quarta-feira, outubro 12, 2011

Eu, ex-musa, me confesso


Uma vez, no século passado, houve um poeta que amava a minha farta cabeleira, amava as minhas mãos pequenas e dizia que, ao morrer, as queria ter junto a si, amava o meu corpo que dizia polido, amava o meu perfil e via-me como uma deusa grega, amava-me acima de tudo, desejava-me como se desejam as mulheres muito amadas, como se desejam os amores inacessíveis.


Eu era a sua musa, a sua esplêndida arqueira, a sua deusa, a sua terna amada e fez poemas e poemas e poemas e, como também era músico, fez canções e canções e canções e, como também era cantor, cantava para mim, de olhos fechados, e o sentimento era profundo e ecoava na sua voz amantíssima ou escorria-lhe pelas mãos que tocavam piano ou viola ou que escreviam no papel.

As pessoas invejavam-me, mas uma inveja positiva, porque amor assim era difícil de encontrar e ele cantava-o aos sete ventos.


Quando ele, em público (e estavam sempre a pedir-lhe que o fizesse), pegava na viola ou se sentava ao piano, fechando os olhos, deslizando os longos dedos pelas cordas ou pelas teclas, e começava a cantar belas canções de amor, as pessoas olhavam para mim, com um sorriso pasmado, de quem tem a oportunidade pouco frequente de contemplar directamente, em tempo real, o objecto de tão raro amor.

Era um amor eterno o que ele me confessava, não se imaginava a viver com nenhuma outra mulher, na vida dele mais nenhuma outra poderia alguma vez ocupar um lugar assim no seu coração, e, sem que eu o pedisse, jurava-me fidelidade eterna.

Eu que amo as palavras e, em particular, a poesia, amava as suas palavras, a sua poesia. E amava a magnífica voz que dava corpo às suas belas palavras. Nas suas poesias ou nas suas canções era sempre eu que ali estava – a minha boca, o meu olhar, o meu sorriso, todo o meu corpo, o meu cabelo tantas vezes referido, o meu desapego, às vezes a minha rudeza, a minha impetuosidade, a minha alegria e irreverência, a minha bravura, as nossas petites histoires, a nossa história, o tanto que teve que lutar por mim, o nosso primeiro beijo e os que se seguiram, o amor intenso, o seu desejo, a seda, a renda interior, o murmurar do corpo rente ao coração, o amor para sempre, para sempre.

E, no entanto, tanto amor a mim pesava-me. Não queria fazer projectos para a eternidade, não queria ser vista como uma deusa, não me sentia a divindade que ele via, sempre me achei uma pessoa comum. Não queria ter tanta importância na vida de uma pessoa, não queria ser a própria vida de alguém que não eu.


E, por isso, qualquer coisa em mim, quase até inconscientemente, guardava uma distância dessa tão desbragada paixão. Ele sentia essa não entrega e isso doía-lhe e daí nasciam mais poemas, mais canções e eu, sem querer que toda a sua vida se construísse em torno de mim, cada vez mais a tentar evadir-me dessa maravilhosa teia de amor.

Até que um dia me cruzei com um absoluto desconhecido com andar de modelo ou de atleta e rosto de Jesus Cristo, que pousou em mim um longo e carnal olhar.

No dia seguinte, franca como sou, com a crueldade tantas vezes associada à franqueza, comuniquei ao poeta, ‘Ontem cruzei-me com o homem da minha vida’. Incompreensão da parte dele e, sobretudo, incerteza, inquietação, medo, tristeza, muita tristeza.

Ainda nos mantivemos juntos por cerca de um pouco mais de um ano, o tempo para que eu e o desconhecido nos voltássemos a cruzar casualmente. Pelo meio, sem saber quem ele era, ainda o vi de longe uma ou outra vez, rodeado de entusiasmadas exemplares do sexo feminino e, até, uma conhecida minha me descreveu o romance que estava a ter com alguém que a trazia fascinada e que, pela descrição, intuí que fosse com ele.

Nada disso me afectou minimamente. Era como se fossem episódios irrelevantes para a história, a qual começaria de facto quando eu entrasse nela.

Até àquele dia em que nos voltámos a cruzar. A intensidade do olhar foi a mesma e eu não tive como evitar dirigir-me a ele.


Quando falou, o desconhecido, pessoa de poucas palavras, mais dado à acção que à conversa, na leitura mais dado à prosa que à poesia, disse que não acreditava em amores eternos, apenas os do próprio dia. No primeiro instante, eu, habituada a anos de amor eterno, estranhei a precariedade da oferta. Mas foi apenas uma breve hesitação pois, pouco tempo decorrido, no meu íntimo senti que essas eram, para mim, as palavras certas. Fiquei com ele.
 
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Para esta volta pela memória escolhi umas fotografias que fiz, no sábado passado, às montras dos antiquários da Rua do Alecrim.
 
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8 comentários:

  1. Com o seu "Jeito manso", descreveu aquilo que, muitas mulheres sentiram.
    Sei o que isso é. É bom, ao principio, sentirmos-nos adoradas, únicas. Depois vem o cansaço. Muita adoração sufoca, faz-nos sentir coisas, faz-nos sentir presas da beleza efémera. Queremos ser "A Mulher", não a Deusa.
    Gostei da seu jeito manso de contar. Vou ver mais e, vou segui-la.
    Abraço
    Maria

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  2. ERA UMA VEZoutubro 12, 2011

    Não, hoje vou mesmo ficar por aqui porque tenho um FILME para ver e rever...
    Está-se bem.
    Não tenho pressa.

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  3. Jeito Manso
    Amores desses só no século passado.
    Agora têm todos prazos de validade. Ultrapassado este, há que revalidar.
    Mas parece que isso não constitui grande preocupação...

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  4. Helena,

    Acho que os amores não são datáveis - nem os amores imensos, românticos, nem os mais terrenos. Os que eu vivi acho que poderiam ter nascido hoje, iguais na forma, iguais na qualidade.

    E vivo um grande amor, agora no século XXI.

    Mudam as modas, mudam as circunstâncias mas a essência da natureza humana, essa mantem-se (acho eu...)

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  5. Maria,

    É justamente isso. Quem está de fora não percebe. Parece uma injustiça, uma maldade. Parece ser o que toda a gente ambiciona. Parece uma coisa incompreensível virar costas a alguém que dá a vida por nós, que nos coloca num altar.

    Mas é o que diz. Eu sempre quis ser eu e apenas eu. Não queria ser um poema (muitos poemas), uma letra de canção (muitas), um amor eterno, um sonho, uma paixão, a razão de ser.

    Mas é o que é, cada um sabe de si. Haverá quem adore ser adorado. Eu não.

    Um abraço para si, Maria.

    Vá passando por cá. Será sempre muito bem vinda.

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  6. Oh, Era uma Vez, deixe-se ficar. Gosto que goste de ouvir as minhas recordações.

    Andámos pelas mesmas praias, temos memórias parecidas.

    Faça daqui o seu banco de jardim, a sua janela. Espero que seja para si um blogue with a view.

    Um abraço.

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  7. Jeito Manso, você, eu e mais umas centenas.
    Mas quantos já nem casam por "não valer a pena"?
    Quantos se casam hoje e divorciam dois anos depois?
    Vivem um grande amor de cada vez? Talvez.
    Mas, então, cada um tem prazo de validade. Ou não?!
    Eu tive um grande amor. Que ocupa ainda hoje uma boa parte do meu coração. E com validade infinita.
    Mas foi único. Apesar de terem passado na minha vida pessoas que foram importantes. Mas não mais do que isso.
    Grande, grande, grande, houve um. Para toda a vida!

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  8. Olá, Helena,

    Percebo muito bem o que diz mas eu sou muito branda nas minhas análises acerca desta matéria.

    Muita gente não se casa e não acho bem, nem mal. Que se viva 'junto' durante algum tempo antes de casar, acho muito ajuizado, acho bem. Que as pessoas não sintam necessidade de celebrar o contrato do casamento, compreendo mas também compreendo quem se casa. tirando razões fiscais ou coisa do género, não vejo grande valor acrescentado na celebração de um contrato matrimonial.

    Eu casei-me porque, na altura, não me ocorreu não o fazer. Mas não me sinto mais comprometida por ser casada.

    Também é verdade que as pessoas se divorciam com alguma ligeireza e aí também não acho bem nem mal. Se a coisa não funciona, acho que a vida é curta demais para se fazerem fretes. Quando há filhos, aí já me parece um bocadinho mais chato mas talvez seja preferível isso, a assistirem a discussões ou a testemunharem um ambiente familiar em estado de convivência forçada.

    De resto o que eu, acho acima de tudo, é que quando duas pessoas se gostam e vivem juntas, não devem fazer nada forçados, não deve haver obrigações, nem compromissos de fidelidade, nem nada disso. Liberdade absoluta em respeito e com consideração por quem se ama.

    É um dia de cada vez e cada dia muito bem vivido, sem dramas, sem ressentimentos, sem ciúmes, sem cobranças, sem promessas, sem desconfianças nem juramentos. Nada.

    E assim, nesta disposição, vai-se vivendo um dia e a seguir vem outro dia e, quando se dá por ela, já lá vão uns anos. Mas sempre em regime de 'a porta sempre aberta', ninguém a prender ninguém.

    A minha mãe assustava-se quando eu era novinha e dizia isto, 'continua assim, continua, e depois não te venhas cá queixar', ou então sorria complacente e dizia 'não conheces os homens'.

    Quanto ao número de amores. Percebo bem o que diz. Podemos ter vários, amar de forma diferente cada um, ser bom enquanto dura, mas também acho que amor de verdade, daqueles que se acomoda para sempre no melhor lugar do nosso coração, só há um. E é uma companhia que temos sempre perto de nós, dentro de nós.

    Um beijinho, Helena.

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