Moro num prédio de vários andares.
Quando resolvemos morar num prédio, sabíamos, à partida que teríamos que obedecer a regras comuns, de entre as quais se salienta o pagamento do condomínio.
Mas o pagamento do condomínio não é a única regra comum. Alguns procedimentos de urbanidade também são relevantes.
Dou um exemplo.
Para o prédio da minha mãe foi morar, há uns anos, um casal de etnia cigana com crianças (e um Mercedes topo de gama). Nada a dizer só por serem ciganos. As traseiras do prédio dão para um passeio que confina do outro lado com uma zona ajardinada. Pois, começou a ser comum que, quer o passeio, quer o jardim aparecessem pejados de sacos com lixo, restos das mais variadas coisas, brinquedos partidos, o que calhava. Suspeitou-se mas, pouco depois, confirmou-se. Eram os novos vizinhos que tinham o hábito de atirar o lixo e tudo o que não queriam pela janela.
Incomodados com a situação, os vizinhos falaram entre si e resolveram que seria a administração do prédio a contactá-los e a dizer que tal não era admissível. Eles estranharam o pedido mas aceitaram e a coisa normalizou-se.
Até que, um certo dia, grande barulheira na escada, barulho de obras. Quando os vizinhos foram ver o que se passava, nem queriam acreditar. Eram eles de novo: tinham montado dois portões na escada, um no lance que descia, outro no que subia. Explicaram depois que as crianças brincavam ali no patamar da escada e a ideia era que estivessem mais resguardados e evitar que caíssem.
Nova reunião com a administração do prédio que, depois, foi ter com eles dizendo que teriam que remover os portões porque a escada é zona de acesso que tem que estar sempre desbloqueada e que, além disso é zona comum, nunca zona na qual alguém pudesse reservar para seu uso exclusivo.
Agora as coisas parecem estar de novo normalizadas, apesar de, por vezes, acontecerem algumas coisas excêntricas.
Mas trata-se de questões culturais. Para eles tudo o que têm feito é coisa normal, não o fazem para afrontar ninguém e até acatam bem as 'reprimendas'.
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Para se habitar um espaço comum tem que se abdicar de algumas liberdades individuais e há que alinhar por comportamentos que não belisquem os vizinhos.
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Já eu, no meu prédio, tenho agora, em dois andares, vizinhos chineses. São de uma delicadeza que não dá para explicar. Sorriem imenso, cumprimentam-nos com afabilidade, já falam muita coisa em português, as crianças cumprimentam-nos efusivamente e sorriem permanentemente. Uma outra vizinha, pessoa de alguma idade, dizia-me deles, no outro dia, ‘e que limpos que são’. Ambos os casais estão à frente (serão donos?) de grandes estabelecimentos chineses da cidade. Trabalham todos os dias (sábados e domingos incluídos) de manhã à noite e, apesar disso, quando nos cruzamos no elevador, vêm sorridentes, ar fresco. Outros hábitos.
As crianças andam no melhor colégio da zona, e lá vão de bibe e mochila, totalmente integrados. O administrador do prédio dizia-me no outro dia que, nas contas do condomínio, são certinhos como relógios suíços.
Em contrapartida tenho um vizinho que não paga o condomínio já vai para 2 anos. Também não comparticipou nas despesas extraordinárias relativas a grandes arranjos feitos o ano passado e que incluíram limpeza de paredes exteriores, arranjo dos elevadores, impermeabilização da garagem, etc, uma pipa de massa. É excelente na argumentação e a profissão ajuda-o nisso e arranjou para lá uma questão, que ninguém já sabe qual é, dado que, tudo o que reivindicava, já foi satisfeito e continua sem pagar. É um sarilho que ali está, uma dívida já enorme.
Se ele não quer pagar a verba mensal, não se antevê que vá pagar a dívida acumulada que é da ordem dos milhares de euros.
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Lembrei-me disto a propósito do euro, da crise europeia, do caos que para aí anda no ar.
A união europeia formou-se assim: tudo ao molho e fé em deus. Gente com culturas distintas, com economias em estágios distintos, tudo se enfiou lá para dentro. E agora deu no que deu.
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Voltemos ao meu prédio e ao caso bicudo e verídico do meu vizinho que não paga o que deve.
1. Suponhamos que em reunião de condóminos se decide perdoar-lhe metade da dívida mas na condição de ele pagar daqui para a frente e (intuindo nós que ele não é bom a gerir dinheiros), na condição também de ele aceitar um plano de contenção dentro da sua própria casa de forma a ter dinheiro para pagar o condomínio, plano esse que definimos que passará por se habituarem a comer apenas sopa (e não carne, nem peixe), de passarem a andar a pé em vez de usarem carro, de passarem a lavar roupa à mão em vez de usarem máquina e outras medidas do género.
Vamos supor que ele diz que sim, que remédio, mas que, já agora, o deixem consultar a família pois as medidas afectarão todo o agregado familiar e é bom que se pronunciem antes, para não fazerem contra-vapor, depois.
----> Poderemos dizer, ‘mas o tipo é doido? Então estamos a perdoar-lhe metade da dívida e ainda se põe com esquisitices…’ mas, se pensarmos bem, também temos que reconhecer que, se calhar o sujeito não tem é condições de ali continuar porque, se tem problemas financeiros sérios, cumpre agora mas não tarda estará outra vez a incumprir. Ou poderemos pensar que ele reúne a família e que chegam à conclusão que vão é vender a casa, pagar as dívidas e, com o dinheiro que sobrar, compram outra mais pequena e passam a viver segundo as suas possibilidades.
Parece legítimo, não é? Porque achamos então tão escabroso que ele diga que em princípio sim mas que o deixem consultar primeiro a família?
2. Mas, e continuemos no campo das hipóteses, suponhamos que no meu prédio não há administração de condomínio capaz, que cada um resolve as coisas como entende e que, às tantas, a vizinha gorda do 3º andar resolve pôr-se ela a mandar no prédio todo. Que, às tantas, para não parecer que é uma mandona autoritária por conta própria, pega no papagaio do 5º andar e com ele ao ombro, passa a ditar sentenças para toda a gente.
Gostaríamos disso?
Suponhamos que às tantas, como sempre de papagaio ao ombro, faz uma circular para todos os andares dizendo que resolveu perdoar metade da dívida do outro, do incumpridor, desde que ele, a mulher e os filhos passem a subir pelas escadas, a andar descalços para não sujarem a escada e que, das 18 às 22 vão para casa dela fazer limpeza, servir-lhes o jantar e coisa e tal.
Suponhamos ainda que, face a isso, os membros da família do vizinho incumpridor (pessoas simpáticas, cordatas, uma senhora simples e afável, uns miúdos impecáveis - e que sabemos nós acerca das dificuldades deles?), fulos da vida com a gorda do 3º, resolvem vir protestar e dizer que não são criados de ninguém, muito menos da gorda do papagaio e que não sabem se aceitam as condições, que estão a passar um mau bocado, que não têm dinheiro, que precisam de ajuda mas que não aceitam ser humilhados e tratados com indignidade.
3. Suponhamos ainda que na reunião de condóminos, se decide constituir um fundo para cobrir buracos como este ou outros em que mais condóminos deixem de pagar. Aparentemente parece boa ideia. Mas quem é que põe dinheiro nesse fundo? Uns dizem que não podem, outros dizem que não querem. E imaginemos que, então, eis que os vizinhos chineses, simpatiquíssimos, cheios de liquidez, se propõem cobrir parte da dívida e assegurar a alavancagem do dito fundo - mas que apenas o farão mediante determinadas condições.
E dizem: 'digam quanto precisam que nós asseguramos' mas...'mas apenas se passarem a vestir a roupa que se vende nas nossas lojas, aquelas blusinhas lindas cheias de electricidade estática que dão estalinhos quando se despem, aqueles sapatinhos brilhantes, com fivelas e saltinhos à maneira; se passarem a comprar os bibelots que se vendem nas nossas lojas, Nossas Senhoras fluorescentes, fontanários com luzinhas lilazes; se passarem a comer todos os dias nos nossos restaurantes; e os nossos detergentes, os nosso perfumes, os nossos tapetes e cortinas'.
4. Para cúmulo, suponham que o administrador do prédio do lado, prédio esse também cheio de problemas e de dívidas, também já a ser financiado por chineses que impõem igualmente as suas condições e, ainda por cima, com grande contestação entre condóminos contra ele, um mulato charmoso já ligeiramente grisalho, vendo que não há rei nem roque no meu prédio e vendo a barafunda que para ali vai, resolve informar-nos que não acha nada bem o que se está a passar no nosso prédio, que quer que nos organizemos rapidamente antes que a crise contagie o prédio dele e, se põe, também ele, a dar palpites.
(Achamos que só pode estar na brincadeira, ele que está tão mal ou pior que nós, armado em rei do pedaço, disfarçando o nervosismo pela sua própria situação, a dar palpites como se fosse o maior - mas, atordoados como andamos, nem nos ocorre dizer-lhe que ponha a casa dele em ordem antes de vir pressionar-nos)
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E nós todos a olharmos uns para os outros, sem que se perceba como se chegou a esta balbúrdia e sem vermos como vamos sair desta, uma vez que não há quem mande, quem resolva, quem trace um caminho, e já toda a gente discute com toda a gente, uns atacam o incumpridor, outros enfurecem-se porque ele quer o compromisso da família, outros dizem que a culpa é dos ciganos do prédio da minha mãe, outros acusam a gorda, outros o mulato, outros o chinês, e há ainda quem sustente que a culpa é do papagaio. Consta até que no Avante! já saíu um artigo a dizer que a culpa é do Miguel Relvas porque é maçon e do José Rodrigues dos Santos porque diz que Jesus Cristo é judeu.
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Seria lindo, não seria?
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Mas não é isto que está a acontecer na UE, sem liderança e entregue à prepotência míope da Merkel com o seu pequeno Nico ao ombro, com a Grécia entregue à pobreza, à humilhação, com os gregos todos desavindos, de cabeça perdida, à mercê de qualquer um que queira impor o que quer que seja, com Papandreou, vergado, a ter que recuar no referendo, humilhando-se perante toda a gente, com Obama a extravasar e dar palpites UE, com a China a querer aplicar a sua liquidez mas desde que façamos conforme eles querem (nomeadamente, que escancaremos incondicionalmente todas as portas aos produtos deles)?
No meio disto apontamos o dedo a quem?
Tenhamos abertura de espírito, lucidez, sentido crítico e muita calma - não sabemos como serão os tempos que aí vêm.
Tomara que surja uma liderança forte que una a Europa, que mobilize os povos em torno de um projecto comum, democrático, humanista, que afirme a Europa como um par entre pares, uma Europa que não se avilte, não se humilhe, não capitule. Tomara, meus amigos.
Brilhante!!!
ResponderEliminarMt complicado tal qual a economia europeia, mas mt divertido e imaginativo.
ResponderEliminarContinue assim tão lúcida e bom fim de semana.
abraço
Delicioso. Muito bem feitas as analogias. Muito preocupante. Fui ler o outro texto. Adorei. Claro que os tempos foram outros e nos tornavam mais pragmáticas. E como ainda não havia a possibilidade de "divórcio" casando pela igreja, optei pelo casamento civil, não fosse o diabo tecê-las. Mas tive um dia bonito e uma grande festa. Muita música, muita dança. Afinal, não passávamos de 2 miúdos que adoravam dançar juntos. E um dia isso acabou. Mas produzimos uma filha que é um ser excelente, e uma pessoa que me enche de orgulho por tudo o que tem feito e conseguido na sua vida. Pergunto-me muitas vezes, a quem é que ela saiu, assim. Mais tarde, voltei a casar,numa cerimónia simples, e de tailleur cor de pêssego. Nunca vesti um vestido de noiva, e hoje olhando para trás, tenho pena. Parece que me faltou , isso mesmo. E por tal facto, talvez, me pareceu tão importante que a minha filha o tivesse feito e me comoveu tanto. Ainda recordo, na igreja,numa cerimónia que não tinha fim, do meu irmão mais velho, que já se foi embora, por detrás de mim, colocando-me a sua mão no meu ombro e tentando acalmar aquele estremecer comovido em que me encontrava. Estas recordações ficam para sempre.
ResponderEliminarTBM
Ó jeito Manso, este seu post vale por uma aula minha de Economia e vou leva-lo para mostrar aos discentes - há longos anos de ensino universitário que insisto nisto - que a gestão de uma empresa ou de um país são muito semelhantes à gestão do quotidiano familiar.
ResponderEliminarClaro que os economistas gostam de equações, correlações e outras tantas "ões", que dão às suas análises o tom da especialidade.
Mas isso é outra "estória"...
Caro Anónimo,
ResponderEliminarSoube-me muito bem ler a sua exlamação. Muito obrigada. É bom ter feedback e, tanto mais, quando é assim, tão simpático.
Volte.
Obrigada, Rosa Amarela,
ResponderEliminarEstá tudo uma complicação - casa onde não há pão, já se sabe como é...
Mas vamos entrar no fim de semana e, tem toda a razão, vamos gozá-lo bem...!
Divirta-se!
TBM,
ResponderEliminarGostei de ler as suas lembranças do seu dia, dois miúdos que gostavam de dançar.
O meu miúdo era e ainda é pé de chumbo - o dia foi óptimo mas, se dancei, não deve ter sido com ele... Mas tem outros predicados que compensam essa grave lacuna.
Mas o casamento dos nossos filhos é sempre uma festa com uma magia especial (e, no caso das meninas, todas vestidinhas de noiva, é uma alegria enorme).
Quanto ao post de hoje, agradeço as suas palavras simpáticas. este foi um texto que me deu prazer escrever, acho que a analogia me saíu bem.
Bom fim de semana, TBM!
Olá Helena,
ResponderEliminarMuito obrigada! Pode usar o texto à vontade, onde muito bem entender.
Eu, por formação, sou grande defensora da utilidade de modelos, de estudos de tendências e correlações; sou grande defensora de que não se tomem decisões sem estudar previamente o respectivo impacto; sou defensora que a demografia, a estatística e as probabilidades explicam e sustentam muito do que se passa; sou defensora que se façam estudos de rentabilidades, que se avaliem alternativas de forma económica e financeira exaustiva, etc, etc - mas sou acérrima defensora que, antes de se partir para a abstração dos modelos e dos números, se perceba o b-a-ba da coisa.
Se não se compreende de forma muito directa, muito comezinha as coisas então é porque as coisas ainda não foram apreendidas.
Talvez por perceber a vantagem de modelos complexos, sou grande admiradora das coisas singelas, dos raciocínios límpidos, sem efabulações, pão-pão, queijo-queijo.
Defendo sempre que primeiro temos que ser capazes de apreender o filme todo, em landscape, e só depois começar a fazer zoom sobre as diversas variáveis.
Além disso, convém que estejamos sempre atentos para perceber a relação causal entre as variáveis: qual influencia qual. Tenhamos também em atenção que na relação causa-efeito o efeito pode despoletar outra acção, ou seja o efeito tornar-se uma causa que vai desencadear outro efeito.
(Mais coisa menos coisa, foi este o tema do estudo que este ano foi 'nobelizado' - e, sobre isto, li o que escreveu e o que explicou na Troika de Ideias).
Mas, quero eu dizer com isto, que não podemos fazer leituras simplistas. Temos que ter um olhar compreensivo, perspectivado, (e tolerante) sobre o que nos rodeia.
E, então, depois de tudo bem percebidinho, transformar em conceitos simples.
Eu acho que quem se encarniça muito apontando o dedo a um único culpado, ou quem se embrenha em muita conversa 'científica', quem sabe de tudo e o expõe com muitas certezas e muita erudição, geralmente é alguém muito 'verdinho', ou alguém a armar 'ao pingarelho', ou muito tontinho. E as televisões e os partidos estão cheios de gente assim - e a gente vê-os e topa-os à légua.
Deve ser por isso que gosto de ler o que a Helena escreve: fala de forma simples de assuntos que são complexos, não é maniqueísta, mostra que tem dúvidas e perplexidades e isso revela que tem uma compreensão sedimentada do mundo.
Por isso, por a admirar, me soube tão bem ler o seu elogio - agradeço, Helena, as suas palavras. São um incentivo.
Cara UJM,
ResponderEliminarNão é a primeira vez que passo por cá, mas é a primeira que aqui comento.
Antes de mais, um enorme obrigado pelas sucessivas gargalhadas que este seu post me provocou - no bom sentido, claro. No seu exemplo, falta apenas realçar que todas as famílias de todas as frações de todos os prédios fazem, ou esperam fazer, ou já fizeram, negócio entre si, com ou sem o conhecimento dos vários condomínios, pelo que, mesmo não instituicionalizada a rede, ela existe e todos têm obrigação de saber que se um deles foi fraudulento e opaco uma vez, vai gerar desconfiança a todos os outros por muitas vezes. E se alguém achar que não tem nada a ver com a embrulhada, deveria, em vez de se desresponsabilizar, seguir o seu próprio caminho fora da "rede", seguindo a velha máxima "quem está mal que se mude", isto é, seja consequente!
Comprimentos,
Paulo
Caro Paulo que gosta de olhar o céu,
ResponderEliminarNo meu prédio tenho mesmo um vizinho com uma dívida enorme, que deixou de pagar a mensalidade e por causa de quem já muitas reuniões (infrutíferas) se fizeram. Tenho também vizinhos chineses (ainda há pouco, ao entrar no prédio, uma ficou a segurar-me a porta, coisa já rara). E tem razão já muitas tentativas, a dois ou a três, se tentaram engendrar para resolver o caso bicudo da dívida. Claro que o resto são suposições para ilustrar a situação europeia.
Mas concordo, em absoluto, consigo - nesta altura não dá para apontar o dedo a um em particular e dizer que nós próprios não temos nda a ver com o assunto. De uma forma ou de outra, cada um na sua maior ou menor dimensão, contribuíu para este ridículo desnorte.
Vá passando (não se fique apenas pelos adeuses gregos...).
Bom fim de semana!