quarta-feira, setembro 17, 2014

Quando a guerra é um jogo, um vício


No post abaixo, já cometi a ousadia de provocar um diálogo improvável: J. Rentes de Carvalho e Adélia Prado. Andava com esta em mente. Foi hoje: escolhi as passagens do livro Montedor recentemente publicado e depois abri ao acaso o Solte os cachorros e dei com um texto que me parecia pedir a proximidade do outro. É a atracção das palavras.


Mas isso é a seguir. Aqui, agora, a conversa é outra.










Quando o meu filho era adolescente jogava no computador. Até eu, ao princípio, gostava de jogar a um que era um miúdo que saltava e encontrava obstáculos, o Prince of Persia, e a outro em que se construíam cidades, SimCity, salvo erro. Quando cresceu mais, fim do secundário talvez, jogava a jogos de estratégia, combates, nem sei bem. Tenho ideia de que um de que ele gostava muito tinha a ver com a II Guerra Mundial. Penso que, por causa experiência adquirida nesses jogos, quando fomos a um museu numa daquelas praias do desembarque na Normandia, ele esteve a pegar nas armas pois já as conhecia todas dos jogos.

Sei que, neste tipo de jogos, jogavam vários ao mesmo tempo, cada um em seu sítio, tinham nomes de código, comunicavam entre si durante os jogos. E tinha um joy stick penso que para simular melhor uma arma. Não gostava nada daquilo, eu, mas, desde sempre os rapazes gostaram de jogar aos polícias e ladrões, cowboys e xerifes, um certo instinto bélico, talvez e, portanto, tolerei. De resto, não tinha como já que parte do dia não estava com ele e, além disso, educar não pode ser apenas proibir já que, na adolescência então, a proibição é mais um desafio do que algo que se aceite bem. 

O meu filho sempre foi muito bom aluno e praticava desportos vários e namorava e tinha muitos amigos e, por isso, isto dos jogos de computador era coisa de importância relativa. 

No entanto, aconteceu uma coisa com um dos seus grandes amigos.

Eles eram quatro grandes amigos. Três entraram para o mesmo curso ao qual se acedia com notas altas e o quarto não conseguiu entrar, foi para outra universidade. Contudo, a um dos dois amigos que estavam com ele, aconteceu uma desgraça. Um dia de manhã, o pai teve um ataque cardíaco fulminante e morreu em casa, ao pé dele. 

Claro que isso transtornou todo o núcleo familiar e, aparentemente, mais a ele que aos outros. Durante esses dias não foi às aulas. Entretinha-se, então, nesses jogos. E a coisa foi ganhando proporções de vício, jogava noite fora. Ou chegava tarde às aulas, com sono, ou não ia. Logicamente quando chegaram os exames, ou não fez ou chumbou. No entanto, não quis preocupar a mãe. No outro semestre a mesma coisa. Jogos e mais jogos, sempre agarrado ao computador a jogar aqueles jogos de estratégia e de guerra. Novos chumbos, novas mentiras.

O meu filho e o outro amigo muito preocupados com ele. Quando iam a sua casa, ficavam ainda mais preocupados pois a mãe, a irmã e a namorada dele continuavam convencidas que ele estava bem no curso, que ele estava a par dos outros dois amigos. Muitas vezes eu insisti com o meu filho para que falasse com a mãe dele, que contasse a verdade para que o rapaz se tratasse. Contudo, sempre acharam que isso seria trair o colega e não contaram.

Elas saíam de manhã para a sua vida e ele dava-lhes a entender que saía a seguir e que ia para as aulas. Enganou-as durante anos, completamente agarrado aos jogos no computador.

Não me lembro dos pormenores mas sei que ele, já quando seria suposto estar a acabar o curso, arranjou coragem para confessar. E acabou por mudar de curso e fazer outro de raiz. Não sei qual a vida dele agora mas tenho ideia de que a coisa terá entrado na normalidade. Teve sorte.

Mas sei de um outro caso que ainda vai a meio do drama.

Uma amiga minha sempre foi perfeccionista em tudo e portanto, por maioria de razão, foi-o também na educação do filho. Enquanto eu, logo que os meus tiveram idade para irem sozinhos para casa, pu-los numa escola oficial, ela não: colocou-os num dos mais exclusivos e caros colégios de Lisboa. O filho tinha que ter  o melhor possível. Depois protegia-o em tudo, telefonava-lhe para saber se já tinha feito os trabalhos, se já tinha estudado, nas férias do rapaz ligava-lhe para saber se já tinha almoçado, se já tinha feito isto, aquilo e o outro. Eu dizia-lhe que desse rédea mais solta ao rapaz mas ela não, que queria que ele estudasse, que ficasse com boas bases, que se aplicasse ao máximo. Apesar de todos esses cuidados e apesar de no colégio terem plano de estudos, não contente, colocou o rapaz ainda a ter explicações para ter a certeza que tinha notas altas para entrar para a faculdade. Queixava-se da fortuna que gastava com o colégio e com as explicações e com livros de estudo complementar que comprava porque lhe diziam que eram úteis. Eu achava aquilo um exagero e tantas vezes lhe dizia que era demais, que tanta protecção poderia não dar bom resultado. Mas era ela e o marido. Sempre os vi a tratarem o rapaz como se fosse um miúdo a precisar de cuidados especiais quando era um rapaz normalíssimo.

Agora diz-me que se lembra amiúde do que eu lhe dizia.

Entrou para o curso pretendido. O pai é que ia levá-lo à faculdade e ligavam para casa depois de almoço a saber se já tinha chegado e se já tinha almoçado. Até que o rapaz começou a soltar a franga e a fazer aquilo que nunca tinha tido oportunidade de fazer quando era puto, a sentir que tinha liberdade de escolha. Mas, desabituado que estava de ter vida social, virou-se para os jogos de computador. Conheceu por essa via ‘amigos’ e, de tarde, enquanto estava em casa sozinho, passou a estar permanentemente ao computador a jogar. Depois também à noite. Vieram os exames e chumbou. Os pais aflitos. Diziam que cortavam a internet e ele dizia que saía de casa. Discussões azedas que deixavam os pais de rastos, sem saberem como agir. Obrigavam-no a desligar o computador à meia-noite e o rapaz começou a tornar-se agressivo. Mais um semestre e novos chumbos. A noite inteira naquilo. De manhã não se conseguia levantar.

Até que a faculdade o impediu de se matricular durante um ano lectivo por ter excedido o número de chumbos sucessivos.

A custo conseguiram levá-lo um psicólogo. Faltava às consultas. Começaram a ir com ele.

Mal se alimenta, mal fala aos pais. Está permanentemente a jogar aqueles jogos de guerra com ‘amigos’ que os pais não fazem ideia quem sejam.

Este ano voltou a poder inscrever-se mas os pais não sabem se está a correr bem ou mal já que mal se falam. A minha amiga já anda a tratar-se também e tem sido uma luta pois faz o almoço para o filho, deixa-lhe a mesa posta, recados para ele beber leite, comer fruta, e o psicólogo não quer que ela continue a ser super protectora - mas ela não consegue pois vê a vida do filho a dirigir-se para um beco do qual ela não vê saída. Tentam, continuam a tentar. Ela vai bater à porta do quarto do filho para ele descansar, para dormir. O pai tenta arranjar-lhe programas, andar de bicicleta, coisas assim. Ele quase não lhes fala, têm dias sem se verem. nos dias melhores, através da porta o rapaz diz que sim, que vai pensar nisso e, claro, não faz nada. Os pais imploram-lhe que pense no futuro, já tem vinte e tal anos, tem que se preparar para vir a ter um modo de vida mas a única coisa na vida que o interessa são aqueles jogos de guerra. Custa-me muito quando ouço estes desabafos sofridos. Os pais investiram tudo no futuro daquele menino e agora vêem-se confrontados com uma preocupação destas e sem saberem o que fazer.

Quando leio que há muitos jovens ocidentais que aderem ao Estado Islâmico e que adoram, têm treinos, matam, penso que devem ser jovens assim, que antes deveriam ter como único objectivo de vida fazer jogos de guerra, passar para os níveis seguintes, níveis mais difíceis, com mais obstáculos, com mais variáveis em jogo.


Lembro-me dos jogos que via há uns anos atrás quando o meu filho jogava: eram incrivelmente realistas. Não tinham aspecto de desenhos. Não, pareciam pessoas, sangravam, caíam, cansavam-se. Os jogadores perseguiam inimigos, agrediam-nos, disparavam contra eles. 

Acredito que jovens viciados em jogos, desvinculados emocionalmente de amigos e família, cujos elos de ligação são apenas com ‘companheiros ‘ de jogos de guerra, que não têm outro objectivo na vida que não passar para o nível seguinte, experimentar jogos novos, uma guerra como esta, que mete treinos militares, decapitações, vídeos nas redes sociais, deve ser do mais apelativo que há. 

Li no Expresso que um jovem, que antes foi estudante universitário e que aderiu ao Estado Islâmico, diz que o que mais gosta de lá fazer é treinar e matar.


O Príncipe Harry
a jogar um video game
no Camp Bastion no Afeganistão



Li há pouco um artigo (que agora já não encontro) que falava também nisto e que tinha um link para um artigo no qual o Príncipe Harry também dizia, todo contente, que sim, na missão no Afeganistão em que tinha participado, tinha disparado e tinha matado, que era como jogar Play Station, bastava carregar num botão. 

Por vezes ao fim de semana, quando estamos no campo e a televisão só apanha os 4 canais generalistas, pasmo com os filmes que dão a uma hora em que devem estar muitos miúdos a ver televisão: perseguições, tiros a torto e a direito, agressões, uma violência fortuita.

Assim se vai banalizando a guerra, desde a infância: filmes, jogos, tudo à mão de semear, gratuito ou quase, na prática quase sem controlo por parte dos pais.

E ninguém pode dizer que está livre disto ou que, na sua família, nunca nada disto acontecerá. 

Esta sociedade - em que tudo se subverteu, em que parece que toda a gente perdeu o pé e perdeu o norte, em que tudo está acessível, a toda a hora, para toda a gente, de forma desregulada (desregulada por parte da sociedade, da família, do Estado) - acaba por gerar buracos negros, inesperados monstros, perplexidades, medos sem remissão.


Será que um dia ainda voltaremos a ser capazes de controlar a nossa própria vida? Será que um dia o mundo voltará a ser um lugar menos perigoso?


I need another place. Will there be peace? I need another world. 


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A música é Another World na interpretação de Antony and the Johnsons


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Relembro: se descerem até ao post seguinte poderão encontrar um saboroso desencontro amoroso que, afinal, não é mais do que um feliz encontro literário.

É a língua portuguesa d'aquém e d'além mar em diálogo e as palavras em festa.


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Desejo-vos, meus Caros Leitores, uma boa quarta-feira. 
Saúde, sorte e boa disposição é o que vos desejo.



6 comentários:

FIRME disse...

Boa tarde !Sou pouco dado a exibições ou protagonismo mas tenho além de ler ,pensar e dar um contributo!JOGOS DE GUERRA:sou dos tais que não quero ouvir/ver ,pois a juventude,não me poupou essa experiência.Poucas famílias em PORTUGAL , terão tido a sorte de escapar a esse suplício!Estes jovens,que adoram os seus pais,tios,hoje avós falar das suas bravatas;turras,macacos,cobras,víboras,capim,paludismo,cacimbo,flor do congo(micose)...! Depois os filmes do Vietname...Aquilo é que eram heróis!!!QUAL JOHN WAYNE,GARY COOPER,cujo final era saber se casavam com a moça ou com o cavalo.Hoje as guerras praticam-se em cokpits,elaborados nos bunkers,a que se dá o nome de quarto local reservado á entrada de estranhos principalmente os pais... e aí estão os novos guerreiros do APOCALIPSE,que ao menor perigo procuram a saia da MÃE !!!gritem Ó BANANAS,CAMARÕES,HOLLANDITOS deste mundo...Estais perdidos! EM VEZ DE 1 ESPINGARDA,DEIAM aos mais pobres enchadas,sementes deixem-lhes as terras para semear,e eles não nos chatearão.

Um Jeito Manso disse...

Olá Firme,

Trabalharam comigo dois homens um bom bocado mais velhos que eu e que já se reformaram. Ambos andaram na guerra e um deles passou muito, esteve na Guiné, ficou numa vala à espera que o fossem buscar e estava rodeado de colegas mortos. Nunca quis contar muito sobre isso nem o que fez pois dizia que queria esquecer-se disso. O outro esteve em Angola e também nunca contou, dizia que o que um homem faz na guerra não conta porque era outro homem.

Tempos duros.

As guerras hoje parecem mais artificiais, mais fáceis, coisa quase de brincadeira. Mas depois a gente vê cidades arrasadas, gente a vaguear entre ruínas e percebe que não há guerras fáceis.

O que espanta é que haja tantos jovens a trocar a liberdade e a qualidade de vida ocidental por uma vida de risco e submissão.

Concordo muito consigo: em vez de armas, deveriam dar meios para terem autonomia. Mas, sabe?, a indústria de armamento é muito poderosa.

Obrigada pelo seu testemunho.

Um Jeito Manso disse...

Olá Bob,

Já sentia a sua falta. Ainda bem que está bem.

O prince e o tetris eram engraçados mas eu gostava mais do prince. e depois adorava jogar o Sim City, quase andava à bulha com o meu filho para usar o computador e ir construir uma cidade como deve ser... :)


Bob Marley disse...

olá ujm, por vezes uso a técnica do Santana Lopes, vou andando por aí.
Mas pode ficar a saber que quando ligo o PC, (sim não tenho smartphone nem portátil, nem tablet, tenho PC´s montados por mim em hardware e software),vou ver derterrorist,um jeito manso e novaziodaonda.Se trabalhasse na bolsa ía ser caricato, ver primeiro estes blogs e depois as cotações-))

Anónimo disse...

Nunca senti a menor apetência por jogos de computador, ou quejandos. Jamais. Nem meus filhos tão pouco. Nunca entendi qual o interesse de tal coisa! Como dizia o outro, “há gostos para tudo!”
Alguns deles deveriam ser proibidos, como todos os que apelam á violência, com essa treta das guerras, tiro e sangue, etc. Uma mixórdia do pior!
E ainda pelos visto há quem entre nessa e perca horas com semelhante coisa!
P.Rufino

FIRME disse...

Voltando,ao meu comentário anterior,se me permite,explico:Eu quis também dizer que nós contávamos,aventuras,aos mais novos,talvez para os impressionar...Outros não!Eu estive 46 dias no H.M.L=HOSP.MILIT.LUANDA,36 DIAS SEM PODER ANDAR.Pormenores são hoje irrelevantes!Mas duma guerra ninguém sai vencedor.Eu que lá nada tinha a ganhar,nunca mais joguei futebol,paixão de qualquer seminarista da época...Ao tempo perdi !Mas ganhei gosto á vida,trabalho,á minha terra...PENA GENTE POBRE DAR BRINQUEDOS DE GUERRA AOS FILHOS...é a industria,sedenta e sem excrúpulos...A vida tem de continuar !