sábado, junho 27, 2015

O amor ao espelho. Like a painting.








Estava sem saber o que fazer, agora que estás longe. As minhas irmãs vieram fazer-me companhia, tentam sempre animar-me. Animada eu estou, sinto é a tua falta, parece que nada faz muito sentido sem te ter aqui comigo. Durante o dia penso que te devia contar o que pensei, contar-te sobre a música que ouvi, relatar-te as conversas que tive. Mas, depois, ao falar contigo, não ia maçar-te com isso e ficava com tanta coisa dentro de mim, sem as partilhar contigo. Parece que nada vale muito a pena se é para ficar apenas comigo. Há uma dimensão que se acrescenta ao que se vive, que é a que resulta da partilha com quem conhece o nosso coração.

Então elas vieram, buliçosas, e as três escolhemos vestidos de verão, e os vestidos que escolhemos não tinham alças e mal cobriam o peito e então escolhemos blusinhas justas para vestir e despimos os soutiens, e vimos como os nossos seios permanecem iguais, pequenos, mamilos pequenos, peitinhos de adolescente, e rimos, e dissemos graças maliciosas, e depois escolhemos laços para pôr na cintura, cada laço de sua cor, e sapatilhas bordadas com brilhantes, e penteámo-nos umas às outras, e pusemo-nos com ar de noivinhas antigas e, rindo, saímos para o jardim e fizemos uma roda em volta da árvore e cantámos e dançámos. E voltámos a ser meninas, as manas sorridentes, as meninas com uma vida feliz pela frente.

Depois sentámo-nos na varanda, cansadas, e, ao verem-me calada, logo se puseram em minha volta, e desfizeram-me o penteado, e contaram-me histórias, tentaram fazer-me rir. Ri-me para não as preocupar, para que se fossem embora. Sei fazer de conta que estou contente. Mesmo elas, que me conhecem tão bem, não percebem, julgam que desviam o meu pensamento para sítios onde tu não existes. Deixo-as julgar, rio-me com elas.

Vendo-me alegre, foram. Vi-as saírem, conversando, de braço dado, cabelo solto, disponíveis para serem felizes. Viraram-se, fizeram adeus, atiraram-me beijos no ar. Retribuí, rindo.

Mal se afastaram, voltei para dentro. Olhei para o relógio. Vontade de falar contigo. Vontade de saber de ti, vontade de te ouvir a contares-me o que fizeste. Podias dizer coisas simples, assim: atravessei a rua, a árvore ao pé do semáforo está florida, almocei numa esplanada, pensei em ti, depois o sol batia-me na cara, não consegui ler, pensei em ti. Podiam ser coisas assim, simples, que eu ouviria com interesse, como se fossem histórias raras. Mas a esta hora podes estar a trabalhar ou em casa, não posso ligar-te. Tenho que esperar que me ligues, que me escrevas, que te lembres de mim.

Despi o vestido das flores, despi tudo. Fiquei nua. Olhei-me ao espelho, a pele branca, macia, sem préstimo. Senti a falta do teu olhar que acariciava a minha pele, que procurava o meu olhar. Querias perceber se eu te queria tanto como tu me querias. E depois olhavas o meu corpo que dizias que tinha sido feito para ti. Lembras-te de como olhavas o meu corpo? Lembras-te de como querias que eu me despisse devagar para olhares? Lembras-te de como querias aproximar-te e eu te afastava até que não aguentasses mais? Ah, como eu gostava de me despir para ti, de deixar que o sol entrasse para pousar no meu corpo, para que me visses envolta em luz. E tu dizias, afasta-te da janela, ainda te vêem e eu provocava-te, aproximava-me ainda mais, e dizia, pois que me vejam, que vejam como me dispo para ti, para que me vejas nua, tua. E fechava os olhos, e dizia, se eu não vir, também não me vêem a mim, e tu dizias, eu vejo-te, e eu dizia-te, ah, mas eu quero que me vejas, é para ti que danço ao sol, e o sol dançava na minha pele e tu que eu fosse mas é para perto das tuas mãos. E eu dizia, já vou, quando o meu corpo não puder esperar mais, quando as tuas mãos não puderem esperar mais. E tu dizias, já não posso esperar mais. Ainda te lembras?

E, como eu não fosse logo, insistias, vem, traz o teu corpo para os meus braços, vem, vem que não vivo sem o teu corpo junto ao meu, vem que os meus braços ficam vazios sem o teu corpo, vem, vem.

E, então, eu ia, e ia devagar, e ia antecipando o prazer de me ter entre os teus braços que me abraçavam com tanto amor, como se não fossemos separar-nos nunca. Lembras-te?

E assim estive, envolta em lembranças, em silêncio e saudades, em frente do espelho, até que a tarde tombou e trouxe o véu que prenuncia o anoitecer. Sozinha, num quarto quase sem luz, sem a tua voz, sem o teu olhar, olhei o meu corpo inútil. Podia ter tido pena de mim. Mas não tive. Já não te lembras de mim. Não mereces estas minhas tão fundas saudades.

Depois tive uma ideia: vesti o vestido com que um dia me sonhei, e assim, vestida de branco, voltei ao jardim, entrei pelos fetos macios, deitei-me como numa cama feita para o amor, acariciada pelas folhagem macia como os teus dedos. Que saudades tenho dos teus dedos, eu era uma dócil harpa nos teus dedos, lembras-te?

Esperei a noite, que a noite esconde segredos, por vezes traz mistérios que se desvanecem pela aurora. Se me ligares ou escreveres não me encontrarás. Pensei: se um dia voltares a lembrar-te de mim, talvez já eu não me lembre de ti, talvez já me tenha apaixonado pelos mistérios que a noite esconde.

Fechei os olhos e deixei que o sono ou o sonho ou os segredos tomassem o meu corpo. O meu corpo é o corpo de uma mulher livre. Lembras-te disso, não te lembras?



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As fotografias fazem parte da exposição 'Vogue: Like a Painting' que pode ser vista no Museo Thyssen-Bornemisza em Madrid  entre o próximo 30 de Junho e 12 de Outubro.



A primeira fotografia é One enchanted evening, Taormina, Sicilia de Peter Lindbergh, 2012. 
A segunda não sei.

Maria Callas interpreta Madame Butterfly de Puccini

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E, por falar em liberdade, desçam, por favor, até ao post seguinte. 
Ali fala-se da liberdade e da dignidade no berço da democracia e junta-se um link para um magnífico post onde se desvendam alguns mistérios.

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Desejo-vos, meus Caros Leitores, um sábado feliz, sereno.

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