sábado, janeiro 27, 2024

A minha última tia e a outra autobiografia

 

Para além dos comentários aqui e dos mails de Leitores a quem muito agradeço, tenho recebido muitas mensagens de amigos, palavras de conforto e solidariedade.

Nos últimos tempos (na verdade, nos últimos dias -- foi tudo tão rápido que quase perco a noção do tempo), como a minha mãe quase não tinha voz nem coordenação motora suficiente para atender chamadas, pediu-me para eu trazer o seu telemóvel para casa. Aqui tem estado. Enervadíssima como andava, tirei-lhe logo o som pois sei que me faria impressão ouvir o seu telemóvel a tocar. Mas, de vez em quando, ao longo do dia, ia vendo se havia chamadas não atendidas ou mensagens. E ia respondendo ou devolvendo chamadas, tendo sempre o cuidado de dizer logo de início que não era a minha mãe mas a filha e explicando a razão de ser. Mas, por via disso, fui falando com várias das suas amigas. 

Hoje recebi, no meu telemóvel, uma chamada de um número que não faz parte dos meus contactos. Nada de mais pois não apenas o ano passado deixei de ter o telemóvel da empresa como tive que trocar o aparelho em si, por avaria, e, com estas mudanças, não sei como -- ou melhor, sei: certamente por nabice --, perdi inúmeros contactos. Quando atendi a chamada, do outro lado uma foz sumida, entrecortada, falta de rede, quase não se percebia. Deu apenas para entender que, muito ao longe, era uma voz de uma idosa e consegui distinguir o nome da minha mãe. Quando tentei perceber quem falava, a chamada foi entrecortada, posta em espera, e depois caiu. Quando contei isto aos meus filhos, ao chegar a este ponto, ambos me perguntaram se eu tinha pensado que estava a receber uma chamada do além. Não, não pensei. Pensei que poderia ser uma das suas amigas embora isso fosse pouco provável pois tinha-me comunicado com elas através do telemóvel da minha mãe e não do meu.

Devolvi a chamada e tive outra vez muita dificuldade em perceber. A pessoa estava num local com pouca rede ou não devia estar a pegar bem no telemóvel. Até que, ao fim de algum tempo, lá consegui perceber que era a minha tia cujo nome é o mesmo do da minha mãe. É casada com o irmão do meu pai. São os meus dois últimos tios vivos.

Esta minha tia está muito debilitada, com muitas dificuldades entre as quais a da fala. Não foi ao velório nem ao serviço fúnebre pois tem grandes limitações, entre as quais a nível locomotor. 

Aliás, na pequena cerimónia antes da cremação, um dos momentos em que quebrei foi quando chegou a minha prima com o meu tio pelo braço, já um pouco trôpego, muito abatido e muito triste. Não tinha ido ao velório na véspera porque estava frio e para a minha tia não ficar sozinha à noite. Veio ter comigo e abraçou-me, muito comovido, e vi-o a balbuciar, certamente queria dizer-me algumas palavras, mas não conseguiu dizer nada. Ele e a minha mãe conheciam-se desde sempre, sempre foram amigos e sempre cuidaram do jardim um do outro quando algum deles se ausentava. Tinha-me a minha prima dito que os pais nem queriam acreditar que a minha mãe tivesse morrido pois a minha mãe era, para eles, o exemplo a seguir, a pessoa cheia de dinamismo, com uma vida activa, a estudar, a caminhar, a conviver. Ver o meu tio, já tão velhinho, tão comovido, tão sem palavras, partiu-me o coração.

E a minha tia deve ter estado a ganhar coragem para me telefonar pois estava também muito emocionada, muito triste. É inevitável que pensem que, do grupo de familiares daquela idade, já só resistem eles. Custou-me muito falar com a minha tia, a voz muito apagada, estava a evitar chorar, muito triste. Às tantas, depois de falar das suas maleitas, disse-lhe que ela, se calhar, devia ir mais para o jardim, apanhar algum sol. Faz-me impressão que esteja o dia todo dentro de casa. Mas mal consegue andar e tem medo de cair. E eu percebo-a. A minha prima é incansável. Não sei como, dada a sua muito absorvente vida profissional, consegue ir a casa dos pais todos os dias. Mas, claro, só o consegue ao fim do dia. E os meus tios também só aceitam uma pessoa para ajudar na lida da casa três manhãs por semana, pois o meu tio sempre foi muito activo e quer manter alguma actividade e, além disso, querem manter a ideia da sua independência e a sua privacidade. Portanto, no resto do tempo, estão por sua conta. Ora, face a isso e consciente das suas fragilidades, tentam limitar os riscos. Mas é muito triste pois sentem-se diminuídos nas suas capacidades e, de certa forma, isso retira-lhes muita da sua alegria de viver. 

Uma das minhas dúvidas, e sobre a qual não cheguei a falar com a psicóloga e ser-me-ia muito útil, tem a ver com eu não saber bem o que dizer para animar uma pessoa que está prestes a morrer, como era o caso da minha mãe, ou que, pela idade e pela sua condição física, já não tem esperança de recuperar a sua anterior mobilidade ou agilidade ou, por consequência, a sua independência. Acho que não se deve mentir mas também me parece cruel pedir à pessoa que aceite com naturalidade a sua condição ou a finitude da vida. Tenho que me informar, pedir conselho, pedir ajuda.

A minha tia ligou para me tentar confortar mas, na verdade, eu é que queria confortá-la a ela. Falei-lhe na filha, sempre tão dedicada e amiga, nos netos, na bebé bisneta, tão linda, disse para ela pensar nos momentos bons. Mas ela, já tão cheia de limitações, sentindo-se tão triste por já praticamente nada poder fazer em casa, naturalmente não se anima com conversas destas.

Por isso, fiquei bastante triste com este telefonema. Disse-lhe que quando agora for à casa da minha mãe, vou a casa dela dar-lhe um beijinho. Até lá tenho que resolver aquela minha dúvida pois agora que a minha mãe morreu, ainda mais desanimados e tristes eles estão.

Acontece que desde o dia da cremação fiquei aflita com dores, primeiro numa anca, depois num dos joelhos. Não sei se foi por estar muitas horas de pé, se foi do frio, se foi pelo stress, parece que fiquei tolhida. Ontem fomos buscar as coisas da minha mãe mas quem foi ao quarto buscar as malas foi o meu marido. Eu não saí do carro não apenas porque me custaria demais mas também porque estava quase sem conseguir dar passo. De noite tomei um comprimido para as dores. Dormi imenso. E acordei melhor. E hoje estive de repouso, nem fiz as caminhadas do costume nem nada. 

Portanto, aproveitei para ler. E fui ler o segundo livro da autobiografia da Rita Lee. Chama-se 'outra autobiografia'. Estava na dúvida dado que foi o que ela escreveu no período que decorreu entre o diagnóstico de cancro e a sua morte. Mas, por algum motivo, foi justamente esse o livro que quis ler. 

Acabei-o há pouco. Divertido como o anterior, leve, alto astral, uma escrita colorida, vibrante, bem temperada. 

Descreve como descobriu a doença, os exames, depois a a radioterapia, a quimioterapia, os efeitos secundários, a fragilidade, as metástases que iam aparecendo, o tumor externo que apareceu e a que apelidou de Jair e como queriam ver se acabavam com ele, os ataques de pânico, a casa transformada para a acolher, a enfermeira lá em casa, as idas e vindas ao hospital. Tudo descrito sem meias palavras, sem falsos pudores, sem tabus. Não me impressionou nada. Não é um livro triste, depressivo. Não. É apenas a descrição do que se passou, uma descrição que se lê com curiosidade e, por vezes, aliás, muitas vezes, com um sorriso. 

E fez-me muito bem. Ainda com mais certeza fiquei de que a minha mãe tomou a decisão correcta. 

Note-se que não estou a dizer que é a decisão correcta em geral. O cancro hoje não é a fatalidade que era há uns anos. Há cada vez mais casos de cura e há cada vez mais casos em que o cancro se torna uma doença crónica, algo com que se vive quase como se não existisse. Mas, no caso da minha mãe, com uma insuficiência cardíaca que afinal também já era terminal, já não suportaria tratamentos agressivos. Portanto, para quê a angústia de exames complicados, para quê a angústia de tratamentos que, mesmo que sobretudo de contenção, menos agressivos como a radioterapia, poderiam ter implicações que, se calhar, a deixariam  ainda mais debilitada? 

Assim, guardou o assunto apenas para si própria. E, desde que o corpo fraquejou até ao fim, foi rápido. Sofreu bastante, sobretudo, porque assistiu, em toda a sua lucidez, ao avançar galopante da doença, mas foi rápido, menos de dois meses.

No caso da Rita Lee é natural que tenha feito de tudo para tentar travar a doença pois tinha apenas setenta e cinco anos e há combinações terapêuticas cujas taxas de sucesso são encorajadoras. 

Mas o caso dela é daqueles casos em que, como diria o meu filho referindo-se a um familiar próximo, se pode dizer que se esforçou bastante para ter aquele cancro. Conta ela que sempre fumou muito, cerca de dois maços por dia, e que, durante a pandemia, já ia em três maços e meio por dia. Claro que o tabaco não é a única causa mas quando se fuma tanto como ela fumava as probabilidades aumentam. 

Eu, que fui fumadora, sei bem que a gente só pára quando tem mesmo vontade de parar, uma vontade nossa, que vem de dentro. Não é a conversa dos outros que nos leva a essa decisão. Toda a gente sabe que fumar faz mal. Mas quando vejo tanta gente que ainda fuma, em particular parece que agora até são mais as mulheres que fumam, fico com pena que não tenham vontade de deixar de fumar. 

Mas, enfim, não tenho espírito de missionária pelo que as missões antitabagistas têm que ficar para quem tenha vocação para tal.

Pela parte que me toca tenho agora que apanhar ar, apanhar sol, começar a ocupar a cabeça com pensamentos alegres. Claro que tenho pela frente tarefas que, por antecipação, me atormentam um bocado, ou melhor, muito: as papeladas, as malas que tenho na cave, a casa... Mas, enfim, uma coisa de cada vez. Para já tenho que respirar.

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Rita Lee - Ôrra meu

[Gravado em casa, com o marido e um dos filhos, durante a pandemia, antes de lhe ter sido diagnosticado o 'troço', como ela, por vezes, se refere ao cancro]


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Desejo-vos um bom sábado. 
Saúde. Alegria. Paz.

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