terça-feira, julho 08, 2014

Os ignorantes com poder têm medo das pessoas do saber como o diabo da cruz. Escorraçam professores, desprezam cientistas, destratam artistas, maltratam indefesos apenas porque lúcidos. Gente intelectualmente destituída mas circunstancialmente poderosa apenas se sente bem quando está rodeada de espelhos, papagaios, bichos rastejantes, cortesãos, pobrezinhos e almas caridosas (para servirem sopa aos pobrezinhos). Tudo o resto está a mais.






Conheci, em tempos, um homem grande, gordo, que apenas usava roupa de marca, se possível feita por medida em reconhecidos alfaiates, camisas com monograma. Moreno, cabelo liso preto que puxava para trás com um pouco de gel ou que usava tombado na testa, quando saía à rua era para se deslocar no banco de trás do carro topo de gama e usava, então, uns óculos completamente escuros. Eu olhava para ele como olharia para aqueles padrinhos da máfia que o cinema divulgava. Talvez devido ao peso ou a uma inquietação que disfarçava, transpirava com facilidade. Quando se enervava, a situação agravava-se e, então, tirava um lenço do bolso e limpava a testa. Por vezes, as circunstâncias não eram adequadas a esses gestos e, então, viamo-lo, discretamente, a tentar disfarçar uma gota de suor que escorria plebeiamente pelo canto da testa.

Por ser amigo de um secretário de estado que era amigo de um ministro (do PSD), chegou a amigo do ministro. Por ser amigo do ministro, poderosa figura do regime, tornou-se administrador de grandes empresas e, como recompensa, o ministro passou a frequentar os seus lautos jantares que reuniam convidados de várias áreas económicas do país.

Quando chegava a um lugar novo, punha como condição que o carro fosse de alta cilindrada de uma determinada marca e que pudesse manter o motorista pessoal. Antes disso, já teria negociado o salário, os prémios, os seguros, fringe benefits - o costume.

O seu tempo era gasto a fazer e a receber telefonemas: contactos. Sobretudo combinava almoços, jantares, pequenos almoços. Para além disso, arranjava maneira de receber convites para todas as festas, jogos de futebol, celebrações, e até concursos de misses. Discutia o lugar que lhe tinham destinado e, se fosse necessário, fazia-se de ofendido (e, aliás, ficava preocupadíssimo, receando que isso significasse que a sua importância estivesse a esmorecer). Não descansava enquanto não o punham em lugar de honra. Claro que não era ele, pessoalmente, que tratava disto: era a secretária ou alguns colaboradores mais servis (porque sempre os há). 

Durante os anos em que convivi de perto com ele, não lhe conheci uma competência profissional que fosse, dotes culturais ou artísticos, ou sequer habilidade social. Quando em grupo, limitava-se a dizer e a repetir o que se dizia, comentava ao de leve títulos de jornais, mas não tinha conversa social, digamos assim. Mas como era (e ainda deve ser) tonitruante e espaçoso, disfarçava a insegurança com uma conversa ruidosa e divertida invariavelmente à volta do futebol. Aí sabia mais do que todos. Todos os dias lia os jornais desportivos e não havia pormenor que lhe escapasse. Tirando isso, a conversa preferida girava à volta deste que agora está ali, o outro que foi convidado para acolá, sicrano que está bem visto junto de beltrano, fulano que lhe tinha confidenciado que ia haver mudança, adivinhem quem eu vi a almoçar com o ministro A, ou consta que o outro está a cair em desgraça junto do ministro B. Uma conversa de vizinhas mas aplicada ao mundo dos negócios. Não passava disto.

Incompetente em toda a linha, nunca ninguém lhe viu nada escrito, e chegava a duvidar-se que soubesse escrever. Isto na brincadeira, claro, porque se lia jornais desportivos também deveria saber escrever.

Pessoas assim, que têm grandes privilégios (e ele tinha-os) e que sabem que o que têm assenta em cima de coisa nenhuma, tornam-se desconfiados. Este via inimigos em todo o lado. Ou se estava com ele ou se estava contra ele. Por outro lado, tinha em sua volta um grupo de amigos a quem pagava grandes almoços nos melhores restaurantes de Lisboa, a quem arranjava convites para espectáculos, a quem convidava para os célebres jantares na sua casa.

Por uma má avaliação da parte dele, talvez por me achar influente qb, tentava agradar-me permanentemente e, assim, arranjava maneira de ter reuniões e mais reuniões comigo, reuniões que duravam horas. Ora eu tenho algumas inibições e uma é a que advém da minha boa educação - e era assim que eu dava por mim a ouvir aquele autêntico burgesso sem ser capaz de o mandar bugiar. Era quase como se ficasse paralisada. As anormalidades que ele dizia, as confidências que me fazia convencido que eu era do clã dele, os ardis que arquitectava para se defender de possíveis ataques de outros ou ratoeiras que engendrava para ficar com os outros na mão e de que me dava conta, deixavam-me em estado de estupor catatónico. Outras vezes, ficava de tal forma fascinada por aquele mundo rocambolesco que dava por mim a fazer jogo duplo: mostrava-me interessada e ele, vaidoso, sentindo-me uma audiência interessada, falava, falava, falava. E eu puxava e ele falava, e eu ia dando corta e ele ia-se enforcando. Ouvi coisas inacreditáveis. Muitas vezes pensava, 'com o que sei deste anormal, bastava-me fazer um telefonema para o Expresso que acabava com a prosápia dele em três tempos'. Nunca o fiz. A traição não está nos meus genes mesmo quando se trata de um biltre encartado como ele.

Durante esses anos, de vez em quando proporcionava-se coincidirmos em reuniões com gente de fora em que se teria que falar em inglês. Pois bem, nunca o vi numa única dessas reuniões. Tinha sempre compromissos inadiáveis, idas para fora, o que calhasse. Estou convencida de que não sabia falar inglês mas sempre o disfarçou bem. Gente assim cultiva com labor a manha e o disfarce.

Como todos os estúpidos e incompetentes, odiava quem ele achasse que, por saber mais do que ele, poderia vir a causar-lhe situações desconfortáveis. Fugia de se encontrar com essas pessoas e inventava toda a espécie de intrigas, suspeições, tudo para afastar essas pessoas mesmo que para isso tivesse que as prejudicar profissional e pessoalmente. As pessoas nem sabiam porque lhes estavam a acontecer as coisas más que lhes aconteciam.

Mas eu não podia ficar a assistir impávida e serena e, assim, movia-me na sombra. Avisava A para avisar B para avisar C (sem que nunca o meu nome fosse referido) que se estava a passar certa coisa e que deveria ficar atento, defender-se, agir por antecipação. Vivi tempos de grande actividade intelectual e emocional. Era uma verdadeira agente dupla. Não sentia isso como traição mas, sim, como a indispensável defesa que alguém tinha que fazer dos que poderiam tornar-se vítimas sem perceberem sequer porquê. Ou seja, aparentemente comia à mesa do figurão mas, nos bastidores, minava o que podia para que ele não conseguisse sacrificar aqueles que ele temia serem seus inimigos. De facto, enquanto andou perto de mim, sem ele saber, tentei neutralizar todo o mal que tentou fazer. Nem sempre o consegui mas tentei sempre, muitas vezes correndo grandes riscos, muitos vezes passando por verdadeiros apertos.

Eu ficava passada com tanta maldade indiferente. Gente assim, se não é, torna-se psicopata. Este inventava coisas para justificar as maldades que fazia e ficava sempre de consciência tranquila, como se tivesse agido em legítima defesa.

Por essas alturas, lidávamos ambos com uma pessoa que era de uma inteligência superior, grande amigo meu e a quem eu contava o que se passava, e junto de quem confidenciava a pulhice infinita de que o mafioso era capaz. No entanto, mais do que indignar-se, o meu amigo divertia-se a observar a vida atribulada desse biltre que outra coisa não fazia na vida senão gerir a sua própria rede de relacionamentos - e sempre que podia, provocava-o. 

Uma vez calhou encontrarmo-nos os três à volta da mesma mesa. O gigante gordo vendo inimigos em toda a parte, tentando lançar insinuações e pronto a difamar quem calhasse, dizia, a certa altura, que havia uma rede de pessoas que o difamava por pura maldade ou má fé. O meu amigo, que gostava de me ver dançar no arame, às tantas, ar de safado, diz: 'e não sabe quem é que está à cabeça dessas manifestações contra si?'. O outro, assustado, 'quem, sô tôr?'. E ele, 'aqui a nossa amiga'.

O outro olhou para mim de boca aberta, olhar esgazeado. O meu amigo, malicioso, sem o outro ver, piscou-me o olho. Queria ver como é que eu me safava desta, adorava malandrices de salão. Depois de um choque inicial, recompus-me, ri-me e disse 'claro, cartaz na mão e tudo'. O gordo nem sabia o que pensar e eu continuei 'já constituí um movimento de oposição e tudo' e o meu amigo 'esta aqui não descansa enquanto não o derrubar'. O gordo riu, sorrisinho amarelo, sem saber o que dizer. O meu amigo descansou-o 'ó meu caro, descanse, ninguém lhe quer fazer mal' e, às escondidas, voltou a piscar-me o olho.

Talvez que vós, meus Caros Leitores, lendo estas minhas palavras, achem que estou a falar de um anafado ganancioso mas inseguro e inofensivo. Mas não. Era anafado e ganancioso mas não inofensivo.

A verdade é que, apesar de nunca se lhe ter visto um único acto de gestão, uma única intervenção, nada, nada, e apesar do seu mau carácter, o calmeirão por aí tem andado, de administração em administração, sempre com o motorista particular a reboque, motorista que é, na prática, um criado para todo o serviço.

Não sei por onde anda agora nem quero saber. É criatura da qual quero distância. É difícil descrever em três penadas, uma pessoa assim. Como todas as pessoas que cultivam o mal, tinha depois uma faceta simpática, comovente mesmo. Cheguei-o a vê-lo a falar emocionado da infância, do seu irmão que não tinha progredido na vida, e por mais de uma vez, de olhos marejados de lágrimas falando de uma das filhas, então com problemas. Hannah Arendt falou disso e a história não tem feito outra coisa senão dar-nos exemplos de como são comuns e banais as pessoas que praticam o mal sem quaisquer escrúpulos.


Gente ignorante teme os outros. E, por temer, deseja-os longe. E, para os ter longe, faz de tudo.


Tenho para mim que a rejeição de todas as classes profissionais e sociais que lidam com o conhecimento e com a investigação a que se tem assistido por parte dos incompetentes deste Governo, tem a ver com isto.

Os incompetentes e ignorantes que, por via de favores, serviços espúrios ou inocentes complacências, conseguiram alcandorar-se a lugares onde obtêm altos privilégios, travam depois verdadeiras lutas de sobrevivência para se manterem com acesso ao dinheiro e ao reconhecimento social a que se habituaram, e não hesitam em deitar mão a todas as armas para afastar todos quantos podem um dia pô-los em causa.

A luta contra os professores, contra os cientistas, contra os artistas, contra toda a gente que possa pôr a nu a sua ignorância é uma luta sem quartel e essas pessoas serão impiedosamente condenadas ao êxodo, ao desemprego, à humilhação social - e apenas não à morte porque longe vão esses tempos (porque senão...)


Daqui, deste meu insignificante canto, vai o meu apoio a Carlos Fiolhais e a todos os outros cientistas, investigadores, professores e gente do saber que vem travando uma heróica e destemida luta contra este verdadeiro império do mal que alastra pela sociedade portuguesa.


E vai também o meu apoio para os médicos, enfermeiros e demais agentes da saúde que lutam em defesa da Saúde Pública.


Tudo o que eu puder dizer, direi para denunciar a perfídia desta gente que não tem pejo, nem pudor, nem remorso pelo que está a fazer ao meu País.


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A música faz parte do álbum IL CANTO DI MALAVITA: ergastulanu 

Os rostos florais fazem parte do trabalho Face the foliage da autoria da designer americana que nasceu em Los Angeles e estudou design em Itália, Justina Blakeney. Não terão muito que ver com o texto mas, quando cheguei ao fim, não quis que fosse tudo mau. Mulheres floridas são sempre uma alegria em qualquer ambiente, certo? Trazem esperança, acho eu.


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Um ramo de alfazema colhido in heaven - para todos quantos lutam por um Portugal melhor

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E, por hoje, por aqui me fico.

Desejo-vos, meus Caros Leitores, uma bela terça feira.

E que nunca o tédio, o cansaço ou a desesperança nos tolha os movimentos ou a vontade porque nossos são todos os caminhos.

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7 comentários:

Master Troll disse...

É óbvio que este "gordo" tem nome e existe, mas o que é incrível é que, ao ler a sua história, me vêm à memória imensos outros gordos (e muitos outros magros) que correspondem inteiramente ao perfil... :-(

Vitor Gomes Freire disse...

Assim mesmo, estimada UJM !
Mais um " post" que é verdadeiro "serviço público " .
Muito Bem !
Aproveito para dizêr que apreciei " o pé em riste " , num comentário. . .
Melhores Cumprimentos
Vitor

Anónimo disse...

Acho que muitos de nós já nos cruzámos com alguns destes figurões. Uns saco-de-vento, como lhes chamo. Curiosamente, uma boa parte deles ascende a altas posições e por lá se mantém. Raramente caiem. E mesmo quando tal sucede, têm quase sempre “colchão” social, ou financeiro que lhes apara a queda. Invariavelmente possuem pouca cultura, gostam de exibir viaturas, são inseguros, perigosos, amorais e com ligações à política, grandes empresas, etc. Aqui há tempos (no tal passeio de que lhe falei), conheci um. Embora um pouco diferente, mais culto e com uma característica: era, um pouco mais discreto e escolhia o “alvo”. No caso, fui o alvo dele. Primeiro com uma conversa evasiva sobre política, a ver em que águas eu nadava (mas, quando quero sou muito mula), depois sobre ele, a sua actividade profissional, depois a vida material pessoal dele. Carros caros, etc. E contactos e conhecimentos pessoais que possuía (muitos e influentes – pude, posteriormente, constata-lo). Persuasivo e a procurar impressionar. Resumindo, rico, influente, etc. Ao que, no caso vertente, juntava cultura, coisa rara neste tipo de indivíduos. Associava alguma descrição, com exposição, o que é algo estranho. No final, até me sondou para uma proposta. Porque diabo fui o escolhido e não outros que também ali estavam e estiveram com ele aqueles dias, não descortino. Ou até talvez, mas não interessa, posso estar errado.
A vida está repleta desta gente. Há uma coisa que sempre me intrigou: porque raio certas pessoas têm necessidade de quererem ser, ou mostrar-se, “importantes”, influentes, etc. Porque é que não são mais naturais? São opções, bem sei, ou está-lhes na massa do sangue. Videirinhos, ou melhor, “videirões”. Mentalmente, ponho-os no meu caixote do lixo.
P.Rufino

Concha disse...

Descobri este blog por acaso e hoje é o segundo dia que cá venho.Poderei vir sempre ou não,mas do que li identifiquei-me francamente com o seu modo de pensar.Os meus melhores cumprimentos.
Concha

Anónimo disse...

Credo, UJM, autêntico Dâmaso Salcede esse seu amigo!
Tem razão em dizer que esses psicopatas chorões desses Dâmasos não são inofensivos. Mas, ó UJM, como tem paciência para jogar o jogo dele? Era dizer-lhe que ele não vale um chavo, assim, "não vales nada, desampara-me a loja". O P. Rufino é que tem razão: são pessoas pouco naturais, não jogam limpo, não são genuínas. A única coisa que podemos fazer contra elas é precisamente acabar com as brincadeiras e mandá-las à fava!
JV

Bob marley disse...

porque é que acha que a ditadura durou 47 anos, gente dessa é ao dobrar de cada esquina, e quando mais desce na hierarquia pior o são, pois executam mais do que se lhes pede na esperança de agradar ao amo e subir uns furos.

alguns, um gajo tira de pinta, outros , fico parvo como são bufos

FIRME disse...

Eu reparei que é uma encantada do Tejo;após ler ainda melhor a sua leitura deste momento ,que vivemos,gostava de pôr aqui a música do ADRIANO,TEJO Q. LEVAS AS ÁGUAS....Confesso,não fui capaz!!! Fica ao seu cargo.OBRIGADO .Firme !