depois começava a ver-se o bico do pintainho e a minha avó sempre vigiando, cuidadosa, parteira atenta. Ao fim de algum tempo já os pintainhos estavam cá fora, molhados, trémulos, e a minha avó sempre a recomendar-me que não fizesse barulho para não os assustar, levantando as cascas partidas, os vestígios do parto. Pouco tempo depois já a penugem estava seca e macia e já eles andavam debicando à volta da mãe galinha.
No dia em que nasceu a irmãzinha daquele tal meu amigo, lembro-me que ele foi deixado à guarda da minha mãe pois na casa dele ia grande azáfama. O parto deu-se em casa. Lembro-me perfeitamente de nós dois termos perguntado vezes sem conta à minha mãe se já tinha nascido e da minha mãe dizer que, quando isso acontecesse, nos vinham avisar e que, então, logo lá iríamos ver.
Até que, finalmente, lá fomos. A minha mãe tinha-nos avisado para não fazermos barulho e eu ia com o mesmo cuidado reverente de quando ia ver a galinha choca ou os pintos recém-nascidos.
Quando lá cheguei, vi a mãe dele no quarto, na cama, e estava com um ar um pouco descomposto, a esta distância não sei bem descrever, achei qualquer coisa de diferente nela. Estava com a bebé ao lado, coisa que achei natural. Mas o que me deixou curiosa foi ver a menina já vestida e de não ver cascas de ovo nem vestígios de tal em lado nenhum. Disfarçadamente ia olhando à volta, depois, como quem não quer a coisa, debaixo da cama. Nada, nenhumas cascas. Não resisti, puxei a minha mãe de lado e quase em segredo, perguntei-lhe onde estavam. Tenho ideia que me disse que já deviam ter deitado fora. Mas qualquer coisa na expressão dela me fez perceber que não devia ser bem assim, que ali havia equívoco.
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Até hoje, que eu saiba, apenas Polux e Helena e Castor e Climnestra nasceram de ovos mas isso foi porque Leda era danada para a brincadeira e, no mesmo dia, engravidou de um homem, o marido, e de um deus que, não contente com a excentricidade de ser um deus, ainda se disfarçou de cisne.
[Claro que a história de Leda tem muito que se lhe diga, ora se não tem, e tem variações, derivações e interpretações para todos os gostos.
Paixões, seduções, tentações, violações, traições, ilusões, irritações, confusões, punições, aflições, e até, imagine-se, constelações – há de tudo (e, já agora: nem sempre as respectivas descrições acabam em ões, eu agora é que me está a dar para isto, sei lá por que razões ou motivações).
Leda e o Cisne (a abstracção, a euforia da cor, a luz sobre a mulher, o cisne que desce do azul para inquietar a mulher) - Henri Matisse |
Mas a mim, geralmente, dá-me para as ligeirezas já que, com toda a humildade reconheço que a coisa a sério está sobretudo ao alcance dos verdadeiramente entendidos e não de mim, moça simples, do campo, que, como é sabido, sou mais dada a folgações do que a erudições.
Leda e o Cisne (a inquietação a negro, um dedo oportuno, a nudez desafiante, sem pudor) - Nikias Skapinakis |
De qualquer modo, falando eu assim, que não se pense que sou contra as erudições, qual quê, nada disso, sou a favor, completamente a favor - se bem que nisto de erudições convém distinguir entre os eruditos a sério, que são uns bacanos porreirões, e os pseudo-eruditos, uns maçadores que geralmente são uns... (como estou numa de usar palavras acabadas em ões já me ia saindo que são uns... uns... - mas não desço daí abaixo, não senhor)... são uns pândegos. Pelo menos a mim divertem-me imenso - o que não admira, que eu, simples como sou, dá-me para rir, e graçolas pseudo-eruditas, então, até me levam às lágrimas...! E haja paz no universo.]
Leda e o Cisne - fotografia de Helmut Newton ( Nadja Auermann na célebre fotografia da US Vogue de Anna Wintour) |
E adiante que o tempo ruge, como dizia o outro.
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Para enfeitar o texto – porque, como é sabido, também sou dada à bonecada - ousei utilizar algumas menos convencionais visões (e eu a dar com as palavras acabadas em ões…) sobre a extraordinaire história de Leda e o Cisne. Mas, ao tentar localizar estas que já conhecia, deparei com muitas mais, e algumas bem engraçadas, pelo que não estou certa de que não volte a fazer uma visitinha à Menina Ledinha.
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E, por hoje, é isto.
Gostaria ainda de vos convidar a fazer uma visita ao meu Ginjal e Lisboa.
Hoje as minhas palavras olham as águas em volta de um poema lindo, mas lindo mesmo, de Eugénio de Andrade.
A música escolhida refere-se a uma cena de casamento e, claro, ainda estamos com Wagner.
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Sinceramente vos desejo, a todos, meus Caros Leitores, uma boa sexta feira.
Be happy! Enjoy!
A sua verve hoje está especialmente refinada. Adorei. Como rapariga do campo, que sou, reconheci as andanças das galinhas, não das patas, que não as havia lá pelos quintais familiares. Mas o meu olhar era muito mais simples, nunca tendo feito a ligação entre as cascas dos ovos e os partos humanos, que aliás não eram mais que uma viagem desde o além até ao berço.
ResponderEliminarE então o mistério de Leda e o Cisne é que nunca me passou pelos ouvidos! Anos mais tarde, sim, mas sem dar atenção aos jogos de sedução inerentes. Depois do que tem apresentado aqui, vou pensar melhor no assunto...
Um abraço
A Mitologia Grega é fascinante (e esta de Leda é muito curiosa). Seria interessante poder transformar alguém (como fez Zeus) de quem gostamos para depois a/o seduzir... Tenho alguns livros sobre a Antiguidade da Grécia Antiga e da sua Mitologia e por vezes volto a reler algumas passagens, como sucedeu ao ler estes seus Post.
ResponderEliminarQuanto ás memórias de juventude e dos ovinhos, é uma ternura!
Tenho igualmente, a par com meus irmãos, recordações desses tempos, só que...com muitas “maldades” á mistura. A nós rapazes (temos uma irmã, que era a boazinha, sempre bem comportada, até ao dia em que resoveu cozinhar uma “sopa”com umas “ervinhas” e outros “ingredientes” para imitar a nossa mãe e foi o cabo dos trabalhos! Teve de vir o médico lá casa) só nos ocorria fazer partidas aos animais, quando íamos visitar os nossos avós (no Douro, em Alijó, e na Beira-Alta, perto de Seia). Eram os coelhos, que pintavamos ás cores, as galinhas com uma pedra atada nas patas, os gatos com latas no rabo, etc. Um dia soltámos os bois, lá dos estábulos e toca de os picar – e tivemos de fugir a sete pés! E ainda levámos umas marradas de um carneiro. As casas de nossos avós ficavam na vila ou aldeia, eram casas grandes para a numerosa família, muito confortáveis, mas nós queríamos era ir para as quintas “chatear” a bicharada. Bons tempos...apesar das maldades.
Bom fim-de-semana!
P.Rufino
PS: aprecio muito Cezánne.
Emenda: Grécia Antiga, apenas (desculpem!).
ResponderEliminarP.Rufino
Olá Leitora de A Matéria dos Livros,
ResponderEliminarÉ verdade, estava mesmo com a corda toda. Tinha acabado de dar uma volta pela blogosfera e, nestas voltas, uma pessoa depara com cada uma...
Não consigo entender qual a motivação de quem usa isto para destilar fel, para exibir pretensiosismos ridículos, para provocar os outros. Acho penoso assistir a exercícios desse calibre. Passar a vida a olhar para o próprio umbigo não dá, forçosamente, muita saúde e depois as pessoas escrevem coisas assim, próprias de quem está com uma dor no pescoço e com os olhos tortos - e, se não é, pelo menos é o que parece a quem lê...
Mas, a mim, ler coisadas dessas, se, por um lado, me dá pena, e dá mesmo, também, por outro, me dá vontade de rir, mas dá-me mesmo.
Sabe aquela expressão do Clint Eastwood quando alguém o provoca e parece que é só desse pretexto que ele estava à espera, dizendo 'Make my day...'
Assim sou eu. Fico com uma 'pica'... Mas, enfim, contenho-me, noblesse oblige.
E numa de chegar ao ponto que queria, vieram-me à memória esses tempos tão livres, tão bons, da minha infância. Não tenho dúvida que esses tempos moldaram a minha maneira de ser.
Quanto aos bebés virem sabe-se lá de onde... Que eles vinham de dentro da barriga isso eu tinha percebido pois via a barriga da senhora enorme e diziam-me que era um bebé. Mas imaginei um big egg, uma coisa assim. A senhora, qual galinha, a pôr um big egg do qual sairia um baby todo molhado, verdadeiramente como um pinto.
Uns tempos depois uma tia minha, baixinha e franzina, ficou grávida. Nessa altura eu já andava na infantil e uma amiga veio dizer-me com ar iluminado que o bebé tinha lá ido parar porque o meu tio se tinha posto em cima dela. Eu já tinha visto o galo a pôr-se em cima das galinhas e a dar bicadas no pescoço das galinhas e a minha avó dizia que ele estava a galar as galinhas.
Na altura imaginei o meu tio a saltar assim para cima da minha tia e respondi, convicta, que não acreditava, porque o meu tio era enorme e a minha tia não conseguia tê-lo em cima. E fiquei na minha, que não podia ser.
Enfim.
Quanto àquela do outro se fazer passar por cisne tem graça mas ainda está por provar de quem foi a ideia...
E por aqui me fico.
Um bom sábado, cheio de diversão (a casa já está arrumadinha, já pode passar ao next step: desfrutar o ar do tempo)
Um beijinho, Leitora!
Olá P. Rufino,
ResponderEliminarTambém gosto (do que sei, que não é muito) da mitologia grega. De vez em quando vêm-me à ideia alguns dos mitos mais conhecidos a propósito de circunstâncias da nossa vida. O de Sísifo, por exemplo, é uma presença constante. Pacientemente fazer uma coisa, com esforço, e depois, passado algum tempo, recomeçar do ponto de partida, e de novo, e de novo...
Olhe: adorei ler sobre as suas peripécias com os animais das quintas, que belos terroristas. O que a vossa irmã devia penas no meio de tamanhos traquinas. Histórias deliciosas, de traquinice pura. O que os vossos pais e avós deviam 'penar' com as vossas tropelias.
Acho que não deve haver recordações tão boas, tão desempoeiradas, como as que guardamos de tempos passados ao ar livre, no campo. As minhas memórias desses tempos não passavam por fazer coisas assim. Mas já aqui falei de uma coisa que na altura me era normal e que agora me arrepia: quando ia com um meu amigo e com o meu primo armar ratoeiras e apanhar pássaros.
Andava na rua, no campo, corria, brincava, caía e quando, à noite, tomava banho a banheira ficava cheia de água castanha, tanta era a terra que eu trazia agarrada a mim.
Lembro-me também de a minha avó que tinha patos à solta, ter também uma capoeira com grandes perús e que faziam num grande alguidar uma 'papa' com ervas migadas misturadas com sêmeas e com água para dar a comer aos perús.
E durante algum tempo tinham porcos, num sítio mais longe. Havia um sítio mais baixo, vedado, com uma espécie de pequenos tanques onde eles bebiam água e outros pequenos tanques onde punham a comida. E eles faziam um barulho curioso. Mas a minha avós nunca queria que nós fossemos para lá pois tinha medo que caíssemos lá para dentro. Mas bastava isso, para ser para lá que queríamos sempre ir.
São tempos que sempre recordo com muita ternura tal como vejo ternura nas suas palavras ao recordar também esses seus tempos.
PS: Também gosto de Cézanne.
E tenha um belo fim de semana!!!!
Olá Cara UJM:
ResponderEliminarQuanta matéria sobre “Leda e o Cisne “
Hoje entregue a ingénuas ledices de criança e que bom é recordar tempos pueris!
"Eu não me levo muito a sério. É a melhor maneira de viver.” Diz Agustina Bessa Luís, e eu concordo.
E se as suas lembranças infantis lhe trazem à memória os ovos das patas e galinhas e por associação a criança da vizinha, que não nasceu do ovo, eu recordei, também, (e como me soube bem!) o silêncio que se cumpria logo que alguma galinha ficava de choco. E fui buscar lá muito longe à minha primeira infância a recordação da lenga-lenga que a minha avó me fazia repetir a cada ovo que eu colocava no cesto que a galinha iria chocar: “ menina como eu menina, que deste ovo nasça uma franguinha”. Coisas da sabedoria e economia populares.
E tenha dias felizes e bem humorados!
Abraço amigo da
Leanor formosa e segura
Também me lembrei de algumas coisas da infância. Sempre vivi aqui em Castelo Branco e quando era miúda brincavamos na rua. Também tinha um quintal grande onde brincava horas a fio com os vizinhos da mesma idade. Nas férias ía para a quinta da minha avó e para a aldeia da minha mãe, que curiosamente pertence ao concelho de Seia.
ResponderEliminarGostei de ler o post, e gostei muito das pinturas. Tenho curiosidade de ler mais sobre a história de Leda, que não me lembro de conhecer.
Um beijinho e bom fim-de-semana
Olá, Leanor, formosa e segura,
ResponderEliminarPois é, há ledices também para todos os gostos e, neste dia, as ledices pueris levaram-me para tempos em que éramos sempre simples, amigos, felizes.
Não conhecia essa cantilena da franguinha mas tem graça. Mas lembrou-me da minha avó que também andava a investigar se era franga ou frango, logo que os pintos viravam adolescentes, perdiam a penugem e ficavam grandinhos e com penas.
Há uma outra lenga-lenga que é: 'Põe, põe a galinha ao ovo' e os bebés a aprenderem a fazer a gracinha de apontar o dedinho para a palma da outra mão.
Agustina é mulher de antigas sabedorias e essa que refere é um dos meus lemas de vida. Deve ser uma vida triste a das pessoas que se levam sempre muito a sério, sempre encavalitadas num qualquer precário poleiro, sempre com medo de lá cair, sempre a maçarem os outros.
Pois eu não. Não me levo muito a sério que, senão, passava a vida num azedume impossível de suportar. Eu brinco, sou ligeira, sou profunda, sou o que calha conforme me apetece e, deve ser por isso, que ando geralmente numa boa, sem inimigos. Até hoje, na vida real nunca cortei relações com ninguém e conservo amigos desde sempre. Sou assim por feitio e sobretudo porque não tenho paciência para guerras, para maçar os outros. Pelo contrário, gosto é de ver os outros também na boa.
Olhe, Leanor, leu a sua fantástica frase do outro dia, aquela que lhe perguntei se podia usar, que coloquei no post da Venus ao espelho? Achei que era ali, no mundo de Vénus, que as suas palavras sobressaiam melhor. Obrigada.
E dias felizes para si, Leanor, também na maior boa disposição!
Olá Isabel,
ResponderEliminarAí na região de Castelo Branco ou na de Seia a infância há uns anos atrás deveria ser uma maravilha. E ainda deve ser porque acho que essas regiões são ainda regiões muito puras, muito saudáveis, muito pouco corrompidas. Ainda deve ser possível às crianças brincar na rua.
Aqui, para estas bandas, é quase impossível. Na rua só nos parques infantis a menos que os prédios tenham pátios.
Ainda bem que ficou com curiosidade de conhecer um pouco mais da história de Leda. A mitologia é um mundo de 'histórias' e podem sempre fazer-se extrapolações para os mundos actuais - o que acontece desde sempre pois podemos observar através da literatura, da pintura, da escultura, por exemplo, como a mitologia inspira os autores e artistas de todos os tempos.
Um beijinho, Isabel, e bom domingo!