Música, por favor
Katie Melua - Lucy in the sky with diamonds
(As versões dos Beatles que encontrei estão interditas para incorporação nos blogues)
Ana, chegou, portanto, bastante atrasada à oficina. Fosse porque estivesse com um brilho especial nos olhos, um resto de rubor no rosto, talvez um vestígio de malícia na forma como, sem querer mordia um pouco o lábio ao recordar-se do que se tinha passado ou, mais simplesmente, porque as vizinhas já tivessem feito correr a notícia, a verdade é que mal entrou, todas as outras mulheres a olharam pelo canto do olho tentando perceber o que se teria passado, querendo adivinhar se Ana estava feliz, assustada, se estaria prestes a ir-se embora, enfim, tentando descobrir qualquer coisa; talvez o mistério de Ana estivesse prestes a ser desvendado.
Ana percebia o que se passava, compreendia a curiosidade e imaginava o que pensariam aquelas mulheres tão habituadas a uma vida regular, tranquila, boa. Quase adivinhava as conversas à volta do homem do carrão, talvez o tivessem reconhecido, deveriam referir e trouxe-lhe um ramo de rosas e tudo... e meteram-se em casa... E deveriam interrogar-se quem será? o ex-marido, algum antigo namorado? quem?
Ana ria-se interiormente mas o sorriso transparecia. Lançou então: 'Já vos falei do meu irmão?' e reparou como elas se viraram num ápice e Ana pensou que elas sentiam que estava desvendado o segredo, ah afinal era o irmão... E Ana continuou: 'É professor universitário, está nos Estados Unidos, só cá vem nas férias' e elas arregalavam os olhos mas...afinal...? é ou não é...? e ela continuava 'e eu vou lá uma ou duas vezes por ano, estou a pensar ir lá para o mês que vem'. E não conseguiu esconder a vontade de rir, com a curiosidade baralhada que se espelhava, agora, no rosto das colegas ah, não é o irmão... mas então quem é...? o amante, mais que certo...
Mas onde a coragem para perguntar...?
Uma ainda arriscou: 'Veio mais tarde... Aconteceu-lhe alguma coisa?'.
Ana olhou-a nos olhos, depois olhou as outras e disse: 'Um grande amigo conseguiu descobrir a minha morada e apareceu para me fazer uma surpresa. Bem, descobriu é uma maneira de dizer. Parece que um ex-espião não só lhe enviava um resumo das notícias como pôs os ex-colegas a espiar-me.'
As mulheres olhavam de olhos arregalados. Não sabiam se haviam de acreditar pois Ana parecia falar a sério. Ana continuou: 'Não sei que raio de espiões são aqueles que, pagos por nós, andam para aí a coscuvilhar a vida dos outros, armados em detectives de meia tigela. Uma anedota estes serviços secretos.'
Mas depois achou que as colegas mereciam mais do que meias-palavras, do que brincadeirinhas, e acrescentou: 'Estou a brincar, enfim... acho eu. Não sei como é que ele me descobriu. Mas descobriu-me. Vim para cá, entre outras razões, também para me afastar dele e das confusões na minha vida das quais ele fez parte. Mas, tenho que vos confessar: gostei de o rever. Gostei que ele não tivesse obedecido à ordem que lhe dei por carta, quando para cá vim. Gosto de homens que não me obedecem.' E não disse mais nada, baixou os olhos, entregou-se ao bordado.
As mulheres perceberam que o assunto estava encerrado, não perguntaram mais nada. De resto, não estavam habituadas a histórias assim, nem sabiam como continuar a conversa com Ana. Haveriam depois, entre elas, de tentar perceber o que queria tudo aquilo dizer.
Nesse dia, depois de ter saído da oficina, de ter mudado de roupa, de ter feito os seus telefonemas, Ana fez a refeição do dia a contar com o almoço do dia seguinte mas, antes de jantar, saíu.
Foi com a roupa confortável com que estava em casa. Atravessou a vila e dirigiu-se à carpintaria. Se o carpinteiro não estivesse lá, bateria na porta ao lado, onde ele dormia.
Mas ele ainda lá estava, trabalhava sempre até tarde. Como de costume ouvia música e fumava.
Música, de novo, por favor
Ryuichi Sakamoto - Solitude
Ana entrou, ele continuou a trabalhar.
Ana começou então a falar: 'Daqui por duas semanas é o baile que estamos a organizar para recolher fundos para os miúdos com dificuldades em prosseguir os estudos. Preciso de um par e lembrei-me de si. Aceita?' e sorriu com vontade que ele aceitasse.
O carpinteiro olhou-a nos olhos: 'Não brinque comigo. Sou solteiro porque nunca me quis casar mas sou um homem igual aos outros. Não brinque comigo'
Ana não se admirou da reacção.
E continuou: 'A minha vida tem sido muito boa. Não me queixo de nada. Mas não suporto ter que dar explicações, não suporto fazer o que quer que seja apenas para estar de acordo com as convenções porque não quero saber de convenções. Fui tendo tudo aquilo a que me propunha até que cheguei a um ponto em que apenas me apetecia recomeçar, partir, de novo, do nada. Tive amores, tenho amores. Mas cansei-me, não quero dar explicações porque também não as peço.'
O carpinteiro tinha parado de trabalhar e ouvia-a. Ana continuou: 'Tenho saudades, claro que tenho. Mas não quero voltar à vida que tinha. Vim para aqui para espairecer, para arejar a cabeça, para fazer umas férias mas até sair de casa não sabia ao certo para onde iria. Como não me imagino estar sem nada que fazer, à última hora resolvi fazer umas férias diferentes, lembrei-me de vir até aqui, estar tranquila, bordar, trabalhar no meio de outras mulheres e estar numa casita alugada, simples. Mas comecei a gostar. Comecei aqui quase do zero, sozinha. E só não digo que comecei do zero porque tinha dinheiro para gastar. Mas gostei de arranjar uma casa e pô-la a meu gosto, gostei das pessoas. Sem querer, sem quase me dar conta, comecei a fazer aquilo a que estou habituada: a trabalhar, a dar ideias, a mover-me em equipa, a empreender. E a vila cativou-me, os miúdos, os professores, as mulheres da oficina, a modista, o rapaz das pinturas, o jardineiro. Você também. Gente tão boa, tão boa. Gosto de vocês. São gente aberta, gente franca. Tive que tomar uma série de providências lá, de onde vim, para poder estar aqui afastada. Mas resolvo muita coisa por mail e há os fins de semana e há a paciência das pessoas. Agora já não sei se quero voltar. Não sei mesmo. Mas hoje aconteceu uma coisa de manhã. E agora não sei mesmo o que fazer, nada é simples, nada, nada'.
E a voz era fraca, era uma Ana sem certezas, sozinha, insegura. O carpinteiro olhava-a com alguma surpresa. Depois quase com carinho.
E, então, disse: 'Está bem, pronto, vou'. Ana sorriu-lhe. Depois, quando ia a sair, o carpinteiro perguntou-lhe: 'E o que é que eu levo vestido? Não tenho roupa para coisas dessas'.
Ana riu: 'Nada que não se resolva, não é?'.
Ele abanou a cabeça, com um quase sorriso, esta mulher.... Depois ficou sério, já preocupado com a inesperada carga de trabalhos. E sério com o que lhe ia na alma.
No dia do baile estava irreconhecível. Elegante. Nervoso mas elegante. Toda a gente estava perplexa com o elegante par de Ana. O carpinteiro e Ana faziam um belo par. Ela bela, quase simples na sua elegância natural, ele alto, magro, altivo, sóbrio, muito bonito.
Mas, nessa noite, Ana sentia uma leve inquietação. Estava satisfeita com o sucesso que estava a ser o baile, mas parecia pressentir alguma coisa.
***
Relembro que, caso vos dê para ler esta história de carreirinha, poderão fazê-lo procurando 'Ana muda de vida' nas etiquetas ai ao lado, lá mais para baixo.
E caso também estejam para isso, gostaria de vos ver na praia, lá para as bandas do meu Ginjal e Lisboa. Hoje as minhas palavras mergulham num poema azul de Pedro Tamen e a música de Donizetti, imaginem, está a cargo de duas portuguesas.
****
E é isto, meus Caros. Como de costume já é tarde, já passa das 2 da manhã. Ponho-me a escrever e dá nisto, credo.
Desejo-vos uma quarta feira com surpresas boas, com alegrias inesperadas, se possível com abraços e beijos. E, se não for possível, procurem a beleza e a magia nos livros, nos filmes, na música, na natureza, onde calhar. Divirtam-se, sejam felizes.
A história adensa-se.
ResponderEliminarO meu olhar menos optimista estranha, contudo, a paz rural. Não sei se as pessoas são assim tão boas, desprovidas de preconceitos, de rejeição do diferente, ou da universal inveja. Talvez Ana tenha alguma tolerância por ser vista como uma forasteira de uma classe social outra, uma turista acidental com saber e meios.
Mas agora é que "meteu o pé na argola", se queria viver em paz, de bem com todos, com a privacidade intacta. Perdoar-lhe-ão o "meter-se" com um homem da vila, quiçá se um desprezador e pretendido de muitas...
Cara UJM:
ResponderEliminarAna perfeitamente integrada entretanto sem se aperceber foi construindo amarras.
E será que são doces amarras?
Parece estar a abrir a porta, da solidão, da alma do carpinteiro. Primeiro oferece-lhe poesia na tentativa de o transformar num carpinteiro poeta? Só “Ana” seria capaz disso!
Agora determinada, transforma-o num elegante e charmoso par. O que será que está a sentir? O que se seguirá mais?
A escolha de Ana parece ser difícil.
E tenha dias felizes
Abraço amigo da
Leanor formosa e segura
Olá Leitora de A Matéria dos Livros,
ResponderEliminarrecorde-se que Ana se está nas tintas para convenções.
Os meios pequenos são tramados, é um facto, e tudo se sabe, tudo se comenta. Mas tudo isso é para o lado em que Ana se deita melhor.
Imagino-a cumprimentando e sorrindo para as pessoas, absolutamente indiferente ao que digam ou deixem de dizer.
As pessoas geralmente censuram e comentam quem se põe a jeito. Ana não se põe (pelo menos, até ver).
Quanto a ela 'meter-se' com um homem da vila, imagino que isso desperte uma curiosidade que só visto, devem especular, imaginar o desfecho, etc. Mas, uma vez mais, é para o lado em que Ana se deita melhor.
Mas, de qualquer forma, cá para mim a expressão 'meter-se com' não entra no léxico de Ana.
Conversar com ele, visitá-lo, convidá-lo para irem ao baile, etc, parecem-me coisas normais entre pessoas normais. Se a 'mulherada' fica espicaçada, dirá Ana que isso é problema delas, não de Ana.
O relacionamento entre pessoas é feito de aproximações e recuos em diversas gradações e a mim (a a Ana também, certamente) é indiferente quem toma a iniciativa.
Mas estou muito curiosa com esta evolução. Só sei à medida que escrevo. Ana é independente de mim, age por si e eu vou sabendo aos poucos o que lhe vai na mente.
Mas esses inputs que hoje aqui me deixou já me estão a dar vontade de ir à luta (ou melhor, de deixar que Ana vá à luta...)
Um beijinho, Leitora.
Pois é, Leanor, formosa e segura,
ResponderEliminarComeço a escrever convencida que a 'coisa' está a ir num sentido mas, quando dou por mim, já aquela mulher determinada está a seguir outro rumo.
Aquele carpinteiro tem pinta, tem uma voz gutural, tem um rosto moreno com feições angulares, é alto e esguio, fala pouco mas fala bem, é culto, e muito artista, fala com devoção do veio da madeira e outros aspectos técnicos do género (...e não é que eu conheço um de verdade que é mesmo assim...?)
Acho que Ana simpatiza com ele, há ali afinidades, um certo gosto e respeito pela madeira, pelos trabalhos artesanais, pela arte feita com tempo.
Mas não sei se o que há ali é amizade e respeito ou se há mais alguma coisa.
Agora que Ana chegou ali cansada, saturada, aborrecida, e, aos poucos, se vão ambientando e criando laços, lá isso foi.
Até eu estou agora sem saber o rumo que a vida dela vai seguir.
Muito obrigada pelas suas palavras que 'espevitam' a minha vontade de escrever.
Dias felizes para si também, Leanor.
Amiga, querida Amiga:
ResponderEliminarSinto-me tão ingrata consigo! Não consigo coordenar as ideias, por isso não tenho feito comentários.
Sabe como eu gosto do que escreve, sabe como a entendo. Não fique zangada comigo. Logo que eu sinta forças, vou ler a História da Ana, O Ginjal e comento tudo, de uma vez só.
Tenho ouvido a música e tenho sentido a calma, que ela me dá. Donizetti, encanta-me.
Ler, é diferente. Tenho quase acabado, um livro da nossa Helena, e não consigo ler. Leio umas linhas, volto atrás, não sei o que li. Só consigo ler o "Cão como nós" do Alegre, "Os Bichos" do Torga. Esses, sinto-os, quase os sei de cor. Tenho uma torre de livros à espera de serem lidos, não consigo.
Pensei sempre que, iria sofrer muito, mas nunca tanto.
No meio de tudo, fomos hoje ao British, buscar o exame do meu marido e mostrá-lo à médica, e não foi nada de grave. Uma forte distensão muscular, mais nada, felizmente.
Desculpe, Amiga querida.
Isto irá passar. Ficam só as cicatrizes a juntar às muitas, que já marcam a gaivota Mary.
Espere por mim e não me esqueça, não?
Eu volto de asas abertas, écharpe negra, voando entre Lisboa e o Ginjal.
Beijinhos
Mary
Olá gaivota em terra Mary,
ResponderEliminarPercebo bem o desgosto mas tente animar-se Mary. E os patinhos? O seu marido ainda não está bom para os passeios? A ver, se aos poucos, começa a retomar o ritmo habitual. Ar livre, passeios, e música e dormir e cabeça descansada e tente distrair-se.
Pensar ou ler coisas tristes, não...
Anda aqui a 'minha Ana', ao princípio tão bem comportadinha e agora já a alimentar falatório, e a minha amiga não diz nada...? Fazem-me falta as suas diabruras, ou as suas hipóteses de solução...
Mas está bem... eu espero. Ponha-se lá animada e bem disposta para aparecer aqui toda levada da breca...!
E nada de pensar nas cicatrizes nem em nada de coisas tristes, só coisas boas!
As completas melhoras do seu marido para ele a levar a passear e um beijinho para si, Mary!