Tenho andado numa de cenas domésticas, incapaz de alinhar duas palavras sobre temas que não metam vassoura ou balde e esfregona.
Estiveram cá os meninos e é sempre uma ternurinha boa e uma alegria. Meninos lindos e queridos. Por isso, hoje o dia foi tranquilo e bom. Contudo, agora à noite surgiram uns mails algo inesperados que requereram a minha atenção e consumiram o meu precioso tempo livre.
Por isso, só agora estou a pegar nisto, e já passa bastante da meia-noite. Mas acho que não devo passar ao lado de mais uma daquelas enormes incompreensões históricas: o que está a passar-se no Afeganistão. O precipitar de uma situação inimaginável e as imagens que nos chegam parecem coisa de loucos. Parece uma história mal contada. Parece que adormecemos a meio do filme e que, ao acordar, percebemos que perdemos o fio à meada e já não conseguimos captar patavina do que está a passar-se.
Mas a vida, especialmente a este nível, está cheia de coisas mal explicadas. Ainda me lembro do dia da invasão do Iraque. Eu achava um absurdo e um abuso. Estava revoltada. Parecia-me inconcebível que a comunidade internacional apoiasse uma tal perfídia. Nesse dia, tinha um compromisso num local muito bem, nada mais nada menos que uma belíssima moradia no Restelo. O ambiente não era propício a discussões sobre temas destes até porque a pessoa com quem eu estava, por sinal um conservador encartado, acreditava piamente que haveria razões para a invasão, dizia que não lhe passava sequer pela cabeça que eu pudesse duvidar da veracidade do que presidentes de vários países diziam. Achava que a minha discordância era mais do que blasfémia, era uma coisa inimaginável. Duvidava até da minha inteligência. E eu achava que decisões daquela natureza só poderiam tomar-se mediante a evidência de provas inequívocas e que isso ainda não tinha acontecido e que, portanto, tudo o resto era, em minha opinião, um intolerável atropelo às mais elementares regras que deveriam regular o mundo.
Muitas vezes, desde então, temos falado nisso. Ele costuma dizer que se enganou quanto a isso mas que eu também já me enganei, nomeadamente quando não acreditei que acabassem com o BES e ele me dizia que, por muito estúpida que fosse essa decisão e por muito que lhe custasse dizer que o Passos Coelho era um bronco irresponsável, tudo levava a crer que era ainda mais burro do que parecia e que acreditava que iam mesmo estourar com o banco. E eu teimava que, por muito bronco que o Láparo fosse, não cometeria burrice de tal calibre e, se cometesse, o cego, surdo e mudo do Carlos Costa do Banco de Portugal, haveria de travá-lo. Enganei-me. Quid pro quo.
Mas nestas coisas ninguém de bom senso se sente feliz por ter razão. Tem-se é pena de se ter tido razão. Nem se deve ter pena de não ter tido razão. Aqui, em matérias destas (e uma guerra não é comparável a destruir um banco mesmo causando ondas sucessivas de danos para todo o sistema nos anos seguintes), tudo o que se diga ou pense está a milhas de tudo o que haveria para dizer ou pensar. Por isso, a decisão inteligente, será ficar em silêncio. Ou rezar.
(Uma oração em silêncio, sussurrada com temor e sob a maior incompreensão.)
Com o Afeganistão é quase a mesma coisa. Ninguém sabe bem a dimensão dos imbróglios nem quem está certo ou errado. Nada é linear, nada assenta em premissas francas e inequívocas. Há muita geo-política, muita geo-economia, muita geo-finança -- e muito disto tudo misturado e condimentado com informações geridas e geradas pelos serviços secretos.
Qual a verdade é questão que, nestes casos, está para além da filosofia. A verdade aqui é um pot-pourri de meias verdades, de meias mentiras, de farsas indecorosamente engendradas, de conluios, de traições, de estratégias, de tácticas, de enganos, de erros, de escaramuças, de confusões, de exercícios de relações públicas, de jogos de espelhos, de raciocínios que se perdem nas traduções.
No meio de tudo isto, por muito que custe aceitar, os que morrem, os que ficam estropiados ou traumatizados para o resto da vida são mero pormenor.
Que vinte anos de intervenção não tenham servido para nada, que muitas vidas se tenham perdido para nada são pormenores, pequenos apontamentos que não contam para a história. E é no h minúsculo que manifesto a minha tentativa de mostrar respeito (e muita pena) pelos que, em tudo isto, ficaram para trás.
Aqui, o xadrez joga-se a outro nível: China, Rússia, Estados Unidos, Europa, Reinos do Petróleo e das Armas -- cavalos, bispos, rainhas, peões, torres. Nesta guerra há um tabuleiro: o mundo. Há peças: muitas. Duvido é que haja um rei.
E, depois, colocando as coisas em perspectiva, não sei se alguma coisa neste jogo é mais relevante do que os mortíferos tremores de terra, os dilúvios nunca antes vistos, o degelo cada vez mais acelerado, os calores e os incêndios avassaladores, o mar que paulatinamente vai subindo, a pandemia que vai ceifando vidas -- tudo isto a que se assiste um pouco por todo o lado, desgraças que também sacrificam vidas humanas (e, em alguns casos, não humanas) e que igualmente resultam de decisões erradas e erráticas.
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No meio de tanta coisa terrível, uma notícia se destaca pelo insólito.
Swiss researchers have spent 108 days calculating pi to a new record accuracy of 62.8tn digits.
Na minha cabeça, para facilidade de memorização e para efeitos calculatórios, π = 3,1416. Claro que sabia que não era bem isso, que a seguir ao segundo 1 não era um 6, era um 5 e depois um 9 e depois.... um nunca acabar. Simplesmente, atalhava caminho e arredondava onde me parecia que já não fazia muita diferença. Num mundo analógico, as coisas eram 'mais coisa, menos coisa'. Mas o mundo em que vivemos já pouco tem de analógico. Ou seja, em determinadas situações em que a total precisão é fulcral, ter quatro, cinco ou cinquenta ou quinhentas casas decimais já faz diferença. O π entra em tudo o que é lado e a precisão, cada vez mais, é indispensável.
Pi appears everywhere, from the general relativity of Einstein to corrections in your GPS to all sorts of engineering problems involving electronics
Pi is, of course, a mathematical constant defined as the ratio between a circle’s circumference and its diameter. The circumference of a circle, we learn at school, is 2πr, where r is the circle’s radius.
It is a transcendental, irrational number: one with an infinite number of decimal places, and one that can’t be expressed as a fraction of two whole numbers.(...)
The constant appears in Euler’s identity, eiπ + 1 = 0, which has been described as “the single most beautiful equation in history” (and has also featured in a Simpsons episode)
(...) Mathematicians have estimated that an approximation of pi to 39 digits is sufficient for most cosmological calculations – accurate enough to calculate the circumference of the observable universe to within the diameter of a single hydrogen atom.
O artigo é fascinante. É uma lufada de ar fresco e de poesia naquilo que, se nada fizermos para inverter a trajectória, bem pode ser o caminhar para o fim dos tempos.
[Mas vamos fazer, vamos inverter a trajectória, claro que vamos]
Fotografias de crianças afegãs da autoria de Steve McCurry
Watan Jan - Orquestra feminina afegã "Zohra"
Desejo-vos um dia feliz
UJM - "Desejo-vos um dia feliz." DM - "Desejo-lhe um dia feliz também. Não resisti hoje..."
ResponderEliminarOlá DM,
ResponderEliminarGostei. Obrigada. Pode não resistir mais vezes que eu não me importo.
E que venha mais um dia feliz... e mais um... e mais um... e mais um... e sempre mais um...