Qual o efeito do desenraizamento? Nos pinheiros, a morte é muito provável. Nos animais, é sabido o efeito que a perda do habitat nativo provoca: mudam de hábitos, mudam de comportamento, ficam estranhos, podem ficar perigosos.
Nas pessoas também corre mal com alguma frequência.
A pessoa pode fazer um esforço enorme de adaptação, pode esforçar-se ao máximo por aprender os hábitos do novo meio, os tiques, a maneira de falar, de andar, pode esforçar-se por esquecer o seu antigo ambiente, os seus antigos amigos, a sua família, o seu anterior suporte emocional.
Pode esforçar-se por adaptar-se a um ritmo de vida diferente, a novos horários, pode habituar-se a deitar-se tarde quando antes se deitava cedo, pode habituar-se a quase não dormir, quando antes o sono era sagrado.
Mas se há adaptações mais fundas, que envolvam a sua própria natureza, as coisas tornam-se mais difíceis. Pode docilmente esforçar-se por não demonstrar o desconforto, pode docilmente mostrar-se que se está a ficar cada vez mais integrado mas, no fundo, uma raiva vai nascendo, uma raiva que se vai abafando. E, ao mesmo tempo que, por fora, a pessoa parece cada vez mais normal no novo meio, perigosas conjecturas vão fermentando, às escondidas, virulentas, perigosas.
E, um dia - frequentemente na sequência de noites de insónia, de agitação e grande nervosismo, de profunda desilusão, quando nada parece já merecer sequer o esforço de continuar o esforço - a mente não aguenta mais: impossível disfarçar, impossível continuar a parecer feliz, impossível esconder mais a raiva. E, como tudo o que é acondicionado sob pressão, há uma explosão irracional, descontrolada, sem medir consequências, um acto de loucura, um gesto desesperado que ninguém vai compreender.
Imperdível o grande filme de Scorcese, onde Jodie Foster, menina ainda, faz o papel da menina-prostituta Iris e Robert de Niro é o desenraizado Travis Bickle, o taxista. Veja-se a evolução de Travis, veja-se o percurso silencioso, desconhecido de todos, que o leva a cometer a loucura final - afinal tão expectável para quem, como nós, acompanha a sua vida 24 horas por dia.
No meu post anterior relativo ao assassinato de Carlos Castro pelo desenraizado modelo Renato Seabra (longe da família em Cantanhede, dos colegas em Coimbra, dos desportistas do basquetebol e, de repente, inserido nos meios espumosos da sociedade pink, nos meios gay da moda, das passerelles, do jet leg, do assédio sexual), alguém comentou que uma raiva assim, descontrolada, absoluta pode acontecer nos casos de pedofilia. Acredito que sim. Quantas vezes, no silêncio da sua humilhação, as vítimas não imaginarão vingar-se? Quantas vezes, no silêncio da sua revolta escondida, a vontade de mutilarem sexualmente o agressor não lhes passará pela cabeça?
Ao contrário do que uma leitora escreveu, obviamente que não defendo os crimes, os homicídios, nem este nem nenhum. Obviamente que não. Ninguém os defende, a começar por quem os pratica. Um acto desesperado assim não tira a vida apenas a quem morre: tira também a vida a quem mata. Ninguém, em perfeito estado de sanidade mental, pode defender isso.
Claro que não posso também defender que alguém, não apenas agrida e mate uma pessoa como ainda a mutile sexualmente, certamente com gestos brutais, selvagens, de animal tresloucado. Não posso defender. Nem quem pratica esses brutais actos espera, certamente, que alguém o defenda. São actos limites, de quem não dorme, de quem deixou de pensar, de alguém que não suportou mais a vida que levava, de alguém para quem tudo deixou de fazer sentido.
Por isso, não defendo: é indefensável. Mas tento compreender a angústia, a aflição, o desespero, a humilhação, a raiva descontrolada de quem, por desnorte da vida, por infelicidade, se vê desenraizado, à mercê de um mundo que lhe é estranho, sentindo-se pouco mais que um animal acossado.
De facto, ao mesmo tempo que lamento o triste fim do jornalista Carlos Castro - apaixonado, convencido de que estava a iniciar a verdadeira relação amorosa da sua vida - ao perceber o engano, ao perceber a raiva incontida que a sua proximidade física tinha despertado, lamento também a vida arruinada que o jovem Renato tem pela sua frente.
Ninguém merece morrer como morreu Carlos Castro, à pancada, no meio de violência, de gritos, de insultos, em sangue, uma autêntica tragédia grega, um olho esvaziado, castrado, um pobre farrapo. Mas a mãe de Renato e toda a família devem estar também a sofrer muito por verem ruir o sonho de um menino de futuro promissor, por verem a vida infeliz que afinal terá pela frente. Afinal, não mais lhe será dado voar como o fez naquela sessão fotográfica em que sorria como os meninos cheios de esperança fazem. Impossível não ter pena de um jovem de 21 que anos acabou de desperdiçar a sua vida de uma forma tão infeliz, tão traumática, tão imperdoável. A sua penitência começa agora e será dura. Acusado de homicídio nos EUA, longe da família, o que o espera é tudo o que uma mãe deseja fervorosamente que nunca aconteça a um filho.
Excelente este texto... Muitos parabéns pelo blog de altíssima qualidade.
ResponderEliminarMuito obrigada. Fico sensibilizada pelas suas palavras.
ResponderEliminarParabéns pelo seu blog!
ResponderEliminarNão podia estar mais de acordo, ninguém merece morrer assim, mas tenho muita pena de um jovem ambicioso/ingênuo que na hora "H" não tinha a mãe por perto para o proteger.
Muito obrigada por compreender.
ResponderEliminarTambém pensei nisso quando ouvi a senhora dizer que sentia que o filho não estava bem, que não dormia, que se queria vir embora. Quanto ela não desejaria agora que tivesse podido estar perto dele. Que sofrimento terrível para a mãe.
Claro que também que horrível as irmãs do Carlos Castro terem que reconhecer o corpo do irão e vê-lo desfigurado, sem vida.
Como tenho escrito: que coisa tão triste. Parece uma coisa impossível de acontecer.