quinta-feira, janeiro 27, 2011

Sophia


Eu estava na praia de Vale do Lobo e via-a a passear à beira de água com o marido, Francisco Sousa Tavares (por vezes também com um dos filhos), quase sempre assim, com um lenço apanhado atrás. Frequentemente puxava para baixo o fato de banho e ficava com os seios à mostra, passeando tranquilamente, os pés na água, entrando, mergulhando, seguindo, feliz, radiosa. Por vezes rodopiava, parecia dançar. Eu via-a encantada: a poesia dela sempre me tocou de forma muito especial.

As suas palavras, que eu conhecia dos livros, continham a emoção primordial, a luz, a água, os sons, os sentimentos descritos de forma palpável. Eu era pouco mais que uma menina e via perto de mim a mulher que me fazia amar tanto as palavras. E via-a perto da água ou sentada ou deitada na areia, ou a olhar o céu, a luz e, ao vê-la, sentia que ela via o mundo através dessa luz que lhe iluminava as palavras.

As suas palavras acompanham-me, pois, desde sempre. Quando a ouço - e esta manhã, no carro, ouvi excertos de gravações em que a sua voz, límpida, diz as suas poesias - é aquela toada, que parece soprada pelos anjos, que sempre ecoa dentro de mim.

Sophia a poeta e a diseuse.

E, por isso, tive necessidade de materializar as suas palavras. Agora não apenas as ouço como as vejo, as toco. 


 Este é o amor das palavras demoradas
moradas habitadas
Nelas mora
em memória e demora
o nosso breve encontro com a vida



Pudesse eu não ter laços nem limites
ó vida de mil faces transbordantes
pra poder responder aos teus convites
suspensos na surpresa dos instantes

Hoje a família de Sophia de Mello Breyner Andresen doou - ou melhor, ofereceu - o seu espólio, devidamente inventariado, catalogado, arquivado, ao longo de anos pela sua filha, a também poeta Maria Andresen, à Biblioteca Nacional. 'Aos seus leitores, a sua obra' como referiu o filho Miguel Sousa Tavares. É um gesto nobre que dignifica os filhos, é um gesto despojado, grande, que honra a memória de sua mãe.

Ouvi as palavras de Maria, chorando enquanto falava. Durante anos foi a sua ocupação: ler os papéis de Sophia, ler os cadernos, as cartas, os diários - e assim se foi aproximando ainda mais da mãe, conhecendo a sua alma, desvendando os seus segredos, a sua intimidade.

Imagino como agora lhe custe pegar em tudo e oferecer tudo isto que foi a sua vida nos últimos anos, que é a recordação material e viva da sua mãe. Mas imagino também que se orgulhe do seu próprio gesto pois sabe, certamente, que a sua mãe se orgulharia dela e dos seus irmãos pela infinita generosidade de que hoje deram provas.


Quando penso em Sophia, imagino-a assim: abençoada, sentada a ver o mar, num céu cheio de luz, a sombra de uma cedro a perfumar o ar, um pássaro de longas asas atravessando o espaço imenso que a envolve.

Sophia, menina do mar, princesa das palavras.

3 comentários:

Magnolia disse...

Há pessoas que não deveriam morrer. E essas, mesmo morrendo, não desaparecem da nossa vida. Apenas muda a sua maneira de ‘aparecer’: deixamos de as ver fisicamente, e passam a estar connosco de uma forma ainda mais íntima. Acontece com aqueles que amamos e nos amaram. E, estranhamente, acontece com aqueles que apreciamos, e que, mesmo sem nos terem conhecido, ajudaram a formatar uma grande parte do nosso verdadeiro ‘eu’. Sinto isso com a Sophia. Através dos livros que li desde que me lembro de saber ler, posso dizer que cresci com ela. Às vezes dou comigo a ‘repeti-la’, já sem saber se, sem ela, eu seria capaz de me expressar assim ou, mais do que isso, sem saber se, sem a ter lido, eu pensaria daquela maneira…

E a dita ‘formatação’ lançou em mim raízes ainda mais profundas - porque telúricas e que estão na origem minha pequena mata de ‘pinheiros, tílias, abetos e carvalhos’, árvores que povoavam o meu imaginário desde que, em miúda, li o Cavaleiro da Dinamarca, e que ao longo da minha vida, tornei reais, palpáveis e… minhas.

Porque ao plantá-las e acariciá-las (agora que vão sendo grandes e independentes), vou inevitavelmente reflectindo sobre a vida – a delas e a minha, acode-me ao pensamento muitas vezes, aquele soneto ‘Rosas e Cantigas’ de Afonso Duarte, que me permito lembrar aqui:

‘Eu hei-de despedir-me desta lida,
Rosas? - Árvores! hei-de abrir-vos covas
E deixar-vos ainda quando novas?
Eu posso lá morrer, terra florida!

A palavra de adeus é a mais sentida
Deste meu coração cheio de trovas...
Só bens me dê o céu! eu tenho provas
Que não há bem que pague o desta vida.

E os cravos, manjerico, e limonete,
Oh! que perfume dão às raparigas!
Que lindos são nos seios do corpete!

Como és, nuvem dos céus, água do mar,
Flores que eu trato, rosas e cantigas,
Cá, do outro mundo, me fareis voltar.’

E confesso que, nesses pensamentos, se mistura a dúvida do nosso Aquilino, que, em momentos de maior fragilidade, faço minha:

‘A Primavera, tantas vezes rebelde ao calendário, rejuvenesce tudo menos o homem. As leis da ciclicidade fisíca assim o mandam. Para o ano, por esta altura, voltarão as aves a cantar. Que chova, que faça um sol radioso, com o mundo vegetal pletórico de seiva, ou mais aganado, à triste planta humana é que nada a afasta da sua carreira para a morte. Será ela a obra prima da Criação ou a pior de todas’?
São estes todos – Aquilinos e Sophias, etc, que nunca vão desaparecer do nosso mundo, porque estão aconchegadinhos dentro de nós...

Foi notável o gesto dos filhos da Sophia de Mello Breyner: dignificaram-se e honraram-na como escritora e como Mãe.

Um Jeito Manso disse...

Magnólia, li com admiração o que escreveu: poderia ter sido eu a escrevê-las de tal forma me identifico com as suas palavras.

Quase me apeteceu puxá-las para um post (com a sua autoria explicitada, claro) pois poderia até ilustrá-lo com as minhas árvores, os meus recantos, as plantinhas que despontam agora que a primavera se aproxima. Mas não o fiz. Temi que se aborrecesse.

A nossa vida adquire uma dimensão suplementar com o 'amor das palavras demoradas', com o amor pelos espaços, que no meu caso - tal como refere que se passa consigo - não sei se é meu de origem ou se é uma influência de Sophia e de tantos outros que vivem dentro de mim.

Agradeço as suas visitas e as suas palavras. Volte sempre.

Magnolia disse...

Muito obrigada pelas suas palavras. Claro que pode fazer o que quiser com aquilo que eu aqui escrevo: qualquer apreciação positiva vinda de uma pessoa que produz escritos da qualidade dos seus e reflexões com a profundidade, a sensatez e a sensibilidade que aqui exibe, só me pode deixar lisonjeada...
O seu blog, desde que o encontrei, passou a ser uma das minhas leituras diárias, e todos os seus posts me suscitam reflexões que, apenas por falta de tempo, não consubstancio em comentários. Lucky you!...
Parabéns!