quarta-feira, agosto 03, 2011

Nuno Crato anuncia que bastantes professores ficarão sem colocação ou com horário zero e eu, daqui, envio um apelo - a ele e aos professores de português

Possa-mos, quaiqueres, hadem, faria-se, etc, são palavras que aparecem escritas ou ditas com alguma frequência em textos que leio ou em conversas em que participo a nível profissional (e, já agora: também a nível social) – e, para este efeito, estou apenas a reportar-me a casos em que os intervenientes são, no mínimo, licenciados.

Preço de saldo, I presume

(NB: Neste caso, não faço ideia se quem escreveu o cartaz era licenciado...)

A questão do Acordo Ortográfico (AO) não me mobiliza extraordinariamente porque penso que, no domínio da língua portuguesa, há questões mais graves, mais prementes, carências mais básicas a que se deveria atender.

De resto, como leiga, não o conheço o suficiente para me pronunciar. Parecer-me-ia mais adequado que novas grafias fossem pacificamente incorporadas na língua em vez de aparecerem como substitutas das antigas. Desta forma, seria possível ir progressivamente enriquecendo a língua sem ter que violentar hábitos enraizados e - não negligenciável - sem ter que substituir manuais escolares e outros suportes, operação inutilmente dispendiosa. No entanto, não estou certa de que isto vai ser exactamente assim pelo que, sobre o assunto, não me adianto mais.


(Um parêntesis para referir que um absurdo com algumas parecenças, embora a uma escala bem mais específica e bem mais limitada, se observa quando uma empresa muda de logótipo. Veja-se o caso da EDP. De vez em quando a EDP gasta rios de dinheiro, milhões de euros, mudando o logótipo. Não apenas o custo das agências é elevadíssimo como, a partir daí, mudam os letreiros, a publicidade em todos os suportes, as inscrições em viaturas, mudam fardas, cartões de visita, papel de carta – muda tudo. E para quê? Para nada. Ainda por cima, neste caso em concreto da EDP, a mudança foi para pior, uma piroseira ridícula).

Todas as discussões que giram em torno do AO, são sem dúvida, muito pertinentes mas o que me parece, de facto, mais grave, mas mesmo preocupantemente grave, é a iliteracia de grande parte dos jovens que, de há uns largos anos a esta parte, vêm saindo das escolas, especialmente, como é óbvio, os que vêm de cursos de, por exemplo, gestão, economia, informática, engenharias.

Há muito tempo que defendo – mas não defendo nos sítios certos porque, nesta matéria, não tenho acesso a qualquer centro de influência – que todos os cursos, todos, sejam de gestão, sejam técnicos ou sejam do que for, tenham em cada semestre até ao fim do curso, disciplinas obrigatórias ligadas à língua portuguesa.

Tenho difiuldade em aceitar que pessoas com formação académica superior e, muitas vezes, cargos de responsabilidade, cometam atrocidades ao falar ou escrever. É uma vergonha.

Uma pessoa inculta, que não sabe respeitar a sua própria língua, dificilmente será uma pessoa apta a intervir de forma responsável e construtiva no desenvolvimento do seu País. (Escuso de completar que uma pessoa inculta que nunca lê livros vive num mundo tão pequeno, tão fechado, que dificimente pode dar contributos de fôlego para o que quer que seja)

Tanta luta que vejo do lado dos professores (pela carreira, pelo modelo de avaliação, ou pró ou contra o acordo ortográfico) e nunca vi aquilo que me pareceria a mais justa reivindicação: o alargamento do ensino da língua portuguesa a todos os cursos superiores (e, já agora, faço notar um dos muitos efeitos colaterais que isso teria: o aumento de postos de trabalho na área do ensino; e, já agora, um outro: o aumento da venda de livros, com o também consequente aumento de postos de trabalho).

Tenho lido que Camilo Castelo Branco foi retirado da lista de autores obrigatórios  e isso vem causando compreensível contestação (penso que é isto mas, como é uma discussão que me parece relativamente acessória, não tenho prestado excessiva atenção).

Camilo Castelo Branco e o seu amor, Ana Plácido

Face ao que acima referi, a questão central parece-me ser outra: o ensino da língua não deveria, de forma alguma, ser interrompido no final do ensino secundário para os cursos que não os de literatura. 

Se o ensino da língua fosse alargado de 4 ou 5 anos, a complexidade dos autores já poderia ser progressiva, desde a infância, passando pela adolescência, até á idade adulta.

Eu, que adoro ler desde pequena e que não segui as humanidades, no liceu passei como cão por vinha vindimada por Júlio Dinis, Camilo, Antero e, mesmo, Camões. Não tinha maturidade suficiente, nada daquilo me interessava, aqueles textos eram de difícil entendimento e, logo, o que me despertavam era, na melhor das hipóteses, indiferença.

Além disso, pelo menos na altura, nas aulas de português os textos eram basicamente matéria prima para explicar conceitos abstractos relativos ao género ou para exemplificar regras gramaticais. Do que me recordo, qualquer texto era sistematicamente esquartejado em orações, e, a esta distância, se traduzir em palavras o que na altura sentia, direi que a gramática apunha sobre os textos uma densa camada do que me parecia ser uma burocracia literária que tirava a graça ao que quer que fosse.

No entanto, nessa altura, por conta própria, deleitava-me eu com os romances de Fernando Namora, José Rodrigues Miguéis, Augusto Abelaira, etc (e, nos não portugueses, com Pearl Buck, Eric Maria Remarque, Somerset Maugham, etc).

Fernando Namora de quem, na altura, li tudo:
As sete partidas do mundo
A casa da malta
....

Por outro lado, se temos os clássicos, temos também numerosos autores contemporâneos de qualidade que, certamente, serão mais motivadores para jovens com 15 ou 16 anos. Ou seja, neste contexto, não obrigar a ler Camilo parece-me um mal relativo.

Lembro-me do meu filho mais novo (desde cedo leitor assíduo, leitor exigente) que, sendo da área das ciências exactas, desesperava aos 15 ou 16 anos para conseguir ler os Maias, leitura obrigatória. Várias vezes assisti às fúrias que o levavam a atirar o livro para o chão quando, estando deitado no sofá, como costumava estar sempre que lia, não passava das longas narrativas iniciais, ‘não tenho paciência, não consigo, estou farto de ler e não passo dos cortinados!’, ironizava ele, sinceramente desesperado.

Eça de Queiroz

Ora, de certeza que o teria lido com mais gosto, sabendo ler em diagonal as páginas sobre a descrição do casarão, se o tivesse lido mais tarde, já com alguma maturidade.

Não é uma contradição absurda, a situação actual, em que, grande parte dos miúdos, mal sabendo falar e escrever correctamente, seja obrigada a ler autores que, para eles, são ‘uma estucha’?

Não seria preferível ensiná-los, de uma forma adequada, a saber falar e escrever, de forma consistente, ao longo de um período alargado, e, com mais tempo, ir introduzindo a literatura de uma forma progressivamente mais complexa?

(E, quando falo em complexidade, não me refiro forçosamente a complexidade linguística. Basta que sejam temas desajustados para a idade, para os hábitos correntes, para que se tornem complexos. Um jovem com 15, 16 ou 17 anos - habituado aos jogos de consola, às redes sociais,  a sms com palavras abreviadas e símbolos que exprimem sentimentos, a praticar desporto, a sair com os amigos - estará desperto para, por exemplo, compreender dramas passionais entre adultos, adultérios, incestos? Eu acho que não.)

Resumindo:

O ministro de quem muito se espera - vamos ver se está à altura das expectativas

Alô, alô, professor Ministro Nuno Crato!

Alô, alô, professores deste país!

Alô, alô, reitores deste país!

Prolongue-se o ensino da língua portuguesa até ao final de todas as licenciaturas! Ensinemos a gente deste país a falar, a ler e a escrever! 


[Dada a altura em que estou a escrever isto, com meio mundo de férias, provavelmente voltarei ao tema mais tarde. Gostaria também de escrever alguma coisa sobre a minha opinião àcerca do ensino da matemática e da avaliação de professores. A ver se um destes dias o faço.]


PS:. Aos estóicos que chegaram até aqui: caso queiram mudar de ares, podem deslizar até à sala da Carla Vasconcelos onde se encontra o Rui Unas e, se quiser ver os melhores corpos do ano, desça ainda um pouco mais.

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