Música, por favor
Hoje ia no carro quando um rasgo de luz atravessou o céu e, logo de seguida, um violento trovão estremeceu a estrada e o ar quase crepitou.
Tempestade - Imagem de origem desconhecida (obtida via Google) |
Pensei se estaria em segurança dentro do carro mas, que remédio, lá me mantive até chegar ao meu destino. A chuva tombava forte e o dia estava escuro e eu estranhei porque já quase me tinha esquecido que há dias assim, sombrios, de negro assombro. Depois, já a salvo na torre de vidro transparente em que diariamente me escondo, continuei a observar os raios brancos que atravessavam o horizonte e iluminavam a paisagem urbana que me rodeia mas já quase não ouvia os trovões pois a torre é insonorizada, ali não entram os sons da rua nem o ar fresco dos jardins. Ali, rodeada de vidro, nunca ouço os pássaros, nunca sinto o cheiro fresco da relva cortada. Ali a temperatura é condicionada, o ar circula através de potentes aparelhos e a qualidade do ar é inspeccionada regularmente. Tudo é eficiente, asséptico, transparente, optimizado. Se calhar hoje até cheirava a terra molhada e tanto que eu gosto disso mas não o consegui sentir.
Quando saí chovia ainda muito, já era de noite, continuava a haver relâmpagos, a estrada estava congestionada, vários pequenos acidentes, e eu, fechada dentro do carro, no meio de outros carros, aguardava pacientemente, ouvindo a música da Antena 2.
Gosto de ouvir a chuva. Fazia falta esta água fresca. Agora que aqui estou a escrever, já passa da uma da manhã, ouço a chuva e sinto-me acompanhada. Aqui, na minha casa, ouço os sons da rua e isso é muito bom.
Há pouco estive a folhear um livro engraçado que aqui tenho, 'Seduction, a celebration of sensual style' de Caroline Cox. É um livro sobre a sedução no feminino, tema que me interessa.
Ava Gardner - sem dúvida, uma grande sedutora |
Quando andei a aprender Grafologia, o nosso Mestre, o Dr. Alberto Vaz da Silva, ensinou que o f é uma das letras mais reveladoras e mostrou várias formas de o escrever e o que isso significava. No final era costume muita gente ir colocar questões mas eu nunca tive esse hábito, nem quando andava na escola. Mas aquilo do f tinha-me deixado curiosa porque o meu f não era bem nenhum dos exemplificados. E então escrevi um f e fui mostrar ao Mestre. A sala estava sempre à meia luz, ele estava sempre rodeado de gente e nem olhou para mim, olhou logo para o papel e disse de imediato qualquer coisa como isto 'é o f de quem gosta de dar e receber' e eu, sem querer, repeti 'de quem gosta de dar e receber?' e ele, concluiu, 'um f de uma pessoa sedutora'. Eu, rodeada de outras pessoas, perante tão inesperada interpretação, murmurei um obrigada e senti que soou quase envergonhado, dobrei o papel e escapei-me rapidamente dali para fora, um bocado atrapalhada (ou talvez nem apenas isso, talvez essencialmente surpreendida que fosse coisa que se pudesse ver no desenho de uma simples letra).
Madonna por Annie Leibovitz |
Mas, depois disso, tenho pensado no assunto. O que é a sedução? É, então, gostar de dar e receber? O que é uma mulher sedutora? E a sedução é coisa que se esvaia com a idade? E hoje, ao folhear este livro, apetecia-me discorrer sobre isso.
Picasso - um grande sedutor, sedutor até ao fim |
Que não tem a ver com beleza física, acho que é certo. Tenho conhecido mulheres e homens de uma beleza quase perfeita e que não têm pingo de charme. Tenho conhecido homens e mulheres quase feios, de feições imperfeitas, fisicamente nada de especial e que, no entanto, destilam sedução. Acho que tem essencialmente a ver com a inteligência, com o olhar, com as palavras que se dizem ou melhor, com as meias palavras que se insinuam, uma malícia vagamente entrevista. Tem que ser uma coisa espontânea, involuntária. A coisa mais ridícula que existe é uma pessoa querer armar-se em charmosa, chega a ser patético. Mas sedução e charme são a mesma coisa? Charme não é essencialmente encanto e encanto não é por vezes distinto de sedução?
Cate Blanchett por Patrick Demarchelier |
Mas, agora, aqui sossegada nesta sala quase às escuras, a ouvir a chuva a cair na varanda, já não me apetece escrever sobre isso. Estou preguiçosa, ou talvez apenas cansada porque já passa agora das duas, apetece-me parar de escrever, daqui a nada já tenho que estar a pé.
Mas não sem antes passar um grande momento de sedução. Educativo.
Mas não sem antes passar um grande momento de sedução. Educativo.
Laureen Bacall, uma grande sedutora, pergunta a Humphrey Bogart (que também não lhe fica atrás) se ele sabe assobiar
e reparem no tom, no sorriso, na expressão corporal
««««»»»»
[Hoje no Ginjal temos Pedro Tamen que traz túmidos frutos, coisa de que não se pode prescindir. Para o acompanhar, Debussy inventou um fauno que aparece lá mais para o meio dia.]
«»«»
E já é sexta feira e já veio a chuva, só boas notícias. Vamos, pois, festejar e passar um belo dia.
Volto aqui para vos pedir, Caros Leitores, que entrem nos comentários aqui abaixo, especialmente para lerem o inspirado (como sempre!) poema da Leitora Era uma Vez. Chuva em noite de sedução.
Volto aqui para vos pedir, Caros Leitores, que entrem nos comentários aqui abaixo, especialmente para lerem o inspirado (como sempre!) poema da Leitora Era uma Vez. Chuva em noite de sedução.
Jeitinho amiga:
ResponderEliminarAdorei deitar-me cedo, ouvir a chuva cair, sentir a trovoada. Tudo coisas que geralmente, não aprecio muito, mas de que já sentia falta. Como de costume, a ideia de que há gente que há gente sem cama, nem casa, entristeceu-me.
Madame Sarkozy canta bem, mas não me alegra. O marido canta a canção do bandido, menos ainda.
Bogart, um dos meus platónicos amores, talvez o maior, a seguir a Paul Newman, Bacall, a mulher que desejei ser. Até o cabelo lhe imitava.
Ava Gardner, "O mais belo animal do mundo", como lhe chamou Hemingway (outro sedutor).
Picasso, qual o segredo de um homem amacacado, para levar as mulheres à loucura?
Voltando aos Bogart, a cena do assobio, deve ser uma das cenas de antologia no cinema.
O céu está cinzento, eu "Peço a Deus a minha gota de água" (Florbela Espanca- Árvores do Alentejo), o canito tem que ir de novo à pica, o marido foi ao supermercado. É um querido, porque eu detesto fazer compras em supermercados). Eu vou fazer os trabalhinhos domésticos, fumar um cigarrinho, fazer o almoço, por esta ordem.
Bom fim de semana e beijinhos
Mary
Cara UJM:
ResponderEliminarAcaba de me chegar, por mão amiga, este poema de Bénédit Houart, que junto à sua sedução feminina.
Amoleceram-me o palato
as suas palavras, rapariga
ainda ontem meti valium álcool haldol e
mais o raio que o parta, mas nada me
pôs assim em ponto de rebuçado
Bénédicte Houart in Vida: variações II, Cotovia, Lisboa, 2011
E tenha um bom fim de semana chuviscado
Leanor pela verdurarnasf
Temas sedutores,os desta entrada de hoje. A tempestade, a chuva, a sedução - gosto de todos, se não implicarem uma pneumonia. A ideia de que a sedução é dar e receber é supreendente e muito interessante.
ResponderEliminarBom resto de dia
Abençoada chuva...
ResponderEliminaraté o céu se rasgou
em farrapos dourados
como artifício de festa
Sagrada chuva
que matas a nossa sede e a sede da terra ressequida
pisada
dorida
culpada como uma mãe desesperada
sem leite
sem mel
sem vida
Adorada chuva
inunda a nossa tristeza
de tanto desencanto
sacia esta nossa saudade
de terra com cheiro a pranto
este bendito e doce cheiro a terra molhada
(Até a pouca fé dos homens
entra em procissão)
Chuva
Vaidosa chuva
que tanto ris de nós
em cruel e perigosa SEDUÇÃO
Grande Mary,
ResponderEliminarOntem também me soube mesmo bem estar aqui a ouvir a chuva. E também sempre me acontece pensar que, para nós, é uma coisa boa mas que, para quem vive em barracas ou casas de má construção ou quem vive na rua, deve ser uma aflição.
Bogart, que não era especialmente bonito, era um malandreco, um sedutor, tinha uma forma especial de encantar as mulheres. A mulher era bonita, sexy e tinha de facto um belo cabelo. Ainda hoje gosto do cabelo dela.
E que inspirada anda, Mary, até a Florbela lhe ocorre. Gosto tanto de ler o que escreve, a sua naturalidade fantástica.
E espero que o almocinho estivesse bom. Eu, almocinhos em casa, só ao fim de semana. De resto é sempre em restaurantes, já estou tão farta, se soubesse o sacrifício que faço para escolher, já nada daquilo me apetece.
Quanto ao cigarrinho, aí, já estou noutra. Há uns quantos anos deixei de fumar e nunca mais lhes toquei. Não me tornei fundamentalista anti-tabágica, longe disso, mas, para mim, já é coisa do passado.
E trabalhinhos domésticos... bem, aí, a ver se amanhã, em alta velocidade, consigo despachar umas quantas coisas na parte da manhã para ver se consigo ter a tarde para descansar.
E bom fim de semana para si também, Mary!
Cara Leanor andando pela verdura,
ResponderEliminarAs coisas que eu aprendo com este meu blogue. Não apenas as que descubro por mim como as que os meus amigos me deixam e que enriquecem a leitura de todos quantos por aqui passam. Agradeço muito, mesmo.
Não conhecia sequer Bénédicte Houart. Agora já a 'googlei' e já li um pouco sobre ela.
Esse poema revela um delicioso sentido de humor e vem mesmo a calhar aqui. Obrigada.
Um bom fim de semana também para si, Leanor.
Olá, Leitora de A Matéria dos Livros,
ResponderEliminarTem graça o que escreveu, isso de a tempestade, a chuva e a sedução serem boas se não causarem uma pneumonia...!
Bem, eu acho que pode, de facto, haver esse risco... (há que ter cuidado com o que se faz à chuva, no meio de uma tempestade....)
É de facto interessante a ideia de seduzir poder ser sinónimo de gostar de dar e receber. Tenho tentado perceber e acho que sim, que pode ser.
Já li o seu post "´femina, feminae' ou o espelho da Górgona", com uma bela imagem e um belo poema. As suas escolhas são sempre sofisticadas, requintadas, pouco óbvias e, por isso mesmo, interessantíssimas.
Um bom fim de semana, leitora!
Erinha,
ResponderEliminarConte como é. Pensa, escreve primeiro num papel, pensa, emenda? Ou é logo de seguida no computador? Sai assim direitinho logo quase à primeira? as palavras descem, poéticas, alinhadas e, no fim, o poema está feito?
Fico sempre espantada com a aparente facilidade com que a poesia lhe nasce.
Tal como lhe pedi ali no Ginjal, peço agora o mesmo: vá guardando no seu computador tudo o que escreve, que já deve ter material mais que suficiente para um livro.
Vou ali ao texto fazer referência ao poema.
Um beijinho, Erinha, e um bom fim de semana.
Cara Jeitinho
ResponderEliminarCorre como um rio. Depois desagua.
Volto atrás. Corrijo uma ou duas pedras que ficaram nas margens.É tudo.
Mas a responsabilidade é sobretudo de quem, com tanto talento, me provoca...
E eu, sou muito muito agradecida por isso.
Óptimo fim de semana!
Erinha,
ResponderEliminarQue bela maneira de descrever a poesia a nascer, como um rio - que bonito.
São estes milagres da internet: a interacção possível entre pessoas que nunca se viram, que apenas se conhecem daqui. É uma coisa curiosa, isto, não é?
Um beijinho de agradecimento.