terça-feira, setembro 21, 2010

O teu cheiro na minha mão



De manhã deixo os miúdos na escola e vou de carro até ao barco. Como vou cedo, ainda arranjo lugar numa rua por detrás de uns prédios e, assim, sempre evito pagar estacionamento. Podia levar o carro para Lisboa mas não me compensa. O gasto em gasolina, em portagem e em estacionamento, acabava por me sair muito caro e, indo de barco, tiro o passe integrado que dá também para o metro e para os autocarros e apresento a factura. Na firma pagam-me o passe porque, na minha profissão, tenho que andar de um lado para o outro e, parecendo que não, isso é uma grande ajuda.

Sou vendedor de uma firma de cafés. Tenho um ordenado base e comissões. Como já estou há uns quantos anos na casa, já tenho uma boa zona, uma zona que não se ressente com a crise. Tenho toda aquela zona do Marquês, Fontes Pereira de Melo, Saldanha, Campo Pequeno, Avenida de Roma, Praça de Londres. Toda a gente queria ter esta zona mas, como já tenho muitos anos e como sou muito competente, tenho sido promovido e estou seguro nesta área. As encomendas são sempre certas e pagam a tempo e horas Já recebi três vezes o prémio de melhor vendedor. Tenho as medalhas e os diplomas no móvel da sala porque é um grande orgulho, até os miúdos mostram aos amigos que vão lá a casa.

Não me posso queixar.

A minha mulher também trabalha, é escriturária numa oficina de alumínios perto de casa, tem a responsabilidade das facturas, da caixa, de orientar a papelada para a contabilidade. É muito organizada e competente e, por isso, tem um bom ordenado e toda a gente diz bem dela.

Também não se pode queixar.

Tomara muitos. Ainda este verão estivemos de férias no Algarve, alugámos um apartamento em Quarteira e acabou por sair em conta, até porque comíamos sempre lá. Foi uma semana em grande, os miúdos ficaram malucos com aquilo.

Agora passa-se é uma coisa. Conheci há coisa de um ano uma rapariga por quem me apaixonei.

Trabalhava ao balcão numa pastelaria na Av. da República. Encantámo-nos um pelo outro. Os dias inteirinhos, desde que, de manhã, escolhia a roupa e punha o after-shave, até que depois, à noite, adormecia, eram passados a pensar nela. Ansiava pela hora de passar por lá, para recolher a encomenda ou o cheque ou só para a visitar. Ia a uma hora mais morta e ficávamos ali um bocado, os dois, à conversa. Claro que era sempre a disfarçar, não fosse alguém perceber. Às vezes, à socapa, lá conseguia fazer-lhe uma festa no braço e, o resto do dia, eu andava a cheirar a minha mão, que ficava com o cheiro dela.

E depois ficava a pensar no que tínhamos dito e, sempre que ia a algum lado ou sempre que via ou ouvia alguma coisa, eu pensava em não me esquecer de lhe contar. E, quando via alguma mulher, eu, na minha cabeça, comparava-a com ela e, este tempo todo, nunca nenhuma lhe chegou nem aos calcanhares.

E, ela também: quando eu chegava ao pé dela, toda ela se iluminava, contente por me ver. Foram os meses mais felizes da minha vida, pelo menos nos últimos anos. O que eu mais queria era agora conseguir passar uma tarde inteira com ela ou uma noite ou um fim-de-semana, ou uma semana inteira, ou as férias ou até, quem sabe, o resto da minha vida.

Mas ela é casada e tem filhos e eu também e, por isso, não temos hipótese. Mas o pior é que, há uns tempos atrás, o marido dela, que é motorista, foi promovido a motorista de administração e, por isso, foi transferido para a Sede, ali na 2ª circular e como ela, para não gastar passe, vai e vem com ele no carro da empresa, resolveram que ela havia de pedir para ser transferida para uma pastelaria do mesmo dono ali no Colombo. Só que isso deu-nos cabo da vida.

Agora já não a consigo ver. E tenho tantas saudades. Às vezes ligo-lhe mas não é a mesma coisa. Ela diz que também sente muito a minha falta, diz que a vida já não tem tanta graça. Gosta da loja do centro comercial, tem muito movimento, ganha mais em gorjetas, diz que nem se compara, mas que era melhor quando estava na Av. da República por causa dos nossos bocadinhos de conversa.

E eu deixei de ter aquela motivação que me levava a escolher a camisa a condizer com a gravata e com o casaco, a perfumar-me, a vir feliz para mais um dia de trabalho. Ficou dentro de mim um buraco que não tenho como preencher.

E, por isso, todos os dias, quando ao fim do dia saio do barco, venho direito a um banco que está ali no cais, sento-me a olhar para Lisboa e fico a pensar na minha vida, a pensar nela, fico a tentar recordar-me de todas as conversas que tivemos, das festas que, às escondidas, fazíamos na mão um do outro. Agora os dias já estão a ficar pequenos, quando ali chego já está a ficar escuro e eu sou a única pessoa naquele lugar, até corro o risco de ser assaltado. Mas não me importo. E saio do barco quase a correr como se estivesse com pressa de ir para casa. Mas não, é só para ficar ali sentado naquele banco. São os melhores momentos do meu dia. Em recordação estou com a minha linda, como eu lhe chamava. Ainda conservo aquele hábito de cheirar a minha mão, dou por mim a tentar sentir ainda aquele cheirinho bom que vinha dela. Mas já não vem. O meu amor está longe e eu acho que, se calhar, não volta mais.

E por isso agora até já me custa a dizer que sou um homem cheio de sorte.
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